Sucesso da reforma tributária depende da regulamentação

Elaboração de leis complementares será determinante para que benefícios se materializem

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A aprovação da reforma tributária sobre o consumo, ocorrida no fim de 2023, foi histórica e não faltam motivos para comemorar, já que o texto buscou simplificação, não-cumulatividade de impostos e maior justiça. No entanto, ainda há um longo trabalho pela frente: a regulamentação será determinante para que, de fato, sejam alcançados os objetivos desejados.

A regulamentação irá especificar como o sistema tributário vai funcionar na prática – o texto aprovado (Emenda Constitucional 132/23, originada da PEC 45/19) se assemelha a um esqueleto que precisa ser preenchido, explicam Bianca Mareque, Raphael Castro e Priscila Alves, sócia e associados do Vieira Rezende Advogados. “A regulamentação das matérias tratadas pela reforma tributária é tão ou mais importante que a própria reforma e demandará intenso debate e robusto processo legislativo, hábil a assegurar a devida segurança jurídica aos contribuintes e a simplificação que se busca introduzir.”

Ao todo, 75 pontos da reforma precisam ser regulamentados – são aspectos como as alíquotas, os contribuintes, a concessão e utilização de créditos tributários e os regimes especiais (de redução e isenção), o  Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto Seletivo (IS), os critérios de definição do destino da operação para fins do IVA dual (IBS e CBS) entre municípios, Distrito Federal, Estados e União.

Thiago Braichi e Anna Laura Lacerda, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados, explicam que as normas regulamentadoras, seja lei complementar, lei ordinária ou instrução normativa, requerem muita atenção por conta do papel prático que exercem no sistema tributário. Há o risco de a reforma não simplificar tanto o sistema tributário quanto seria ideal. Isto porque nem sempre é possível operacionalizar o que foi desenhado na elaboração do texto aprovado. A não-cumulatividade e outros aspectos intrínsecos do IVA dual, como o cálculo por fora e a exclusão dos tributos da própria base, podem ser distorcidos pela regulamentação.” No entanto, eles consideram que há remédios judiciais para lidar com eventual problema, já que seria inconstitucional uma Lei Complementar com previsão contrária ao texto da PEC 45/19, que alterou a Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional 132/23.

A regulamentação da reforma deve ser feita em até 180 dias, contados da data de publicação da Emenda Constitucional 132/23 (20 de dezembro de 2023).

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende abordam os pontos que faltam ser regulamentados – e quais prometem gerar mais discussão.


– Quais pontos da reforma tributária (PEC 45/19) serão regulamentados por meio de Lei Complementar?

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: A instituição e regulamentação de cada tributo por lei complementar já é utilizada pela atual legislação tributária. Exemplos são as Leis Complementares nº 87 e nº 116, que regulamentam o ICMS e o ISS, respectivamente.

O texto da PEC 45/19 determina que serão objetos de instituição e regulamentação por leis complementares as alíquotas, os contribuintes, a concessão e utilização de créditos tributários e os regimes especiais, tanto de redução quanto de isenção, do  Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Ainda, caberá à lei complementar regulamentar a distribuição da receita apurada com o IVA dual (isto é, com o IBS e a CBS) entre Municípios e Distrito Federal, Estados e União.

O texto também prevê a possibilidade de integração do contencioso administrativo relativo ao IBS e à CBS por lei complementar.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Priscila Alves: Ao menos 75 pontos da reforma tributária serão regulamentados via Lei Complementar. Dentre as questões a serem definidas, destacam-se a instituição do Imposto Seletivo (IS) e a regulamentação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (CBS). A Lei Complementar deverá definir quais são as operações consideradas prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, para fins do IS, bem como definir quais operações serão consideradas para fins de incidência do IBS e da CBS.

Além disso, ficará a cargo da referida legislação complementar dispor sobre as alíquotas, bases de incidência, regras para distribuição do produto da arrecadação, forma de cálculo, regime de compensação e hipóteses de aproveitamento de créditos dos tributos.

Ademais, deverá dispor sobre os critérios de definição do destino da operação, para fins do IVA dual, prever sobre o contencioso administrativo, e dispor sobre as hipóteses de desoneração, diferimento e redução de alíquota dos tributos (que em alguns casos atingirá os patamares de 30%, 60% e até 100% de redução).

Também irá tratar sobre as obrigações acessórias visando à sua simplificação, prever os critérios e regramentos dos regimes diferenciados de tributação expressamente autorizados na emenda constitucional, tratar sobre os casos de isenção e imunidade, além de estabelecer os limites e critérios de atuação do Comitê Gestor do IBS.

Entre os temas a serem regulamentados, tem-se a definição dos produtos que irão compor a Cesta Básica Nacional de Alimentos, os quais serão alcançados pela redução da alíquota a zero dos tributos.

Ademais, caberá à legislação complementar tratar sobre a forma de retenção e distribuição dos recursos relativos ao IBS e a CBS, aplicando os critérios previstos na Constituição. Também deverá prever os critérios de utilização dos saldos credores de ICMS, Pis e Cofins existentes até a sua extinção, os quais serão aproveitados mediante apresentação de pedido de homologação ao ente federativo competente.


– A regulamentação da reforma tributária requer muita atenção?

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Normas regulamentadoras, seja lei complementar, lei ordinária ou instrução normativa, requerem muita atenção diante do papel prático que exercem no sistema tributário. Os tributos estão previstos na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional, mas como a regulamentação cabe às normas infraconstitucionais, grande parte dos aspectos práticos estão contidos nestes textos.

Como mencionado, as LCs vigentes (nº 87 para o ICMS e nº 116 para ISS) determinam desde as alíquotas dos impostos até o contribuinte, fato gerador, base de cálculo e apuração de créditos. É essencial que profissionais da área conheçam tanto das regras previstas pela PEC 45/19 quanto daquelas previstas nas leis complementares que devem ser publicadas em breve para operacionalizar o novo sistema tributário proposto pela reforma.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Priscila Alves: O texto promulgado na Emenda Constitucional 132/23, embora tenha trazido significativas modificações ao Sistema Tributário Nacional, se assemelha a um grande esqueleto a ser preenchido, de modo a possibilitar o entendimento do funcionamento do novo modelo que se pretende implementar.

A regulamentação das matérias tratadas pela reforma tributária é tão ou mais importante que a própria reforma e demandará intenso debate e robusto processo legislativo, hábil a assegurar a devida segurança jurídica aos contribuintes e a simplificação que se busca introduzir.

Considerando que ficará a cargo da legislação complementar trazer definições absolutamente essenciais para os novos tributos criados, será necessário acompanhar de perto o trabalho de produção legislativa, no intuito de contribuir com informações relevantes e trazer importantes ponderações sob a perspectiva dos contribuintes.

Questões como aumento da carga tributária, sistemas de créditos e compensação, respeito à não cumulatividade, limites de atuação do Comitê Gestor do IBS, regimes tributários e aduaneiros vigentes que não foram previstos expressamente pela emenda constitucional estão entre as preocupações de contribuintes e investidores estrangeiros.


– Quais são os aspectos que podem gerar mais discussão?

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Vemos que grande parte das discussões tributárias giram em torno de eventuais descompassos entre a legislação federal, os regulamentos estaduais ou municipais e o entendimento dos contribuintes e da Receita Federal. Entendemos que se trata de um comportamento natural do nosso sistema tributário, visto que o Fisco visa sempre a arrecadação e o contribuinte, a economia.

Assim como no sistema vigente temos discussões quanto à não cumulatividade de determinados impostos e à utilização de créditos acumulados, e a composição da base de cálculo destes, entendemos que os mesmos pontos podem ser levantados no âmbito da CBS e do IBS, a depender das normas propostas pelas leis complementares.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Priscila Alves: Diante da desafiadora pretensão de simplificar o sistema tributário brasileiro, uma das principais alterações trazidas pela Emenda Constitucional 132/23 foi a redução do número de tributos existentes no Brasil. Desse específico ponto, já se extrai uma das principais discussões decorrentes dessa reforma: a possível afronta ao princípio do pacto federativo.

Se antes, cada Ente Federativo detinha a prerrogativa de regulamentar, cobrar e gerir as receitas decorrentes dos tributos de sua competência, com a substituição do Pis/Cofins, ICMS, ISS e IPI, por um IVA, existe a preocupação de que haja um desequilíbrio na sistemática de repasse destas receitas aos Estados, Distrito Federal e municípios.

Outro ponto de atenção é quanto aos critérios definidores da incidência do Imposto Seletivo. Isso porque, ainda que a finalidade do IS seja atuar como espécie de sobretaxa para desestimular a produção, comercialização ou importação de bens e serviços nocivos à saúde ou ao meio ambiente, caso seu escopo não seja muito bem definido, há a possibilidade de que seja utilizado com vistas ao mero incremento da arrecadação.

Existem ainda possíveis discussões em torno da operacionalização do cashback previsto na reforma. Como se trata da devolução de parte do imposto pago por famílias de baixa renda, é essencial que o ressarcimento aconteça da forma mais simples possível, sob pena de, na prática, inviabilizá-lo; o que é um desafio, considerando as dimensões continentais do Brasil.

Por fim, destacamos que a fase de transição será bastante desafiadora, sobretudo durante o período de concomitância dos dois modelos, quando, possivelmente, surgirão discussões em relação à parametrização dos sistemas de contabilidade adotados pelas empresas.

Durante essa fase, diante de eventuais equívocos que sejam cometidos pelos contribuintes, é essencial que a Receita Federal do Brasil esteja imbuída do espírito de colaboração e disposta em auxiliá-los na adoção das medidas necessárias à adequação ao novo modelo tributário brasileiro, ao invés de atuar com mera pretensão arrecadatória.


– Há riscos de a essência da reforma, que prevê a não cumulatividade e a simplificação do sistema tributário, ser alterada por meio da regulamentação?

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Há o risco de a reforma não simplificar tanto o sistema tributário quanto seria ideal. Isto porque nem sempre é possível operacionalizar o que foi desenhado na elaboração do texto aprovado.

A não cumulatividade e outros aspectos intrínsecos do IVA dual, como o cálculo por fora e a exclusão dos tributos da própria base, podem ser distorcidos pela regulamentação. No entanto, contamos com remédios judiciais para isto, visto que, diante da previsão expressa destas características no texto da PEC 45/19, que altera a Constituição Federal, a previsão contrária por lei complementar seria inconstitucional.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Priscila Alves: Como amplamente noticiado ao longo da tramitação do projeto no Congresso Nacional, o anseio de se formular um novo sistema tributário para o Brasil se pautou, dentre outras coisas, na busca pela simplificação das regras fiscais brasileiras, no fim da guerra fiscal, e, ainda, na pretensão de se limitar a incidência tributária nas cadeias de produção, por meio da garantia da regra da não cumulatividade.

Nesse sentido, observamos que, na essência, o texto promulgado na Emenda Constitucional 132/23 atendeu às referidas finalidades.

No entanto, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional somente fixou as bases do que deverá ser o sistema tributário brasileiro. Sobre isso, como já destacado, são, ao menos, 75 pontos a serem regulamentados por Lei Complementar.

Com isso, e diante do amplo conjunto de pontos a serem ainda regulamentados, entendemos que existe o risco de que o legislador ordinário possa alterar a essência da Emenda Constitucional 132/23, especialmente em decorrência de pressões de entes federativos e corporações, visto que o sucesso da reforma tributária dependerá, necessariamente, do conteúdo da legislação complementar que virá, à qual caberá a tarefa de, por exemplo, regular as situações, critérios e conceitos a serem adotados para a identificação das hipóteses de incidência tributária, bem como evidenciar os entes competentes para a tributação de cada operação.


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