A reforma tributária atingirá a não-cumulatividade plena?

Apesar da melhora esperada, ainda há incerteza sobre a extinção total da cobrança em cascata

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Um dos objetivos da reforma tributária em tramitação no Congresso é a instituição de um regime não-cumulativo pleno, no qual não haja a tributação em cascata (a cobrança de impostos sobre impostos). No entanto, e apesar do grande avanço que a reforma pode trazer, advogados tributaristas consideram que, no atual estágio da reforma, ainda não é possível afirmar que esse objetivo será totalmente alcançado – ainda podem sobrar “resíduos” de cumulatividade.

A incerteza existe porque as definições sobre como a não-cumulatividade será operacionalizada virão por meio de Lei Complementar. “Em que pese tenha sido propagada a ideia de que o texto aprovado garantirá uma não cumulatividade plena, não é possível assegurar sua implementação. Isso porque o texto utiliza uma redação semelhante àquela que já constava na Constituição, e delega para a lei complementar a definição de quais bens, direitos e serviços adquiridos serão considerados de uso e consumo pessoal”, avaliam os advogados Sávio Hubaide e Júlia Swerts, associados do Freitas Ferraz Advogados.

A reforma tributária prevê que os impostos serão não-cumulativos e que o contribuinte pode compensar o imposto devido “com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, inclusive direito, ou serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos da lei complementar, e as hipóteses previstas nesta Constituição”. Ou seja, ainda caberá a definição do que é bem de uso ou consumo pessoal.

Outro ponto que pode prejudicar a não-cumulatividade plena, consideram Hubaide e Swerts, é que o imposto seletivo (IS) que será cobrado sobre produtos nocivos ao meio ambiente ou à saúde integrará as bases de cálculo do imposto sobre bens e serviços (IBS) e da contribuição sobre bens e serviços (CBS). Um dos aspectos que atualmente pesam contra a não cumulatividade são as inclusões de tributos nas bases de cálculo uns dos outros – situação que também ocorreria com a inclusão do IS na base do IBS e da CBS.

Por outro lado, e embora ainda não haja a Lei Complementar, Michel Siqueira Batista e Caio Persici, associados do Vieira Rezende Advogados, esperam uma grande melhora no problema da não-cumulatividade: “De todo modo, a simples redução da quantidade de tributos tende a reduzir os efeitos da não cumulatividade, notadamente a cobrança de um tributo sobre o outro.” E, lembram, também haverá devolução de parte do tributo cobrado relativamente a alguns produtos e faixas da população (cashback), o que seria também uma forma de eliminar a cumulatividade.

Para Hubaide e Swerts, há ainda outras situações que podem jogar contra a não-cumulatividade plena, como o fato de que a lei complementar disporá sobre a forma e o prazo de ressarcimento dos créditos acumulados, e que poderão ser eleitas situações em que o aproveitamento do crédito será “condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação” – o contribuinte deverá fiscalizar seus fornecedores. E há, ainda, outro possível empecilho: a possibilidade de criação da contribuição sobre produtos primários e semielaborados (prevista no artigo 20 da PEC), que seria cumulativa e poderia incidir na base de cálculo dos demais tributos.

Na entrevista abaixo, Persici, Batista, Swerts e Hubaide explicam o conceito de não-cumulatividade e por que o nosso sistema atual não tem essa característica. Abordam, ainda, o que se espera da reforma.


– Um dos pontos da reforma tributária é a não-cumulatividade plena dos impostos. O que isso significa?

Júlia Swerts e Sávio Hubaide: O princípio ou técnica da não-cumulatividade possui o objetivo de evitar a incidência em cascata da tributação, permitindo que o imposto pago na etapa anterior seja descontado na etapa posterior. Para que o pagamento não seja duplicado, esse valor pago a mais torna-se um crédito tributário para as empresas.

A não cumulatividade plena trazida na reforma tributária prevê a incidência do tributo tão somente sobre o valor agregado à operação (daí o nome IVA – sigla para imposto sobre valor agregado), isto é, o contribuinte poderá se creditar dos tributos incidentes nas etapas anteriores da cadeia e em todas as aquisições de bens e serviços empregados na atividade.

Um dos objetivos da reforma é alargar, ao mesmo tempo, a base de incidência dos tributos e das operações geradoras de créditos para abarcar quaisquer bens, materiais ou imateriais, serviços e direitos.

Caio Persici e Michel Siqueira Batista: A não cumulatividade é um modelo segundo o qual a tributação sobre consumo e serviços incida apenas sobre o valor agregado (daí o conceito de imposto sobre o valor agregado – IVA) em cada etapa de uma cadeia de produção.

Para que isso ocorra, é preciso que os tributos sobre o consumo cobrados nas etapas anteriores sejam “deduzidos” dos tributos devidos nas etapas seguintes.

Quando por algum motivo não é possível “deduzir” (se creditar) integralmente o tributo pago na cadeia anterior, ocorre o que se chama de cumulatividade, que é o pagamento de tributo sobre tributo.

Em um exemplo simples, imagine-se que uma fábrica compra 3 tipos de insumos sujeitos ao IPI e ICMS, que são aplicados na elaboração do seu produto final. Quando a fábrica vende seu produto final, se a legislação por algum motivo não permitir a apuração de crédito sobre os 3 insumos, na prática ao apurar os tributos incidentes na venda do produto final haverá pagamento de tributo sobre tributo.

A não cumulatividade plena propõe que esse modelo funcione de forma perfeita, sem que nenhum “crédito” seja perdido, eliminando de forma plena a incidência de tributo sobre tributo.


– Por que hoje o nosso sistema tributário atual, que prevê a não-cumulatividade para alguns tributos, não permite a sua implementação de forma plena?

Júlia Swerts e Sávio Hubaide: A não cumulatividade do sistema tributário atual não pode ser considerada plena, pois há inúmeras restrições ao aproveitamento de créditos decorrentes das etapas anteriores e das aquisições de bens e serviços empregados na atividade empresarial.

Por exemplo, para impostos não cumulativos como o ICMS e o IPI, o modelo se assemelha mais ao do chamado crédito físico, isto é, admite-se o aproveitamento de créditos somente sobre as aquisições de bens que sejam fisicamente empregados no processo produtivo. É vedado ou restringido, por outro lado, o creditamento sobre as aquisições de produtos que não tenham aplicação direta no processo produtivo, que não integram o produto final ou não são consumidos no processo de fabricação.

Outros exemplos que podem ser mencionados são o cálculo por dentro, as inclusões de tributos nas bases de cálculo uns dos outros, as reiteradas restrições impostas às transferências de crédito entre estabelecimentos e ao ressarcimento daqueles créditos acumulados não compensados. No caso do PIS e da Cofins, da mesma forma, a definição do que se entende por insumo para fins de creditamento das contribuições levou quase duas décadas, e ainda assim não há uma definição suficiente para sanar as controvérsias.

Caio Persici e Michel Siqueira Batista:  Há diversas situações. Há casos em que a legislação prevê restrições de creditamento de determinados insumos, como é o caso do PIS/Cofins.

Há também situações em que a sobreposição dos regimes tributários impede que insumos onerados em uma etapa gerem créditos na etapa seguinte, como ocorre nas transações entre contribuintes do PIS/Cofins de diferentes regimes (cumulativo e não-cumulativo).

Por fim, também sob a perspectiva prática, há situações em que o procedimento para o contribuinte realizar o creditamento, compensação ou restituição de créditos é extremamente burocrático, por vezes até inviabilizando a efetiva não cumulatividade.


– De que forma a não-cumulatividade plena será implementada e se tornará operacional, de acordo com o texto da PEC 45/19 aprovado na Câmara dos Deputados? O texto aprovado é condição suficiente para tanto?

Júlia Swerts e Sávio Hubaide: Em que pese tenha sido propagada a ideia de que o texto aprovado garantirá uma não cumulatividade plena, não é possível assegurar sua implementação. Isso porque o texto utiliza uma redação semelhante àquela que já constava na Constituição, e delega para a lei complementar a definição de quais bens, direitos e serviços adquiridos serão considerados de uso e consumo pessoal.

Além disso, o texto aprovado prevê que o Imposto Seletivo integrará as bases de cálculo do imposto sobre bens e serviços (IBS) e da contribuição sobre bens e serviços (CBS), que lei complementar disporá sobre a forma e o prazo de ressarcimento dos créditos acumulados, e que poderão ser eleitas situações em que o aproveitamento do crédito será “condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação”, ou seja, transfere aos contribuintes o dever de fiscalizar seus fornecedores. Outro impeditivo da alegada não cumulatividade plena consiste no artigo 20 da PEC, segundo o qual os entes poderiam criar uma contribuição sobre produtos primários e semielaborados, que seria cumulativa e poderia incidir na base de cálculo dos demais tributos.

Portanto, seja pela própria redação do substitutivo, seja pela não apresentação do projeto de lei complementar, não é possível assegurar que a reforma, caso aprovada, será suficiente para assegurar a não cumulatividade plena.

Caio Persici e Michel Siqueira Batista: Não há detalhamento no texto da PEC nº 45/19 sobre como a não cumulatividade plena seria operacionalizada. Essa questão deverá ser objeto de maior detalhamento via Lei Complementar.

De todo modo, a simples redução da quantidade de tributos tende a reduzir os efeitos da não cumulatividade, notadamente a cobrança de um tributo sobre o outro.

Por fim, com relação a alguns produtos e faixas da população, há a ideia de devolver parte do tributo cobrado na cadeia (cashback), o que seria também uma forma de eliminar a cumulatividade.


– Quais são os impactos dessa mudança para as empresas, a economia, os litígios tributários e o país?

Júlia Swerts e Sávio Hubaide:  É difícil antecipar os impactos dessa eventual mudança na não cumulatividade sem a divulgação do texto da lei complementar e, ainda, sem conhecer sequer quais serão as alíquotas dos novos tributos.

De toda forma, pode-se classificar como benéficas mudanças que pretendem conferir maior transparência aos tributos não cumulativos, a exemplo do cálculo por fora. Por outro lado, o setor de serviços será consideravelmente impactado pelo aumento de carga, pois são atividades que normalmente não geram muitos créditos.

Quanto aos litígios, resta aguardar qual será, por exemplo, a definição de bens de uso e consumo pessoal, quais serão os regimes não cumulativos daqueles setores que terão regimes diferenciados, se haverá ou não divergências interpretativas entre o Conselho Federativo (IBS) e a União (CBS), quais serão as diferenças no tratamento das imunidades e das anterioridades diante das diferenças entre impostos e contribuições, entre diversas outras questões ainda em aberto.

Caio Persici e Michel Siqueira Batista:  Caso o objetivo da não cumulatividade plena se concretize, o efeito seria tornar a cadeia produtiva mais eficiente, reduzindo o preço do produto final.

Além disso, um efeito marginal esperado seria a simplificação da apuração de tributos pelas empresas, o que consequentemente reduziria seus custos internos seja com compliance tributário, seja com o contencioso (espera-se).


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