Até onde irá o imposto seletivo?

Definição ampla do novo tributo causa dúvidas sobre a sua abrangência, que será definida por Lei Complementar

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Que as bebidas alcoólicas e o fumo fazem mal à saúde e que sobre eles deverá incidir o novo imposto seletivo (IS) criado pela reforma tributária (PEC 45/19), há poucas dúvidas. Mas e outros produtos e serviços, como alimentos açucarados e ultraprocessados, armas de fogo, derivados de petróleo, energia elétrica e serviços de telecomunicações, são também prejudiciais e deveriam ter o consumo coibido por meio da incidência do imposto?

Essas questões ainda estão em aberto e causam dúvidas sobre a abrangência do imposto – cuja definição é bastante ampla. Ele incidirá sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Mas caberá à regulamentação definir o que é prejudicial e gera externalidades negativas para a sociedade e o meio ambiente, desestimulando o seu consumo por meio da tributação.

“De fato, a definição do que se considera prejudicial à saúde ou ao meio ambiente mostra-se bem ampla e a proposta de emenda constitucional não dá qualquer indicação ou critério para a limitação de sua tributação”, avaliam Priscila Alves e Carlos Augusto Bender, associados do Vieira Rezende Advogados. “Muito embora ainda não tenhamos maiores detalhes sobre o imposto, a redação do parágrafo terceiro do artigo 155, trazida pela proposta, parece indicar que o referido tributo poderá incidir sobre operações relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo (combustíveis e minerais).”

Para Thiago Braichi e Marina Guimarães, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados, a ausência de definição sobre o conceito de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente pode resultar numa ampliação das hipóteses de incidência do imposto. “Por consequência, enquanto não houver norma que disponha sobre o IS, haverá maior insegurança jurídica e os contribuintes dependerão da subjetividade das autoridades fiscais nas autuações.”

Em alguns países que já implementaram impostos similares – como o excise tax – o imposto seletivo dos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – há incidência sobre bebidas alcoólicas destiladas, tabaco e alimentos doces. Alves e Bender destacam que a introdução de um imposto seletivo relacionado à proteção do meio ambiente alinharia o Brasil às tendências internacionais e poderia desestimular o consumo de fontes energéticas mais poluentes. “Nesse contexto, quanto maior for o objetivo do governo em desestimular determinado bem ou serviço, maior será alíquota aplicada, de modo que não é possível prever qual será a métrica utilizada para a estipulação das alíquotas do IS.”

Como a indefinição ainda é grande, tampouco é possível ter visibilidade sobre as alíquotas do imposto. A título de exemplo, Brachi e Guimarães dizem que há alíquotas sobre cigarros que variam de 58,9% (Austrália) a 89,1% (Chile) sobre o preço final dos produtos, considerando nessa porcentagem a soma do imposto sobre valor agregado (IVA) e do imposto seletivo.

A PEC 45/19 foi aprovada pela Câmara dos Deputados e tramita no Senado Federal.

Na entrevista abaixo, Alves, Bender, Braichi e Guimarães abordam pontos relativos ao imposto seletivo.


– No que consiste o imposto seletivo (IS) previsto na PEC 45/19? 

Priscila Alves e Carlos Augusto Bender: Dentre as mudanças no sistema tributário constitucional sugeridas com a eventual aprovação da reforma tributária, está a instituição de quatro tributos: contribuição sobre bens e serviços (CBS); imposto sobre bens e serviços (IBS); contribuição transitória de competência dos estados; e imposto seletivo (IS).

Em relação ao último, conforme previsão do Relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária, a proposta é instituir um imposto seletivo“com um espectro de incidência melhor delimitado”, para substituir parcialmente o atual imposto sobre produtos industrializados (IPI).

O texto da PEC, aprovado na Câmara dos Deputados, altera o artigo 153 da Constituição para instituir um imposto que, embora de competência federal, terá sua arrecadação dividida entre os demais entes federados. O referido imposto incidirá sobre as operações de “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei”.

Nesse sentido, o IS terá natureza extrafiscal, de modo que o objetivo do Estado será desestimular determinados bens e serviços que geram externalidades negativas, através da oneração tributária.

Thiago Braichi e Marina Guimarães: O imposto seletivo é uma das relevantes alterações propostas no substitutivo da PEC 45/19, e que atualmente aguarda a apreciação do Senado. O novo tributo de competência federal seria criado com o objetivo de onerar a produção, comercialização ou importação de bens e serviços “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” e poderá ser instituído por Medida Provisória a partir da aprovação da Reforma. A atual redação delega para futura norma infraconstitucional a definição de fato gerador e base de cálculo do IS, bem como permite que o Poder Executivo altere sua alíquota. Além disso, prevê que o imposto integrará a base de cálculo do ICMS e do ISS, durante o período de transição, e do IBS e da CBS, ao fim da reforma.

Entretanto, o IS não integra a própria base, pois não haverá mais tributos com cálculo “por dentro”, e também não poderá incidir nas exportações de determinados bens e serviços. Por fim, o IPI estaria afastado em todas essas operações, inclusive aquelas restritas ao território nacional e durante o período de transição.

Embora a existência de um imposto seletivo sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente seja uma inovação da reforma tributária, ressaltamos que atualmente o próprio IPI atua com caráter extrafiscal. Apesar de limitado à essencialidade do produto, ao possuir alíquotas mais gravosas para os produtos não essenciais, o imposto serve como meio para incentivar e desincentivar padrões de consumo. No entanto, não havia, até o momento, a mesma sistemática de oneração destinada a serviços na nossa legislação.


– A definição do IS como imposto que incidirá sobre produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente não é ampla demais? Como se dará a definição desses produtos? Defensivos agrícolas, alimentos ultraprocessados e até mesmo combustíveis fósseis, por exemplo, podem ser tributados pelo IS?

Priscila Alves e Carlos Augusto Bender: A Constituição Federal é o principal instrumento do ordenamento jurídico brasileiro, que, por sua vez, tem normas com eficácia plena e limitada. A diferença é justamente se o dispositivo da Constituição é autoaplicável ou se, por outro lado, para que seja concretizado, ele depende de regulamentação por norma de natureza infraconstitucional.

No caso do IS, apesar da possibilidade de alteração da redação aprovada pela Câmara, nos parece que o objetivo da PEC 45/19 é garantir a criação desse novo imposto, cuja finalidade é justamente, através do aumento da carga tributária, desincentivar o consumo ou produção de produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

De fato, a definição do que se considera prejudicial à saúde ou ao meio ambiente mostra-se bem ampla e a proposta de emenda constitucional não dá qualquer indicação ou critério para a limitação de sua tributação.

Dessa forma, os detalhes sobre a incidência, o recolhimento e as alíquotas aplicáveis ficarão a cargo da regulamentação por norma infraconstitucional, como previsto no texto da proposta aprovada pela Câmara.

Muito embora ainda não tenhamos maiores detalhes sobre o imposto, a redação do parágrafo terceiro do artigo 155, trazida pela proposta, parece indicar que o referido tributo poderá incidir sobre operações relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo (combustíveis e minerais). Ademais, existe a expectativa de que também sofram a incidência do imposto seletivo produtos como tabaco, alimentos açucarados e ultraprocessados, além de agrotóxicos e armamentos, em linha do que ocorre em outros países do mundo, em que pese todos eles já sejam fontes de controvérsia nos setores econômicos.

Nesse sentido, será necessário aguardar a edição de Lei Complementar dispondo sobre a lista de incidências, cujo enquadramento na definição constitucional de “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” dependerá única e exclusivamente da interpretação do legislador.

Thiago Braichi e Marina Guimarães: A ausência de definição mais específica sobre o conceito de “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” pode resultar numa ampliação das hipóteses de incidência do imposto. Por consequência, enquanto não houver norma que disponha sobre o IS, haverá maior insegurança jurídica e os contribuintes dependerão da subjetividade das autoridades fiscais nas autuações. Importante pontuar que a forma abrangente como estão mencionados os bens e serviços poderia impactar até mesmo bens e serviços essenciais, como o fornecimento de energia e as telecomunicações, caso não estejam sujeitos ao regime diferenciado do novo artigo 9º da Constituição Federal.

A título de exemplo, alimentos ultraprocessados ou açucarados estão dentre aqueles defendidos pelo próprio Ministério da Saúde como sujeitos ao IS, junto com o álcool e cigarros. Entretanto, há argumentos contrários para a taxação de todos esses produtos, tendo em vista os principais consumidores atingidos serem de camadas mais pobres da sociedade.

Quanto aos defensivos agrícolas, também há discussões. Originalmente o texto da PEC 45/19 incluía agrotóxicos e defensivos, mas foi alterado para facilitar a aprovação da reforma tributária. No regime atual, alguns desses produtos estão sujeitos a incentivos fiscais, e aguardam decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 5.553. No entanto, observa-se que a incidência sobre esses itens pode impactar a cadeia de produtos agrícolas, gerando cumulatividade e onerando o consumidor final. Ao fim, a incidência dependerá também da inclusão desses produtos como “insumos agropecuários e aquícolas, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal”, sujeitos ao regime do artigo 9º na redação da PEC 45/19.

Quanto à tributação dos combustíveis, no texto há menção específica para a possibilidade de incidência do IS sobre derivados de petróleo e combustíveis no país. Apesar disso, há previsão de regime diferenciado de IBS sobre combustíveis, determinando alíquotas uniformes nacionalmente, cobradas em uma única fase da cadeia, o que pode resultar em redução no valor final desses produtos.


– Tomando por base países que implementaram impostos do tipo, qual é a expectativa com relação à alíquota do imposto seletivo? 

Priscila Alves e Carlos Augusto Bender: Em comparação com a experiência internacional, o imposto seletivo é um imposto semelhante ao Excise Tax dos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Esse tipo de tributo demonstra que certos itens como bebidas alcoólicas destiladas, tabaco, alimentos doces e outros, têm sido alvo de tributação diferenciada, por representarem males, que, de forma geral, a sociedade busca evitar.

Alguns países da Europa e os Estados Unidos já implementaram esse tipo de tributação há algum tempo, buscando desestimular o consumo excessivo de tais itens. A experiência internacional traz bons exemplos, que certamente influenciaram a inclusão do imposto na proposta de reforma tributária.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a carga tributária muda de Estado para Estado. De acordo com um levantamento realizado pela USAFacts, o preço médio de uma caixa de cigarros no Missouri, por exemplo, é de 6,11 dólares, das quais 0,17 dólares são destinados ao IS. Já em Nova York, onde o preço do pacote é 11,96 dólares, o valor do imposto é de 4,35 dólares (cerca de 36,4% do preço total).

Além da sua incidência na venda de produtos considerados nocivos à saúde, é importante destacar que a introdução de um imposto seletivo relacionado à proteção do meio ambiente alinha o nosso País às tendências internacionais de incentivo à proteção do meio ambiente (o que será bem-visto pela comunidade internacional).

Além do mais, a incidência do referido tributo sobre as fontes energéticas visa desestimular o consumo das mais poluentes e operar no sentido de que novas matrizes energéticas sejam desenvolvidas, servindo, inclusive, como elemento adicional na captura de investidores internacionais.

Nesse contexto, quanto maior for o objetivo do governo em desestimular determinado bem ou serviço, maior será alíquota aplicada, de modo que não é possível prever qual será a métrica utilizada para a estipulação das alíquotas do IS. 

Thiago Braichi e Marina Guimarães: Ressaltamos que é impossível determinar quais serão as alíquotas destinadas a esses bens e serviços – inclusive pois os próprios bens e serviços não estão claros. No entanto, em pesquisa à tributação de outras jurisdições encontramos alíquotas exemplificativas sobre cigarros que variavam de 58,9% (Austrália) a 89,1% (Chile) sobre o preço final dos produtos, considerando nessa porcentagem a soma do IVA e do respectivo excise tax (imposto seletivo).


– Já há alguma definição com relação à sistemática de recolhimento do IS?

Priscila Alves e Carlos Augusto Bender: Considerando-se o tratamento atualmente dado pela PEC 45/19, é possível concluir que o IS será cobrado com o objetivo de onerar as operações com itens que tem por característica afetarem a saúde e o meio ambiente, as quais atualmente sofrem a tributação pelo IPI, mas que deixarão de o ser.

Ao contrário do IPI, que se pauta pelo critério da essencialidade do bem, o IS se vinculará aos prejuízos causados pelo produto/serviço às pessoas e ao meio ambiente.

Da mesma forma, o que se observa é que a incidência do IS será monofásica, sendo a tributação realizada apenas em uma etapa do processo de produção/distribuição (provavelmente na saída da fábrica), comercialização e nas importações.

Além disso, esse tributo não incidirá sobre as exportações e não integrará a própria base de cálculo, integrando, porém, a base de cálculo dos demais tributos (ICMS, do ISS, do IBS e da CBS).

Nesse sentido, através da redação atual da proposta de emenda à Constituição, da experiência internacional e dos aspectos do IPI (tributo atualmente mais semelhante ao IS), já é possível traçar os moldes do IS. No entanto, para maiores detalhes acerca do tributo, como a sistemática de recolhimento e eventuais alíquotas aplicáveis, é necessário aguardarmos a aprovação da reforma tributária bem como a regulamentação do assunto através de normas infraconstitucionais.

Thiago Braichi e Marina Guimarães: Segundo o texto aprovado pela Câmara, o IS será de competência federal e terá seus resultados divididos entre os demais entes da federação, com menção específica à Zona Franca de Manaus. Porém, não há descrição de sistemática não-cumulativa, que permita registro de créditos para compensação, ou de regime monofásico para o imposto. Além disso, com exceção do princípio da legalidade, não constam na PEC 45/19 limites para a carga tributária do IS, o qual integrará a base de cálculo do ICMS e do ISS, durante o período de transição, e do IBS e da CBS, ao fim da reforma. Sendo assim, caberá à norma infraconstitucional determinar a forma exata de recolhimento do imposto.

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