As indefinições e as certezas sobre o cashback

Embora ainda não haja detalhes sobre o mecanismo de devolução de impostos, seu potencial para redução de desigualdades é aplaudido

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Concebido como um mecanismo de redução de desigualdades, o reembolso de impostos (cashback), previsto na reforma tributária sobre o consumo (PEC 45/19) ainda é uma incógnita: a definição dos valores que serão devolvidos, a parcela da população que terá direito ao benefício e a forma de devolução vão ser estipuladas por meio de Lei Complementar. Apesar de todas essas indefinições, a visão preponderante é a de que o mecanismo – ao lado da redução de tributos sobre produtos essenciais – pode contribuir para promover maior justiça tributária, mas que deve ser utilizado em conjunto com outras medidas.

“O objetivo dessa proposta é promover justiça tributária e desonerar parcela da população, já que o tributo sobre consumo recairá igualmente sobre todos os contribuintes – sem qualquer distinção de renda – porque o encargo estará embutido no valor do produto consumido (isso sem considerar quaisquer regimes de tributação diferenciados pela atividade ou tipo de mercadoria vendida)”, observam Sarah Partika e Júlia Barreto, associadas do Freitas Ferraz Advogados.

O cashback será exclusivo para a devolução do imposto sobre bens e serviços (IBS), que substituirá o imposto sobre circulação de mercadorias (ICMS) e o imposto sobre serviços (ISS). A contribuição sobre bens e serviços (CBS), de competência federal, não será devolvida aos consumidores de baixa renda.

“O cashback, se materializado no modelo em que foi proposto pela PEC 45-A, reduzindo a regressividade tributária sobre o consumo de bens e serviços e, por consequência, aumentando o poder de compra desse grupo social, poderá ser um importante instrumento para auxiliar na busca pela redução da desigualdade social, ainda que eventualmente possa ter alguma limitação em decorrência da atual previsão de desoneração da cesta básica contida no texto-base em tramitação no Senado Federal”, avaliam Bruna Luppi e Gabriella Oliveira, sócia e associada do Vieira Rezende Advogados. No entanto, elas lembram que esta não é a única medida com potencial para  contribuir para a redução da desigualdade: há também a reforma tributária sobre a renda e o patrimônio – que poderá tributar proporcionalmente mais aqueles que possuem maior poder aquisitivo – e o aumento da faixa de isenção do pagamento do imposto de renda sobre pessoa física (IRPF).

A efetividade do cashback

Sócio do Vieira da Rocha, Machado Alves Advogados, Paulo Victor Vieira da Rocha considera que o cashback é apenas um dos mecanismos para buscar justiça social, mas que esta não se faz somente pelo lado da receita (tributos), mas principalmente pela despesa pública: “De nada adianta arrecadar com enorme justiça e cobrar-se muito mais impostos dos mais ricos e na proporção (ou até progressão) de suas riquezas se o Estado que arrecada mais com os ricos também gasta muito mais com essa mesma parcela da população.”

Sob um aspecto, o cashback poderá não ser usufruído tão plenamente pela camada mais vulnerável da população: os produtos da cesta básica, que têm peso maior no orçamento dos mais pobres, já terão isenção de impostos – portanto, não caberia se falar na devolução do IBS. Vieira da Rocha ressalta que tanto a isenção quanto o cashback desoneram a  tributação do consumo de pessoas com menor capacidade econômica – a diferença é que na isenção ocorre a desoneração do produto, independentemente de ser consumido pelo rico ou pelo pobre, enquanto no cashback a desoneração é para determinada faixa da população. “Em tese, a adoção de um desses mecanismos sozinho atinge a finalidade de desonerar o consumo de bens essenciais pelos mais pobres. Novamente, em tese, o cashback é muito mais preciso e eficaz, mas tende a ser mais complexo. Não há necessidade da adoção de ambos, embora isso não seja necessariamente um problema.”

Na entrevista abaixo, Vieira da Rocha, Partika, Barreto, Luppi e Oliveira falam sobre as indefinições e as expectativas com relação ao cashback.


A reforma tributária (PEC 45/19) prevê a instituição de um mecanismo de reembolso (cashback) de impostos. Como ele vai funcionar?

Sarah Partika e Júlia Barreto: A PEC 45/2019, apelidada de reforma tributária, propõe a consolidação dos tributos sobre consumo (ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins) em dois: Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Para além da unificação dos tributos, o texto da reforma traz inovações, como o cashback tributário.

cashback, por sua vez, consiste na devolução de parcela (ou totalidade) do IBS exigido sobre produtos consumidos para as pessoas de baixa renda. O objetivo dessa proposta é promover justiça tributária e desonerar parcela da população, já que o tributo sobre consumo recairá igualmente sobre todos os contribuintes – sem qualquer distinção de renda – porque o encargo estará embutido no valor do produto consumido (isso sem considerar quaisquer regimes de tributação diferenciados pela atividade ou tipo de mercadoria vendida).

A forma de funcionamento do cashback será definida por meio de Lei Complementar, contudo, estuda-se a possibilidade de devolução na “boca do caixa”, na qual o reembolso de parte do imposto ocorrerá no momento da compra e; devolução após a compra, na qual o reembolso ocorrerá após o consumo por meio de um sistema de reembolso específico.

Bruna Luppi e Gabriella Oliveira: A proposta da reforma tributária sobre o consumo trazida pela PEC 45/2019-A, já aprovada pela Câmara dos Deputados e agora em tramitação junto ao Senado Federal, propõe, de modo generalizado, a simplificação do complexo sistema tributário atual, com a extinção de cinco tributos que atualmente incidem sobre bens e serviços, sendo eles, PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISSQN, para a criação do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) dual, que será subdividido entre: Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

O cashback tributário é uma das proposições trazidas pela PEC, que consiste num mecanismo de devolução de parcela do IBS pago por pessoas mais pobres diretamente para este grupo social, a fim de reduzir as desigualdades de renda e beneficiar a população de maior vulnerabilidade econômica.

Apesar de a PEC estabelecer a criação do cashback, o diploma legal não explicitou de que modo será construído o modelo e implementado o projeto. Assim, caberá à Lei Complementar regulamentar o método de funcionamento do mecanismo, bem como outros aspectos não abarcados pelo texto, como os critérios para o estabelecimento dos beneficiários, valores de reembolso, limites, forma de utilização e forma de devolução do imposto, entre outros.

É importante destacar que a implementação de um projeto para devolução às famílias mais pobres do valor pago a título de impostos sobre consumo de bens e serviços não é novidade no Brasil. O Estado do Rio Grande do Sul implantou, em 2021, o Devolve ICMS, que tem como objetivo devolver o ICMS recolhido por famílias mais vulneráveis cadastradas no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico), que recebam o benefício do Bolsa Família, ou cujo titular familiar tenha dependente matriculado na rede estadual de ensino médio regular.

No caso do benefício gaúcho, os beneficiários são classificados pelo limite de renda de até três salários-mínimos nacionais ou renda per capita mensal inferior a meio salário-mínimo nacional. Os beneficiários do programa recebem o valor de R$ 100,00 a cada trimestre, por meio de cartão de compras.

Por fim, vale ressaltar que o texto da PEC ainda está em discussão no Senado Federal, podendo haver inclusão ou modificações no que tange ao funcionamento do cashback.

Paulo Victor Vieira da Rocha: Ainda é muito incerto como o cashback irá funcionar. Mas a ideia central de um sistema de cashback na tributação do consumo é que este mecanismo substitua a isenção de produtos essenciais. Em vez de isentarem-se os produtos essenciais – como alimentos da cesta básica, energia elétrica e afins – tributam-se normalmente esses itens, mas, a depender do contribuinte que os adquira, o imposto incidente sobre eles é devolvido a tal contribuinte. Obviamente, os mais pobres é que teriam este imposto devolvido, no caso do consumo dos referidos produtos. Pessoas com maior poder econômico, mesmo quando adquirirem produtos essenciais, não teriam direito à devolução do imposto.


Quais pontos ainda precisam ser definidos sobre o cashback?

Sarah Partika e Júlia Barreto: A proposta prevê que o mecanismo do cashback será regulamentado por meio de Lei Complementar. De antemão, já existem os seguintes aspectos a serem definidos:

  1. Forma de operacionalização do cashback: Ainda está pendente de definição a forma como o cashback será operacionalizado, por exemplo, como os reembolsos serão processados e entregues aos beneficiários.
  1. Beneficiários do cashback: É necessário definir quais brasileiros terão direito ao benefício, por exemplo, se poderão usufruir do cashback apenas as famílias do Cadastro Único dos programas sociais (instituído pelo governo federal) ou se será estendido a público mais amplo.
  1. Valores de reembolso: Os valores (ou percentuais) do tributo que serão reembolsados às pessoas ou famílias participantes do programa de cashback ainda não foram determinados.

Em resumo, a medida do cashback ainda carece de diversas definições para que seja implementada, inclusive para que se possa verificar sua efetiva viabilidade enquanto instrumento de justiça tributária.

Bruna Luppi e Gabriella Oliveira: A PEC 45-A se limitou apenas à criação do cashback e a explicitar seu objetivo principal, qual seja, a redução das desigualdades de renda entre as camadas mais ricas e mais pobres da população. Assim, os demais esclarecimentos necessários para a efetivação, implementação e funcionamento do projeto não estão definidos no texto aprovado pela Câmara dos Deputados.

O texto não explicitou, por exemplo, quem serão os beneficiários do cashback –  podendo seguir o modelo adotado pelo programa gaúcho (Devolve ICMS) para classificar seus usufruidores, ou se utilizar de método diverso –, bem como de que modo irá se materializar a devolução de parcela do imposto pago, valores de reembolso e os limites do benefício.

Portanto, ainda são diversos os pontos que necessitam ser definidos e, para este fim, o texto aprovado na Câmara dos Deputados explicitou que caberá à Lei Complementar delimitar os detalhes concernentes ao benefício e seu funcionamento. Ainda, ressalta-se que outros pontos sobre o cashback podem ser incluídos no texto pelo Senado Federal.

Paulo Victor Vieira da Rocha: A grande maioria dos pontos sobre o funcionamento do sistema de cashback ainda precisará ser definida em Lei Complementar, mesmo após a promulgação da reforma. A ideia é que a emenda constitucional que promoverá a reforma deixe para o Congresso depois, por meio de Lei Complementar, regular a matéria. Trata-se de um tipo de lei existente no Brasil que, diferente da lei federal, vincula além da União federal, também estados e municípios.


A reforma também prevê redução ou isenção de impostos para produtos que pesam mais no orçamento das parcelas mais pobres da população, como os da cesta básica. Na prática, espera-se que elas possam efetivamente se beneficiar do cashback?

Sarah Partika e Júlia Barreto: A medida de desoneração de produtos que compõem a cesta básica é mais uma forma de promover a justiça fiscal. No sistema atual, produtos considerados essenciais já possuem tributação favorecida, de forma que, o texto atual da reforma seguiu com esse alívio da carga tributária.

A desoneração de bens da cesta básica, entretanto, beneficia a população como um todo (que assume o ônus tributário enquanto consumidor), desonerando o produto ao invés de garantir o benefício apenas aos que necessitam. Diferentemente dessa medida, o cashback será exclusivo para as populações de baixa renda, sendo focado, portanto, no consumidor e não na mercadoria.

Assim, considerando que o cashback é previsto para o IBS, exigido em operações com bens e serviços, os contribuintes beneficiados terão o retorno do recolhimento tributário em outras mercadorias, além da cesta básica, e também na contratação de serviços.

Em resumo, a combinação entre a redução de tributos sobre produtos essenciais e o programa de cashback nos parece ser uma estratégia viável para promover justiça social, desde que essas medidas sejam implementadas de forma acessível e eficaz.

Bruna Luppi e Gabriella Oliveira: A proposição do mecanismo de devolução de parcela do imposto pago – o cashback –, de acordo com a PEC 45-A, busca, explicitamente, alcançar a parcela mais carente da população, a fim de materializar um dos princípios fundamentais resguardados pela Constituição Federal ao buscar a redução da desigualdade de renda.

Assim como ocorre no Estado do Rio Grande do Sul com o Devolve ICMS, em que apenas a parcela mais carente da população gaúcha é beneficiada, com o objetivo de reduzir os efeitos da regressividade tributária sobre o consumo – fenômeno socioeconômico em que, proporcionalmente, os mais pobres pagam mais tributos do que os mais ricos – e promover a justiça tributária, o cashback pretende, objetivamente, atingir e beneficiar a população mais pobre.

Desse modo, espera-se que, em consonância com o determinado no escopo da PEC-45-A, o benefício do cashback seja usufruído efetivamente pela parcela da população mais vulnerável, de menor renda.

No entanto, a desoneração de produtos da cesta básica, que foi uma das mudanças implementadas pela Câmara dos Deputados na PEC 45-A ao criar a “Cesta Básica Nacional de Alimentos” –  cujos produtos destinados à alimentação humana, a serem definidos em Lei Complementar, estarão sujeitos à alíquota zero do IBS e da CBS –, pode reduzir o alcance do cashback à população de baixa renda, o que dependerá da calibragem das regras aprovadas para que possa ser viabilizado de uma forma mais ampla no contexto das exceções que venham a ser aprovadas na reforma tributária.

Paulo Victor Vieira da Rocha: Isenção de produtos e cashback são mecanismos diferentes, embora servindo ao mesmo propósito, desonerar a tributação do consumo de pessoas com menor capacidade econômica. Mas na isenção, desonera-se objetivamente o produto, independente de ele ser consumido pelo rico ou pelo pobre; o arroz e o feijão, por exemplo, que são consumidos em todas as classes sociais. Já no sistema de cashback, como dito, só há desoneração do consumo de produtos essenciais por pessoas com menor capacidade econômica. Eles podem coexistir, mas, pelo menos teoricamente, isso não é necessário. Em tese, a adoção de um desses mecanismos sozinho, atinge a finalidade de desonerar o consumo de bens essenciais pelos mais pobres. Novamente, em tese, o cashback é muito mais preciso e eficaz, mas tende a ser mais complexo. Não há necessidade da adoção de ambos, embora isso não seja necessariamente um problema.


O mecanismo, se bem utilizado, pode ser uma forma de minimizar desigualdades sociais? Ou há outros mecanismos tributários que podem ser mais efetivos para tanto? 

Sarah Partika e Júlia Barreto: O mecanismo de cashback, se bem utilizado e implementado, pode ser uma forma de minimizar desigualdades sociais. Entende-se, ainda, que o cashback pode incentivar o consumo de produtos e serviços, estimulando a economia formal (com emissão de documentos fiscais e recolhimento tributário). No entanto, como já exposto, a eficácia desse mecanismo dependerá da maneira como será estruturado e administrado.

Além disso, é importante reconhecer que o cashback não é a única abordagem disponível para abordar as desigualdades sociais. Nessa ótica, também podem ser adotadas medidas de desonerações fiscais para despesas como educação e saúde e medidas de aprimoramento dos programas de assistência social, como o Bolsa Família – que fornecem auxílio direto às famílias de baixa renda – para aliviar os encargos financeiros da população mais vulnerável.

Por fim, a conclusão é que o cashback pode ser uma ferramenta eficaz para reduzir as desigualdades sociais, ainda que não represente a única abordagem disponível, logo, a combinação de medidas tributárias e programas sociais pode ser mais o caminho mais duradouro para atingir esse objetivo.

Bruna Luppi e Gabriella Oliveira: O cashback, se materializado no modelo em que foi proposto pela PEC 45-A, reduzindo a regressividade tributária sobre o consumo de bens e serviços e, por consequência, aumentando o poder de compra desse grupo social, poderá ser um importante instrumento para auxiliar na busca pela redução da desigualdade social, ainda que eventualmente possa ter alguma limitação em decorrência da atual previsão de desoneração da cesta básica contida no texto-base em tramitação no Senado Federal.

O Devolve ICMS, por exemplo, apresentou significativos resultados na mitigação da desigualdade social no Estado do Rio Grande do Sul, ao beneficiar mais de 600 mil famílias e repassar o importe de 240 milhões de reais a este grupo.

Para além do cashback, que está sendo analisado na reforma tributária sobre o consumo, outra medida tributária que pode ser mais efetiva para a diminuição da desigualdade social é a realização de uma reforma tributária sobre a renda e patrimônio, com o intuito de tributar proporcionalmente a mais aqueles que possuem maior poder aquisitivo, mas com o devido respeito à capacidade contributiva do contribuinte.

Outro mecanismo tributário que pode ser mais efetivo para a diminuição da desigualdade social é o aumento da faixa de isenção do pagamento do Imposto de Renda sobre Pessoa Física (IRPF). Desse modo, ao elevar o valor que será abarcado pela isenção haverá, por conseguinte, o aumento da extensão da população mais carente que não necessitará realizar o pagamento do Imposto de Renda anualmente.

Paulo Victor Vieira da Rocha: Sim, se implementado adequadamente, o cashback nos impostos sobre o consumo pode ser um bom mecanismo de redução de desigualdades sociais. Mas, obviamente, há outros instrumentos tributários que também servem a esse propósito, como a progressividade do imposto sobre a renda e ainda a vinculação do cashback com o próprio imposto de renda da pessoa física (IRPF). Mas é preciso sempre ter mente que justiça social não se faz somente pelo lado da receita (tributos), mas também, e principalmente, pelo lado da despesa pública. De nada adianta arrecadar com enorme justiça e cobrar-se muito mais impostos dos mais ricos e na proporção (ou até progressão) de suas riquezas se o Estado que arrecada mais com os ricos também gasta muito mais com essa mesma parcela da população.


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