Novo Marco Legal das Garantias: aspectos contratuais, societários, processuais da Lei 14.711/2023 – Parte II

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No último texto, analisamos os aspectos imobiliários do Marco Legal das Garantias. A lei trouxe ainda alterações importantes sob o ponto de vista do direito contratual, societário e processual. Em relação ao primeiro, buscou regulamentar questões relevantes sobre inadimplemento e sobre empréstimos sindicalizados. Quanto ao segundo, o principal ponto foi a desburocratização na busca pelo crédito. Processualmente, verificamos uma busca pela desjudicialização dos procedimentos de recuperação de crédito para facilitar e tornar mais célere a excussão dos bens dados em garantia, com incentivos à negociação direta entre credor e devedor. Abaixo seguem as nossas contribuições sobre o tema.

Aspectos Contratuais e Societários

Cross default

De forma inovadora, o Marco Legal das Garantias trouxe para o Código Civil a regulação sobre o cross default ou inadimplemento cruzado. Muito embora carecesse de regulamentação legal no país, a cláusula (que é usualmente utilizada no mercado global), já era utilizada pelo mercado brasileiro, sendo seu uso importado através dos contratos originados em sistemas de common law. De acordo com a mencionada cláusula, se um agente econômico com diversas dívidas bancárias perante o mesmo credor deixar de cumprir obrigações estipuladas em um desses contratos, então o credor poderá declarar o vencimento antecipado de todas as demais dívidas desse devedor, impactando todos os outros contratos bancários celebrados entre o credor e o devedor.

No Marco Legal das Garantias, o cross default aparece no âmbito das alienações fiduciárias sucessivas em garantia[1] e na hipótese de recarregamento de alienação fiduciária[2] ou da hipoteca[3]. Nesses casos, passa a ser expressamente reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro a hipótese de vencimento antecipado de diversas dívidas ao mesmo tempo, em razão do inadimplemento de apenas uma delas, desde que estejam relacionadas entre si por esses arranjos de garantia.

Relevante mencionar que, em todas as hipóteses citadas, o Marco Legal das Garantias estabeleceu que o cross default deverá ser expressamente acordado pelas partes, depreendendo-se que sua aplicação não deverá ocorrer de forma automática após a constatação de um inadimplemento. Assim, a cláusula não poderá ser presumida, e o inadimplemento cruzado poderá ocorrer apenas quando o contrato de garantia o prever expressamente e somente quando o credor solicitar sua execução na intimação expedida ao devedor no procedimento de execução extrajudicial da garantia em questão.

Agente de Garantia

Outra inovação importante do Marco Legal das Garantias foi a regulamentação do agente de garantias, figura importante para a adoção de financiamentos com a estrutura de empréstimos sindicalizados – quando há uma associação entre dois ou mais mutuantes, sob a coordenação de uma instituição financeira. A figura do agente de garantias não se encontrava positivada no direito brasileiro, sendo um ponto de insegurança para a adoção de estruturas complexas de financiamento – realidade agora alterada com o Marco Legal das Garantias.

Ao regulamentar o agente de garantias, o Marco Legal das Garantias autoriza que um terceiro atue, em nome próprio ou em benefício dos credores, na gestão e execução das garantias, inclusive atuando em eventuais ações judiciais que discutam a existência, validade ou eficácia do ato jurídico garantido[4]. Em especial, o Marco Legal das Garantias trouxe uma importante proteção aos credores e devedores que adotarem a estrutura de um empréstimo sindicalizado, ao estabelecer que o produto da realização da garantia constituirá um patrimônio separado daquele de titularidade do agente de garantia[5], criando-se uma espécie de patrimônio de afetação da garantia. Assim, pelo período de 180 dias após seu recebimento, referido montante não responderá por obrigações do agente de garantia, trazendo maior segurança às partes envolvidas, e reduzindo a possibilidade que um risco de crédito do próprio agente de garantias – e não do devedor – afete a operação.

A regulamentação do agente de garantia traz, portanto, maior segurança jurídica para a estruturação de operações de empréstimo sindicalizado, e tem o potencial de fomentar a adoção do project finance no país, favorecendo a estruturação de grandes projetos com o financiamento via crédito privado.

Emissão de debêntures

No âmbito do direito societário, o Marco Legal das Garantias também trouxe mudanças pontuais que pretendem simplificar a emissão de debêntures e favorecer sua liquidez.

Nesse sentido, dentre mudanças procedimentais, é válido destacar que o Marco Legal das Garantias trouxe a possibilidade de desmembramento do valor nominal, dos juros e dos demais direitos conferidos aos titulares de debêntures, o que conferirá maior liquidez a esses títulos. Adicionalmente, o Marco Legal das Garantias possibilita a simplificação do procedimento de emissão de debêntures não conversíveis em ações, ao estabelecer a possibilidade de deliberação de sua emissão também pela diretoria, salvo se houver previsão estatutária em sentido contrário – nesse ponto, a redação anterior outorgava a competência apenas à assembleia geral ou conselho de administração.

As alterações pontuais trazidas no âmbito das debêntures, assim como as demais mudanças no âmbito do Marco Legal das Garantias, pretendem fomentar o crédito privado no Brasil. Assim, mesmo que a sociedade detenha um modelo de governança simplificado, sem a existência de Conselho de Administração, o Marco Legal das Garantias passa a possibilitar a emissão de debêntures mediante reunião de diretoria – que são menos burocráticas e de mais fácil realização quando comparadas a assembleias gerais.

Aspectos Processuais

Sob o ponto de vista processual, o Marco Legal das Garantias trouxe importantes e inovadoras previsões que visam simplificar e facilitar a execução de bens dados em garantia, que vão desde o incentivo à solução consensual de conflitos, até a desjudicialização da execução e a facilitação dos procedimentos de localização dos bens dados em garantias. Em última análise, o que a lei pretende é tornar a recuperação crédito por meio das garantias mais simples e célere e, assim, desafogar as execuções processadas pelo Poder Judiciário.

Execução Extrajudicial das Garantias reais

Mais uma vez de forma inovadora, o Marco Legal das Garantias estabeleceu procedimentos de execução extrajudicial de bens móveis objeto de alienação fiduciária e hipoteca.

No âmbito da alienação fiduciária em garantia, a lei inova ao possibilitar que o credor promova a consolidação de sua propriedade fiduciária desses bens móveis fora do âmbito judicial. No caso dos bens móveis em geral, isso poderá ser feito perante o Cartório de Registro de Títulos e Documentos; e, no caso de veículos automotores alienados fiduciariamente, o procedimento pode ocorrer perante o respectivo DETRAN. Para que seja feita a consolidação da propriedade do bem móvel, exige-se a comprovação da mora do devedor, que pode se dar por meio do protesto do título ou por notificação do devedor pelo Cartório de Registro de Títulos e Documentos – com as mesmas facilidades de comunicação previstas ao Cartório de Protestos.

O novo texto legal foi aprovado com veto às regras relacionadas à busca e apreensão de bens móveis pelos cartórios. Apesar disso, a execução da garantia e a transferência da propriedade continuarão podendo ser feitas extrajudicialmente – como atualmente já se faz com imóveis –, apenas submetendo a etapa de imissão na posse à autorização judicial. Com isso, o devedor não poderá alienar um bem que não estará mais registrado em seu nome. O credor, por sua vez, poderá vender o bem a terceiros, que ficarão incumbidos de providenciar a imissão na posse do bem mediante autorização judicial.

Em relação à hipoteca, o procedimento de recuperação da garantia também foi facilitado e desjudicializado. Poderá ser feito perante o Cartório de Registro de Imóveis, sendo necessário que (i) o título constitutivo da hipoteca conste previsão expressa desse procedimento extrajudicial e (i) não se trate de operações de financiamento de atividade agropecuária. Nesse sentido, vencida a dívida e não paga, o Cartório de Registro de Imóveis notificará o devedor para purgar a mora em 15 dias e, se o devedor não sanar a dívida nesse prazo, o credor fica autorizado a dar início ao procedimento de excussão extrajudicial da hipoteca por leilão público, que acontecerá em 60 dias e de forma eletrônica.

Sobre esse aspecto, a lei garante ao credor algumas possibilidades: (i) receber o valor da venda do imóvel no leilão, se ocorrer; (ii) em caso de insucesso da venda em leilão, o credor poderá alienar o imóvel diretamente a terceiros, sem haver consolidação da propriedade em seu favor; ou, ainda (iii) apropriar-se do imóvel em pagamento pela dívida.

Ampliação da Competência dos Cartórios de Protestos

Outra novidade trazida pelo Marco Legal das Garantias foi o estímulo aos acordos, por meio da criação de condições facilitadoras de negociação, a serem conduzidas perante o Cartório de Protestos, antes da efetivação dos protestos de títulos ou da judicialização da demanda.

Se o credor assim solicitar, o Cartório de Protestos poderá oferecer ao devedor alternativas para quitar a dívida antes que o protesto se efetive, e essa oferta pode ser feita por carta simples, por e-mail ou por aplicativos de mensagens como o WhatsApp. Ainda que a proposta não seja aceita e o protesto se efetive, as partes poderão, com o apoio do tabelião, buscar uma renegociação da dívida por intermédio da central nacional de serviços eletrônicos compartilhados dos tabeliães de protesto. Tal iniciativa reforça a proposta da lei de tornar a recuperação do crédito mais célere e facilitada. Para o devedor, a lei é vantajosa, pois terá mais de uma oportunidade para negociar e quitar o débito antes da judicialização. Para o credor, a lei também se mostra vantajosa, na medida em que poderá receber seu crédito sem os custos e o tempo que uma execução judicial demandaria.

Após perpassarmos pela análise dos aspectos imobiliários no primeiro texto, e pela análise do impacto do Marco Legal das Garantias no direito contratual, societário e processual, no próximo e último artigo trataremos das questões tributárias da lei.


Coautoria de Guilherme Capuruço, Bruna Oliveira Fagundes e Fernanda Dolabella Resende, sócio e associadas do Freitas Ferraz Advogados


[1] Conforme art. 2º do Marco Legal das Garantias, que altera a redação do art. 22 da Lei 9.514/1997:
[2] O art. 4º do Marco Legal das Garantias prevê que inclui o art. 9-D na Lei 13.476/2017: “Art. 9º-D Na extensão da alienação fiduciária sobre coisa imóvel, no caso de inadimplemento e de ausência de purgação da mora de que tratam os arts. 26 e 26-A da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, em relação a quaisquer das operações de crédito garantidas, independentemente de seu valor, o credor fiduciário poderá considerar vencidas antecipadamente as demais operações de crédito vinculadas à mesma garantia, hipótese em que será exigível a totalidade da dívida.” (destaques acrescidos)
[3] Conforme art. 3º do Marco Legal das Garantias, que altera a redação do art. 1.477 do Código Civil, incluindo o §2º
[4] Conforme redação do caput do art. 853-A do Código Civil, incluída pelo art. 3º do Marco Legal das Garantias:
[5] Conforme redação do §5º do art. 853-A do Código Civil, incluída pelo art. 3º do Marco Legal das Garantias)
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