Indefinição sobre compensação tributária permanece no Judiciário
Contribuintes recorrem a tribunais para barrar teto imposto pela MP 1.202/23, mas decisões são díspares
Desde que o governo impôs limites à compensação tributária, as empresas vêm recorrendo à Justiça para evitar que o uso de seus créditos fiscais seja postergado. No entanto, nem sempre o Judiciário está dando razão ao contribuinte. Em alguns tribunais, o entendimento tem sido favorável ao Fisco. O cenário é de indefinição e a discussão ainda está em estágio inicial.
A questão surgiu quando o governo editou, em 28 de dezembro de 2023, a Medida Provisória 1.202/23 (MP 1.202/23) – a mesma que mexeu com o Programa de Retomada do Setor de Eventos (Perse). No que diz respeito à compensação tributária, a MP impôs um teto à compensação de créditos tributários de mais 10 milhões de reais, provenientes de ações judiciais transitadas em julgado. É o caso, por exemplo, da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a tese do século. Nela, a corte considerou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do Pis e da Cofins. As empresas que moveram ações do tipo (e outras transitadas em julgado em favor do contribuinte) ganharam créditos tributários que podem ser utilizados para pagar impostos. A compensação tributária é uma espécie de conciliação de contas entre os impostos pagos a mais pelo contribuinte com aqueles que ele tem a pagar, mas ela não se dá de forma automática e depende da autorização do Fisco.
A MP 1.202/23 restringiu a utilização desses créditos ao limitar o valor mensal que pode ser compensado, assim como ao aumentar os prazos que o contribuinte com créditos superiores a 10 milhões de reais pode compensar. O resultado é que as empresas demoram mais para usar seus créditos e precisam tirar recursos do caixa para pagar impostos.
Como o Judiciário vem encarando a MP 1.202/23
Por conta das restrições, as empresas vêm recorrendo ao Judiciário em busca de liminares que as autorizem a não se submeter ao teto imposto pela MP. Numa das decisões favoráveis, a 14ª Vara Cível Federal de São Paulo afastou a limitação à compensação baseando-se no argumento de que ato do ministro da Fazenda não poderia estabelecer esses limites, sob pena de violação do princípio da legalidade. Mas a indefinição ainda paira.
“Não há como afirmar, ainda, um posicionamento pacificado sobre a matéria, já que também existem decisões contrárias. No Rio Grande do Sul e em São Paulo, por exemplo, foram proferidas decisões liminares que mantiveram o limite fixado pela MP 1.202/23. Da mesma forma, já foram proferidas sentenças desfavoráveis ao contribuinte com base no entendimento firmado pelo STJ, no julgamento do REsp n. 1.164.452/MG”, afirmam Nathan Amaral e Bernardo Fenelon, associados do Freitas Ferraz Advogados.
Eles consideram que há argumentos para buscar o Judiciário. Analogamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais normas que instituíram regras de parcelamento dos precatórios ou que estabeleceram limites anuais ao seu pagamento. “O raciocínio desses casos poderia ser aplicado nas limitações à compensação”, avaliam.
Mas os advogados do Freitas Ferraz recomendam cautela porque o cenário ainda é de incerteza: a decisão do contribuinte sobre se é oportuno acionar a Justiça deve partir de uma análise caso a caso. Eles pontuam que, se um contribuinte obtiver uma liminar que o autorize a extrapolar o teto da compensação tributária imposto pela MP 1.202/23, mas depois essa liminar for cassada, pode haver a retomada da cobrança do tributo compensado com multa e juros.
Na entrevista abaixo, Amaral e Fenelon abordam o cenário ainda indefinido sobre a questão.
– Recentemente, a Pernambucanas obteve uma liminar para ficar fora do teto imposto pelo governo às compensações tributárias (MP 1.202/23)? Como você avalia a decisão da Justiça?
Nathan Amaral e Bernardo Fenelon: Em 28 de dezembro de 2023, o governo editou a Medida Provisória nº 1.202/23 (MP 1.202/23), que, entre outras matérias, limitou a compensação de créditos tributários de mais 10 milhões de reais provenientes de ações judiciais transitadas em julgado.
A Justiça Federal de São Paulo deferiu um pedido liminar formulado pela Pernambucanas para afastar esses limites até o julgamento do mérito. Fundamentou-se, para tanto, no argumento de que a limitação legal violaria o direito adquirido e a coisa julgada.
O juízo entendeu que o direito à compensação deve ser executado com base nas normas em vigor quando da distribuição da demanda. O contrário, afirma, seria admitir a retroatividade da lei em prejuízo do contribuinte.
A decisão é correta. A limitação da compensação dos créditos judiciais cria obstáculos ao cumprimento dos provimentos jurisdicionais por parte da Fazenda Pública devedora, desequilibrando ainda mais a balança na relação fisco-contribuinte.
Além disso, a criação de limites para compensação apenas dos créditos judiciais gera uma distinção arbitrária entre esses créditos e outros indébitos que não decorrem de decisões transitadas em julgado, o que violaria o princípio da isonomia tributária.
A decisão é uma boa notícia para os contribuintes.
– Como os tribunais têm julgado as ações dos contribuintes para ficar de fora do teto das compensações? Há alguma tendência, seja contra ou a favor do contribuinte?
Nathan Amaral e Bernardo Fenelon: A discussão ainda está em estágios iniciais nos tribunais brasileiros. Contudo, outros contribuintes também conseguiram liminar para afastar a aplicação da MP 1.202/23 no que se refere às compensações.
A exemplo, cabe citar a decisão da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo afastando a limitação à compensação no fato de que ato do Ministro de Estado da Fazenda não poderia estabelecer esses limites sob pena de se violar o princípio da legalidade.
Não há como afirmar, ainda, um posicionamento pacificado sobre a matéria, já que também existem decisões contrárias. No Rio Grande do Sul e em São Paulo, por exemplo, foram proferidas decisões liminares que mantiveram o limite fixado pela MP 1.202/23. Da mesma forma, já foram proferidas sentenças desfavoráveis ao contribuinte com base no entendimento firmado pelo STJ, no julgamento do REsp n. 1.164.452/MG.
De toda forma, fato é que o tema está longe de definição. A MP ainda não foi convertida em lei e os tribunais ainda não tiveram tempo hábil para amadurecer sua jurisprudência. Hoje, a incerteza é ainda maior por estar pendente de julgamento a ADI nº 7.587, que questiona os limites à compensação impostos pela norma, dentre outras matérias.
– Enquanto não é julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona o limite à compensação (ADI 7.587), o que se recomenda aos contribuintes? Vale a pena recorrer ao Judiciário para assegurar o uso dos créditos fiscais sem a limitação imposta pela MP 1.202/23?
Nathan Amaral e Bernardo Fenelon: Como dito, há seguramente argumentos para buscar o Judiciário. De fato, analogamente, em outras oportunidades, o STF declarou inconstitucionais normas que instituíram regras de parcelamento dos precatórios ou que estabeleceram limites anuais ao seu pagamento. O raciocínio desses casos poderia ser aplicado nas limitações à compensação.
Contudo, os contribuintes devem estar cientes de que a compensação com base em liminar pode gerar alguns inconvenientes, caso a liminar seja cassada posteriormente. Como exemplo, a retomada da cobrança do tributo compensado com multa e juros – o que pode vir a ocorrer, especialmente, quando se está diante da análise da constitucionalidade da norma pelo STF, como é o caso.
De toda forma, recomenda-se aos contribuintes que busquem assistência jurídica para que seja analisada a sua situação e feita a avaliação do cabimento da tese em cada caso.
– Para a PGFN, os tetos impostos não tiram o direito à compensação. Esse argumento faz sentido, especialmente considerando as empresas com créditos bilionários?
Nathan Amaral e Bernardo Fenelon: A compensação depende da existência de norma autorizadora, cabendo a cada ente público tributante a fixação das condições para sua realização.
Nesse sentido, de fato o teto não impede a compensação, mas seguramente limita fortemente um direito adquirido do contribuinte. Mais que isso, esvazia o provimento jurisdicional especialmente em sentenças proferidas em mandado de segurança, em que a compensação tributária é o único meio para reaver os indébitos tributários reconhecidos. Por fim, essas condições devem ser fixadas por lei e não por ato do executivo, como acontece no caso da MP 1202/23 e da Portaria MF 14/2024, já que não cumpre nenhum dos requisitos de urgência e relevância para que tenha tratamento via Medida Provisória.
Se a MP impede por completo ou apenas regulamenta, o que está em jogo, na realidade, é a efetividade da Justiça, a defesa da coisa julgada e a separação de poderes, princípios que efetivamente não estão sendo observados.