Código Civil ou Lei das S.As: qual deles se aplica ao caso Petrobras?
Discussão sobre responsabilização de companhias ou controladores e administradores ressurge com julgamento na CAM
Qual regime de responsabilização deve ser aplicado quando se busca o ressarcimento a investidores em virtude de prejuízos decorrentes da prática de atos em desacordo com leis e normas: o Código Civil ou a Lei das Sociedades Anônimas (Lei das S.As.)? Essa questão voltou à tona recentemente, com a notícia sobre o julgamento do caso Petrobras na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) da B3.
De acordo com notícia publicada no Valor Econômico, a ação envolve o pedido de ressarcimento a investidores pela prestação de informações falsas ou com erro divulgadas pela petrolífera entre 2010 e 2015. Embora o caso seja confidencial, de acordo com a reportagem, o tribunal considerou que o Código Civil poderia ser aplicado, responsabilizando a companhia e não seus administradores ou controladores pelos prejuízos ocasionados pela divulgação de informações falsas ou distorcidas. A companhia, por sua vez, declarou ao jornal que “a decisão proferida é parcial e meramente declaratória”.
“Entendemos que o assunto ainda não está pacificado na doutrina e jurisprudência, mas é preciso destacar que, também segundo informações públicas disponíveis, a sentença está em linha com aquela proferida em outra arbitragem envolvendo as mesmas alegações, com investidores distintos, também contra a Petrobras, que igualmente reconheceu a possibilidade de responsabilização civil da companhia”, afirmam Ricardo Mafra e Lucas Hermeto, sócios do Vieira Rezende Advogados.
A questão é controversa, explicam os advogados: “A Lei das S.A. é mais específica que o Código Civil, então ela se sobrepõe sempre que estabelecer uma regra clara. No caso de eventual lacuna da Lei das S.A., no entanto, é possível, em tese, aplicar o Código Civil de forma subsidiária, para preencher o vazio legislativo. É isso que diz o próprio Código Civil em seu artigo 1.089 (“A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código”).”
Por isso, frente ao silêncio da Lei das S.A. sobre a responsabilidade civil da companhia quanto ao ressarcimento de investidores, parte dos especialistas entende que é possível aplicar o Código. “Por outro lado, aqueles que entendem que o Código Civil não seria aplicável alegam que o silêncio da Lei das S.A. sobre o assunto foi intencional, com o objetivo de afastar as regras do regime geral de responsabilidade civil.”
A questão se coloca porque a Lei das S.As. não prevê a possibilidade de responsabilizar as companhias e, sim, seus controladores ou administradores — ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde companhias podem ser responsabilizadas (como ocorreu com a própria Petrobras em class actions movidas por investidores, após a Operação Lava-Jato). Se a empresa fosse obrigada a ressarcir acionistas, ela estaria sendo prejudicada duas vezes: a primeira vez pelos administradores e controladores, que agiram em desacordo, e a segunda pelo pagamento da indenização.
Mas, por outro lado, os administradores dispõem de um patrimônio menos robusto para o ressarcimento de investidores — e esse patrimônio não seria suficiente para pagar indenizações milionárias ou bilionárias. “Do ponto de vista da proteção do investidor, portanto, parece ser mais eficiente que o devedor da indenização seja a companhia, em vez do administrador, pois as chances de efetiva reparação são maiores”, consideram Mafra e Hermeto.
Essa não é, contudo, a linha que vem sendo seguida pelo legislador. O PL 2.2925/23, que propõe a mais profunda mudança na Lei das S.As. dos últimos vinte anos, tampouco mudou esse entendimento. Não foi aberta a possibilidade de responsabilização da companhia — a não ser quando ela se beneficie de informações falsas prestadas em oferta pública, por exemplo.
Na entrevista a seguir, Mafra e Hermeto abordam os dois lados da questão.
– Por que a Lei das S.As prevê apenas a possibilidade de responsabilização de controladores e administradores, e não das companhias, em decorrência de atos praticados em desacordo com a lei ou as normas?
Ricardo Mafra e Lucas Hermeto: A Lei das S.A. tem como escopo reger as relações internas da companhia (regras de natureza interna corporis). Talvez por isso ela seja silente quanto à responsabilidade civil da companhia perante terceiros. Para isso, é preciso recorrer às normas do Código Civil e outras legislações aplicáveis, como a Lei nº 6.385/1976 (Lei do Mercado de Capitais).
– O que a Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) julgou com relação ao caso Petrobras e qual foi o entendimento? Qual é a sua avaliação sobre o resultado do processo arbitral?
Ricardo Mafra e Lucas Hermeto: Como o caso é confidencial, não conhecemos os detalhes da decisão. No entanto, as informações públicas divulgadas em notícias indicam que a decisão foi “parcial”, não julgando o mérito do caso, mas apenas reconhecendo que, em tese, a companhia pode ser civilmente responsável perante os investidores, em função de informações falsas ou distorcidas prestadas ao mercado.
Entendemos que o assunto ainda não está pacificado na doutrina e jurisprudência, mas é preciso destacar que, também segundo informações públicas disponíveis, a sentença está em linha com aquela proferida em outra arbitragem envolvendo as mesmas alegações, com investidores distintos, também contra a Petrobras, que também reconheceu a possibilidade de responsabilização civil da companhia.
– A Lei das S.As se sobrepõe ao Código Civil, conforme alegado pela Petrobras? Ou o Código Civil poderia ser aplicado nas ações de investidores que buscam reparação por prejuízos sofridos?
Ricardo Mafra e Lucas Hermeto: A Lei das S.A. é mais específica que o Código Civil, então ela se sobrepõe sempre que estabelecer uma regra clara. No caso de eventual lacuna da Lei das S.A., no entanto, é possível, em tese, aplicar o Código Civil de forma subsidiária, para preencher o vazio legislativo. É isso que diz o próprio Código Civil em seu artigo 1.089 (“A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código”).
No silêncio da Lei das S.A. sobre a responsabilidade civil da companhia perante terceiros, parte dos especialistas entende que é possível aplicar o Código Civil, como parece ser o caso das demandas ajuizadas por investidores. Por outro lado, aqueles que entendem que o Código Civil não seria aplicável alegam que o silêncio da Lei das S.A. sobre o assunto foi intencional, com o objetivo de afastar as regras do regime geral de responsabilidade civil.
– Na prática, a impossibilidade de processar a empresa não implica em menor possibilidade de os investidores serem ressarcidos, uma vez que administradores dispõem de patrimônio muito menor do que as companhias, e que pode ser insuficiente para pagar indenizações? Haveria algum mecanismo de viabilizar a reparação aos minoritários sem que isso implicasse em um duplo prejuízo para a companhia, que pode ter sido prejudicada por atos dos administradores ou controladores e ainda ter que pagar indenizações?
Ricardo Mafra e Lucas Hermeto: De modo geral, é razoável afirmar que os administradores dispõem de um patrimônio menos robusto para indenizar os investidores do que a companhia aberta. Do ponto de vista da proteção do investidor, portanto, parece ser mais eficiente que o devedor da indenização seja a companhia, em vez do administrador, pois as chances de efetiva reparação são maiores.
Quanto ao prejuízo sofrido pela companhia, ela pode ajuizar contra o administrador ou o acionista controlador, nos termos dos artigos 159 e 246 da Lei das S.A., respectivamente, ação de responsabilidade civil para pleitear a indenização do dano que tenham causado com culpa ou dolo. Nessas ações, a companhia, diretamente ou sendo representada por seus acionistas, pode buscar reaver os valores que tenha desembolsado para indenizar os investidores.