Os desafios para privatizar a Cemig

Ainda em estágio preliminar, plano de desestatização da energética precisa superar resistências para ir adiante

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Bandeira da campanha eleitoral do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, a privatização da Cemig ainda tem mais perguntas do que respostas. Além de ainda não ter enviado para a Assembleia Legislativa o Projeto de Lei que tratará da venda do controle da companhia energética, há outra questão que se coloca: esse processo poderá se dar sem que os eleitores aprovem a venda da companhia? A Constituição de Minas Gerais estipula que estatais só podem ser privatizadas após a realização de um referendo popular.

Para retirar essa exigência, o governo enviou à Assembleia estadual a proposta de Emenda Constitucional nº 24/2023, que exclui os §§ 15º e 17º do artigo 14 da Constituição do Estado de Minas Gerais para permitir a privatização de estatais sem referendo popular e com o voto de apenas metade dos parlamentares – a aprovação da emenda seria etapa preliminar essencial para que a privatização possa avançar, explicam os advogados Claudio Pieruccetti e Érica Antunes, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados. Mas a proposta de emenda constitucional encontra muita oposição.

“Diante desse cenário, e considerando as polêmicas envolvidas na discussão, não se pode dizer que será uma disputa fácil. É possível que haja discussão sobre a legalidade da eliminação do referendo popular para privatização das estatais estaduais, principalmente sob o argumento de que a alteração da Constituição seria um retrocesso por diminuir a participação popular dos cidadãos mineiros no processo de desestatização”, avaliam Pieruccetti e Antunes.

Corporação

Os advogados do Vieira Rezende afirmam que, pelo que se sabe até agora, a modelagem prevista consiste na conversão das ações preferenciais da companhia em ações ordinárias – nessa nova configuração, o governo estadual, que controla a companhia com apenas 17,04% do total de ações da Cemig (correspondente a 50,97% das ações com direito a voto), deixará de ser controlador. Haveria a criação de ação de classe especial (golden share) para garantir que o voto estatal seja preponderante em votações estratégicas.

Na entrevista abaixo, Pieruccetti e Antunes abordam pontos relativos à privatização da Cemig.


Quais são os principais pontos do modelo de privatização da Cemig? 

Claudio Pieruccetti e Érica Antunes: Até o momento, não foi disponibilizado ao público o projeto de lei que trata da privatização da Cemig, mas tão somente a proposta de Emenda Constitucional nº 24/2023, que exclui os §§ 15º e 17º do artigo 14 da Constituição do Estado de Minas Gerais para permitir a privatização de estatais sem referendo popular e com o voto de apenas metade dos parlamentares.

O que se sabe sobre o modelo de privatização proposto para a Cemig provém de pronunciamentos do governador do Estado de Minas Gerais, que apresentou detalhes aos deputados de sua base aliada em outubro do ano corrente[1].

A modelagem prevista consiste na conversão das ações preferenciais da companhia, que possuem prioridade no recebimento de dividendos e não possuem poder de voto, em ações ordinárias. Com isso, o governo estadual, que hoje detém o controle com apenas 17,04% do total de ações da Cemig (correspondente a 50,97% das ações com direito a voto), deixará de ser controlador.

A fim de resguardar o interesse público envolvido na atividade da Cemig, o governador propõe a criação de ação de classe especial (golden share), que garantiria a preponderância do voto estatal em votações estratégicas.


Em quais matérias o Estado de Minas Gerais manteria poder de veto? A manutenção de 17,04% do capital, por parte do Estado, poderia configurá-lo como controlador, já que as demais ações seriam pulverizadas? 

Claudio Pieruccetti e Érica Antunes: Inicialmente, é importante destacar que cabe ao Estatuto Social da companhia privatizada dispor sobre os poderes conferidos aos detentores de ações de classe especial (golden share), sendo possível, por exemplo, que ato legislativo que autoriza a privatização a condicione à criação de golden shares que garantam ao ente desestatizante determinados poderes, como fez a União no caso da Eletrobras (artigo 3º, III, c da Lei Federal nº 14.182/2021).

Especificamente no caso da Cemig, na ausência de Projeto de Lei não é possível dizer com precisão quais seriam as matérias sujeitas ao veto do Estado.

O que se pode inferir tanto das manifestações do governador quanto da própria natureza das golden shares é que o poder de veto será restrito a determinados assuntos estratégicos de interesse público.

Nesse sentido, citamos a título de exemplo o caso da Vale, companhia privatizada nos anos 90, na qual um dos assuntos sujeitos ao exame da União é a alteração de sua sede (artigo 7º, II do Estatuto da Vale S.A.).

Uma vez que o governador do Estado de Minas Gerais assegurou que a sede da Cemig continuará a ser em Belo Horizonte[2], é possível especular que este seja um dos temas sujeitos ao voto afirmativo do Estado de Minas Gerais.

No Brasil, o conceito de controle societário é tratado pelo artigo 116 da Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.A.), que define o acionista controlador como sendo aquele que detém, de modo permanente, a maioria dos votos em assembleia geral, possuindo o poder de eleger administradores da companhia e que efetivamente utiliza seu poder para dirigir as atividades sociais.

No atual cenário, ainda que detenha apenas 17,04% das ações da Cemig, o governo possui poder de controle sobre a companhia, uma vez que é titular de 50,97% de suas ações ordinárias (com poder de voto), de forma que suas decisões preponderam em assembleia de acionistas.

Ocorrendo a conversão de suas ações em preferenciais sem direito a voto, o Estado de Minas Gerais deixaria de ter o poder de controle, uma vez que, embora continue com a mesma quantidade de ações, deixaria de ser capaz de ditar os rumos da companhia.


As discussões sobre a privatização da Cemig estão maduras? 

Claudio Pieruccetti e Érica Antunes: Embora a privatização da Cemig tenha sido uma bandeira da campanha eleitoral do atual governador, ainda não houve apresentação de Projeto de Lei formal para tratar da desestatização. Em paralelo, o que se colhe de informações na mídia é que o governador enfrentará oposição na Assembleia Legislativa não só na votação da privatização em si, mas também na aprovação do projeto de Emenda Constitucional que flexibiliza as formalidades das desestatizações estaduais e que, ao que parece, será etapa preliminar essencial da empreitada do governo.

Assim, a previsão é que o assunto ainda seja tema de extensos debates legislativos e da sociedade civil.


A privatização da Cemig depende de aprovação de emenda constitucional que elimine a necessidade de realização de um referendo popular. A proposta deve encontrar dificuldades para avançar na Assembleia Legislativa? Pode haver questionamentos sobre a legalidade da eliminação da necessidade de referendo?

Claudio Pieruccetti e Érica Antunes: Segundo a Constituição do Estado de Minas Gerais, é necessário o voto favorável de três quintos dos membros da Assembleia Legislativa para aprovação de Emenda à Constituição. Ou seja, dos 77 Deputados Estaduais, 47 precisam apoiar a proposta. De forma oficial, o governador tem o apoio de 57 parlamentares. Contudo, na prática este número pode diminuir, já que apenas 33 dos deputados estaduais constituem a base coesa da posição, enquanto 24 são provenientes de diversos partidos com posicionamentos variados.

Além disso, em consulta popular, a proposta de Emenda à Constituição Estadual enfrenta expressiva oposição[3].

Diante desse cenário, e considerando as polêmicas envolvidas na discussão, não se pode dizer que será uma disputa fácil.

É possível que haja discussão sobre a legalidade da eliminação do referendo popular para privatização das estatais estaduais, principalmente sob o argumento de que a alteração da Constituição seria um retrocesso por diminuir a participação popular dos cidadãos mineiros no processo de desestatização.


[1] Fonte: https://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/estado-propoe-transformacao-da-cemig-em-corporacao. Acesso em 6.11.23.

[2] Fonte: Idem

[3] Fonte: https://www.almg.gov.br/projetos-de-lei/PEC/24/2023. Acesso em 6.11.23.


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