Governo veta avanços em prol do contribuinte

Lei reintroduz voto de qualidade do Carf, mas dispositivos favoráveis a contribuintes ficam de fora

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Após algumas idas e vindas e muitas polêmicas, foi sancionada a Lei 14.689/23, que reintroduz o voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Houve também, contudo, 14 vetos a tópicos que beneficiavam os contribuintes. O Projeto de Lei  2.384/23 (PL do Carf) previa, por exemplo, a redução de multas e de garantias que os contribuintes precisam apresentar para discutir questões tributárias na Justiça – vetados na sua conversão em lei.

“De modo geral, os vetos prejudicam a louvável iniciativa de instituir uma aplicação mais individualizada das multas, punindo de forma mais grave aqueles contribuintes que realmente praticam atos dolosos, mas tratando de forma mais amena aqueles de comprovada boa-fé, que buscam reparar eventuais inconsistências e cujas condutas resultam de erros escusáveis. A criação de outros patamares de multas, variáveis a depender da conduta praticada, tornaria o sistema mais justo e adequado aos princípios que regem o ordenamento”, avaliam Sávio Hubaide e Rute Souza, associados do Freitas Ferraz Advogados.

Sobre a questão das garantias, o PL 2.384/23 previa que os contribuintes oferecessem seguro garantia ou fiança bancária relativos apenas aos valores principais, sem considerar multas e juros. Além disso, a liquidação antecipada de garantias ficaria proibida. E, caso o Fisco perdesse, teria que ressarcir o valor que o contribuinte gastou com a contratação e manutenção das garantias. Mas, com os vetos, somente serão dispensados de oferecer garantias os contribuintes que perderem julgamentos decididos pelo voto de qualidade, e desde que comprovem capacidade de pagamento. Para estes contribuintes, a liquidação das garantias só poderá ocorrer após o trânsito em julgado. Já os demais contribuintes, que não tiverem seus litígios administrativos solucionados pelo voto de qualidade, poderão ter suas garantias liquidadas antes do trânsito em julgado e não terão direito à restituição integral dos custos de contratação e manutenção.

Associados do Vieira Rezende Advogados, Bianca Mareque, Raphael Castro e Vinicius Varela consideram que o dispositivo que impedia a liquidação antecipada da garantia não traria qualquer dano ao Erário, mas apenas conferiria maior segurança aos contribuintes, que não precisariam fazer significativos desembolsos para garantir, mediante depósito judicial, executivos fiscais antes mesmo que o Judiciário se pronunciasse, de forma definitiva, sobre a procedência da cobrança. “Esse veto afeta inúmeros contribuintes e colabora para um crescente cenário de incertezas, diante da indefinição da jurisprudência acerca da possibilidade de execução antecipada da caução fornecida pelo executado”, avaliam.

Hubaide e Souza afirmam ainda que há diversos outros vetos relevantes, a começar pelo dispositivo que buscava incentivar a conformidade tributária, ordenando que a Receita Federal disponibilizasse métodos preventivos de autorregularização. Por estes, o contribuinte poderia ser notificado para sanar inconsistências sem configurar início de procedimento fiscalizatório.

O Congresso agora examinará os vetos. Os advogados do Vieira Rezende consideram que a versão final encaminhada para a sanção presidencial refletia o posicionamento majoritário do Poder Legislativo, e que este provavelmente tem interesse em estabelecer alguns dos dispositivos vetados. No entanto, eles ponderam que o exame de vetos acontece em sessão conjunta e as eventuais derrubadas dependem de maioria absoluta: “Por isso, diante da natural dificuldade de se alcançar esse quórum em votações contrárias ao Executivo, é possível que o reestabelecimento da redação original do PL 2.384/23 encontre bastante resistência.” Para eles, seria precipitado tentar antecipar o desfecho da questão.

Na entrevista abaixo, os advogados do Vieira Rezende e do Freitas Ferraz comentam os mais importantes vetos contrários ao contribuinte na Lei 14.689/23.


– A Lei 14.689/23, que reintroduz o voto de qualidade do Carf, foi sancionada com vetos. Com relação às garantias que os contribuintes precisam apresentar para discutir tributos na Justiça, o que foi vetado e quais contribuintes serão afetados?

Sávio Hubaide e Rute Souza: Os dispositivos vetados asseguravam aos contribuintes: (i) o oferecimento de seguro garantia ou fiança bancária somente para o valor principal atualizado, isto é, sem multas e juros, salvo para casos de pendências na regularidade fiscal, (ii) condicionavam a liquidação das garantias ao trânsito em julgado, vedada a atual liquidação antecipada, e (iii) previam que a Fazenda, se vencida, deveria restituir integralmente o custo atualizado com a contratação e a manutenção das garantias.

Com a redação atual aprovada, somente nos casos julgados favoravelmente à Fazenda pelo voto de qualidade, o contribuinte que ingressar em juízo será dispensado de oferecer as garantias desde que comprove capacidade de pagamento adequada. Nesses casos, ainda que o contribuinte não possua a capacidade de pagamento e ofereça garantia, a liquidação está condicionada ao trânsito em julgado.

Os vetos afetam diretamente todos aqueles contribuintes que não tenham seus litígios administrativos solucionados pelo voto de qualidade, na medida em que permanece em aberto o risco de a garantia poder ser liquidada antes do trânsito em julgado e não prevê a restituição integral dos custos de contratação e manutenção, situações essas bastante onerosas para os contribuintes que pretendem exercer seu direito constitucional de acesso ao Judiciário.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Vinicius Varela: No que se refere às garantias apresentadas nas execuções fiscais pelos contribuintes, o PL 2.384/23 trazia como importante inovação a possibilidade de o executado garantir, por seguro-garantia ou fiança bancária, apenas o valor do principal atualizado da dívida mantida pelo Carf por voto de qualidade pró-Fisco, sem que fossem incluídos os correspondentes encargos (multa e juros), e ainda, caso vencida, que a Fazenda Pública fosse compelida à ressarcir integralmente o contribuinte as despesas incorridas para contratação de caução.

No entanto, referido dispositivo foi vetado pelo Presidente da República com a justificativa de que essa alteração contrariaria o interesse público e modificaria toda a sistemática da Lei de Execuções Fiscais. Somado a isso, argumentou-se que não se poderia imputar à União a obrigação de arcar com os custos resultantes da contratação de garantia pelo contribuinte, diante da sua ingerência quanto às condições de contratação das garantias utilizadas pelos contribuintes e duração do processo, elementos que influem diretamente na definição do valor do prêmio e encargos pagos à instituição financeira.

Cabe destacar que o citado dispositivo ainda previa a expressa impossibilidade de liquidação antecipada da garantia pela Fazenda Pública. Isto é, que a caução oferecida pelo contribuinte fosse executada antes do trânsito em julgado de decisão favorável ao Fisco. Segundo a Presidência, referida alteração “fragilizaria o processo de cobrança, indo de encontro à jurisprudência nacional”.

Esse veto afeta inúmeros contribuintes e colabora para um crescente cenário de incertezas, diante da indefinição da jurisprudência acerca da possibilidade de execução antecipada da caução fornecida pelo executado.

Ainda sobre isso, é preciso destacar que o dispositivo vetado não traria qualquer dano ao Erário, ao contrário do que aduz a Presidência ao afirmar que “a impossibilidade de execução imediata dessas espécies de garantia fragilizaria o processo de cobrança”, mas apenas conferiria maior segurança aos contribuintes de que não seriam compelidos a realizar significativos desembolsos para garantir, mediante depósito judicial, executivos fiscais antes mesmo que o Judiciário se pronuncie, de forma definitiva, acerca da procedência da cobrança.


– Com relação à impossibilidade de haver multas superiores a 100% – que era prevista pelo PL 2.384/23, mas foi vetada na conversão em lei, como fica a situação do contribuinte? O STF já não havia limitado as multas qualificadas a 100%? O contribuinte precisará recorrer ao Judiciário para pleitear abatimento das multas, caso o veto não seja derrubado?

Sávio Hubaide e Rute Souza: O STF possui a jurisprudência consolidada de que as multas não podem ultrapassar 100% do valor do tributo exigido. No entanto, especificamente sobre a multa qualificada no antigo patamar de 150%, que exige a presença comprovada de fraude, sonegação ou conluio, sua constitucionalidade está pendente de julgamento no tema nº 863 de Repercussão Geral.

Na redação aprovada, a multa qualificada passa a ser de 100%, e o percentual de 150% fica reservado aos casos de reincidência, definida quando o contribuinte praticar novamente os atos dolosos no prazo de dois anos do primeiro lançamento.

Como a multa de 150% possui o novo requisito da reincidência, o contribuinte pode questionar o patamar no Judiciário, solicitando a aplicação do limite de 100%. Ainda, em relação ao novo patamar da multa qualificada de 100%, pode-se pleitear a chamada retroatividade benigna para reduzir as antigas penalidades de 150% aplicadas antes da vigência da Lei nº 14.689/23 e pendentes de julgamento.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Vinicius Varela: O artigo 14 do PL 2.384/23, aprovado pelo Senado, solucionava a controvérsia acerca da limitação das multas qualificadas a 100% do valor do crédito tributário cobrado, ao determinar que a Procuradoria da Fazenda Nacional deveria cancelar, de ofício, a penalidade que superasse referido percentual, e isso, “independentemente de provocação do contribuinte”.

Em oposição, o Ministério da Fazenda sugeriu que referido dispositivo fosse vetado, com a justificativa de que a impossibilidade de se exigir penalidade em valor superior ao do crédito tributário “(impossibilitaria a) proteção eficiente dos bens jurídicos tutelados”. Além disso, sinalizou que o Congresso Nacional “parece reconhecer a constitucionalidade de dispositivo legal que imponha multa superior a 100% do valor do tributo, a depender da gravidade da infração”, já que o “Projeto de Lei nº 2.384, de 2023, (estabeleceu) multa de 150% (cento e cinquenta por cento) para o caso de reincidência de determinadas condutas”, como consignado na justificativa do veto.

Mantido esse veto, caberá, portanto, ao Supremo Tribunal Federal dirimir a discussão quanto à (in)constitucionalidade da exigência de multas de ofício em percentual superior a 100% do principal, controvérsia que decorre da interpretação do artigo 150, IV, da Constituição Federal (CRFB/88), dispositivo constitucional que positivou o princípio do não-confisco.

Sobre isso, recorda-se que, por ocasião do julgamento do ADI nº 551, o STF já havia se pronunciado pela inconstitucionalidade de dispositivo legal que fixasse multa em percentual superior à 100% do valor do principal.

Contudo, como destacado pelo Ministério da Fazenda na justificativa ao veto do artigo 14 do PL 2.384/23, “o assunto tratado nesse dispositivo não está necessariamente pacificado pela Jurisprudência, porquanto encontra-se, atualmente, em análise por parte do Supremo Tribunal Federal, em razão de repercussão geral reconhecida no RE 736090 (Tema 863)”.

Acontece que, para além do entendimento exarado pelo STF na ADI nº 551 ou da tese que seja fixada para o Tema Repercussão Geral nº 863, fato é que inexiste qualquer óbice que impeça que o Legislativo modifique a norma atualmente vigente para prever a limitação da multa de ofício a 100% do valor do principal do débito.

Assim, com o veto ao artigo 14 da PL 2.384/23, retirou-se do Poder Legislativo a valiosa oportunidade de protagonizar, como agente solucionador, este longo embate entre o Fisco e os contribuintes, devolvendo ao Judiciário a prerrogativa de pacificar a discussão acerca da existência de limite para multa qualificada.


– Há outros vetos relevantes? Qual é a sua avaliação sobre os vetos?

Sávio Hubaide e Rute Souza: Sim, há diversos outros vetos relevantes, a começar pelo dispositivo que buscava incentivar a conformidade tributária, ordenando que a Receita Federal disponibilizasse métodos preventivos de autorregularização, em que o contribuinte poderia ser notificado para sanar inconsistências sem configurar início de procedimento fiscalizatório (mantida a possibilidade de denúncia espontânea).

Quanto às penalidades, foram vetados dispositivos que: permitiam a redução da multa de ofício em pelo menos 1/3 e da multa de mora em 50% nas medidas de incentivo à conformidade; que determinavam a individualização das condutas de qualificação da multa; que afastavam a qualificação quando o contribuinte divulgasse suas condutas ou tentasse sanar as inconsistências no curso da fiscalização; que reduziam a multa de ofício para 25% quando o lançamento decorresse de erro escusável, divergência interpretativa, ou quando o contribuinte tivesse agido conforme as práticas reiteradas da RFB; e que afastavam a multa de ofício em caso de histórico positivo de conformidade do sujeito passivo. Foi vetado, ainda, dispositivo que determinava o cancelamento automático, pela Fazenda Nacional, de todo o montante de multas inscritas em dívida ativa superiores a 100% do tributo.

De modo geral, os vetos prejudicam a louvável iniciativa de instituir uma aplicação mais individualizada das multas, punindo de forma mais grave aqueles contribuintes que realmente praticam atos dolosos, mas tratando de forma mais amena aqueles de comprovada boa-fé, que buscam reparar eventuais inconsistências e cujas condutas resultam de erros escusáveis. A criação de outros patamares de multas, variáveis a depender da conduta praticada, tornaria o sistema mais justo e adequado aos princípios que regem o ordenamento.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Vinicius Varela: Dentre as demais medidas vetadas, é pertinente destacar os dispositivos que previam a redução das multas de ofício e de mora, o perdão de dívidas e a possibilidade de transação tributária.

Sobre a redução das multas de ofício e de mora, o inciso IV, do artigo 7º, do Projeto de Lei 2.384/23 previa a possibilidade de redução da multa de ofício em 1/3 nas hipóteses de “erro escusável do sujeito passivo” ou quando se tratasse de conduta praticada, pelo contribuinte, “de acordo com as práticas reiteradas adotadas pela Administração ou pelo segmento de mercado em que estiver”. Tal previsão decorria do reconhecimento da possibilidade de o sujeito, de boa-fé, incorrer no cometimento de equívocos, face à inconteste complexidade do sistema tributário brasileiro.

De todo modo, referida previsão foi vetada, sob a alegação de falta de balizas claras acerca da aplicação desta redução, o que ocasionaria insegurança jurídica. Além disso, a Presidência da República defendeu que a redução expressiva de uma penalidade prejudicaria a sua natureza punitiva, ao afirmar que “na hipótese de eventual multa de ofício com patamar insignificante ou excessivamente reduzido, as finalidades de retribuição e prevenção certamente não seriam alcançadas”.

Outro dispositivo relevante objeto de veto pela Presidência possibilitava o perdão de dívidas daqueles contribuintes que possuíssem bom histórico de conformidade com a Receita. Nesse sentido, o dispositivo que alterava o § 7º, do artigo 44, da Lei nº 9.430/1996, trazia a possibilidade de cancelamento da multa de 75% nos casos de lançamento de ofício em que houvesse falta de pagamento ou recolhimento, de declaração ou de declaração inexata do tributo.

Dentre as razões para esse veto, mais uma vez se sustentou a inadequação quanto ao interesse público, vez que o dispositivo, supostamente, traria insegurança jurídica tendo em vista que: “(1) não estabelece a competência, tampouco o procedimento a ser aplicado para relevação da pena; e (2) utiliza expressão genérica, ‘histórico de conformidade’, e não delimita o seu alcance”.

Por fim, outro relevante dispositivo vetado previa a possibilidade de transação tributária dos créditos originários das hipóteses em que a Fazenda Pública se sagrasse vencedora na discussão por meio do voto de qualidade. Para o Poder Executivo, a redação violaria o princípio da isonomia, ao prever transação com “condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos”. Além disso, referido dispositivo também não teria estabelecido as balizas ou condições para a aplicação desse benefício.


– É provável que o Congresso rediscuta os vetos e que a limitação das multas a 100% e a redução das garantias sejam reinseridas na lei? 

Sávio Hubaide e Rute Souza: O Congresso obrigatoriamente apreciará os vetos, em sessão conjunta das duas Casas, conforme prevê o rito legislativo, e sua derrubada depende de voto da maioria absoluta. No entanto, não é possível prever qual será o resultado, pois se trata de decisão majoritariamente política.

Bianca Mareque, Raphael Castro e Vinicius Varela: Diante da rapidez com que o Projeto de Lei tramitou nas duas casas legislativas e das pontuais alterações realizadas pelo Senado, em relação ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados, se constata que a versão final encaminhada à Presidência da República, efetivamente, refletia o posicionamento majoritário do Poder Legislativo acerca da matéria. Assim, diante da solidez do entendimento exarado pelo Legislativo durante a tramitação deste PL, é possível supor que haja interesse em reestabelecer alguns dos dispositivos vetados.

Ocorre que o exame de vetos, pelo Congresso Nacional, acontece em sessão conjunta e as eventuais derrubadas dependem de maioria absoluta. Por isso, diante da natural dificuldade de se alcançar esse quórum em votações contrárias ao Executivo, é possível que o reestabelecimento da redação original do PL 2.384/23 encontre bastante resistência.

Assim, por ora, entendemos que seja precipitado antecipar qual será o entendimento do Congresso Nacional acerca desses vetos.


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