Novo regimento do Carf requer atenção

Possível excesso de reuniões assíncronas e impossibilidade de interpor recursos geram preocupação

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O novo regimento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), vigente desde o início deste ano, deve contribuir para acelerar os julgamentos no órgão e reduzir os estoques de processos. Apesar de a atualização das regras ter sido bem recebida, ela também gera algumas preocupações e dúvidas.

O novo regimento veio num contexto de expectativa, por parte do governo, de que parcela dos recursos necessários para aumentar a arrecadação venha de ações no âmbito do Carf, inclusive pela volta do voto de qualidade. Na pressa, a modificação no regimento não foi aberta à participação de órgãos representantes da advocacia, da academia e de entidades representantes dos contribuintes – como historicamente costumava ocorrer.

Embora vejam diversos pontos positivos no novo regimento, Pedro Simão e Sávio Hubaide, sócio e associado do Freitas Ferraz Advogados, consideram que há também pontos de preocupação como um possível excesso na adoção das sessões assíncronas, a redução das possibilidades de indicação de paradigmas para recursos especiais, a ampliação das hipóteses de impossibilidade de interposição de agravo contra decisões monocráticas que neguem seguimento aos recursos especiais, que serão liminarmente rejeitados.

Quanto às reuniões assíncronas, o novo regimento ampliou a sua utilização. Cada reunião poderá durar até cinco dias úteis e os conselheiros podem depositar seus votos dentro desse prazo. “O problema das sessões assíncronas é que sua utilização não pode se tornar a regra geral. No novo regimento, as partes podem pedir a retirada da sessão assíncrona com base em critérios subjetivos como a elevada complexidade de análise de provas, sujeitos a apreciação monocrática da presidência em decisões irrecorríveis”, consideram Simão e Hubaide. Para eles, seria mais positivo se a sessão assíncrona fosse automaticamente retirada a pedido das partes, inclusive para dar eficácia ao direito de uso da palavra, pela ordem, previsto no Estatuto da Advocacia.

Pontos de preocupação

Outra alteração trazida pelo novo regimento é que o presidente da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) pode decidir, de forma monocrática, não analisar um recurso do contribuinte contra decisão proferida em primeira instância do Carf, se esta decisão tiver aplicado um precedente do Supremo Tribunal Federal (em controle concentrado de constitucionalidade, súmula vinculante do Supremo ou do Carf). O contribuinte não poderá interpor agravo contra a decisão monocrática – o que gera preocupação quanto ao uso desse poder.

“É fundamental que os contribuintes tenham seus recursos apreciados e que as regras de não conhecimento dos recursos supostamente contrários a decisões vinculantes/súmulas, sejam aplicadas com a devida cautela, por exemplo. Um ajuste no regimento para prever um recurso expresso contra decisões de não conhecimento dos recursos voluntários seria muito relevante”, avaliam Frederico Bakkum e Renan D’ Elia, associados do Vieira Rezende Advogados.

Eles também consideram muito relevante que não se passe por cima das decisões vinculantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o argumento de poder existir, em tese, questão constitucional a ser analisada. A preocupação se refere a ponto do novo regimento que prevê que o Carf poderá deixar de aplicar o precedente do STJ firmado em sede de recursos repetitivos, mas cuja matéria será apreciada pelo STF em sede de repercussão geral. “É necessário que se faça uma avaliação honesta dos casos efetivamente envolvam teses passíveis de análise constitucional, para não se esvaziar as decisões vinculantes do STJ e se encher o Judiciário de casos que já foram apreciados pela Corte Superior, com base na legalidade.”

“Maior celeridade no julgamento dos processos administrativos é absolutamente desejável. No entanto, é imprescindível e mais importante que as questões sejam apreciadas com os cuidados devidos, observando a legalidade e a isonomia”, concluem Bakkum e D’Elia.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende abordam alguns pontos do novo regimento interno do Carf.


– O Carf conta com um novo regimento interno. Qual é a importância de sua atualização? 

Sávio Hubaide e Pedro Simão: A atualização do regimento interno de órgãos julgadores como o Carf é importante, especialmente quando focada em conferir maior celeridade ao trâmite dos processos, o que está em consonância com os princípios da eficiência administrativa e da duração razoável dos processos. Todavia, a busca pela eficiência e modernização do processo administrativo não pode ser realizada a qualquer custo, o que significa dizer que é fundamental preservar os direitos de defesa dos contribuintes.

Quanto ao novo regimento, chama a atenção o fato de ter sido publicado sem que tivesse sido aberta à participação de órgãos representantes da advocacia, da academia e de entidades representantes dos contribuintes. Historicamente, alterações anteriores como essa foram objeto de consultas públicas, permitindo um debate mais democrático na elaboração dos regimentos.

Há diversos pontos positivos, alguns dos quais serão abordados à frente. Por outro lado, há pontos de preocupação, como: um possível excesso na adoção das sessões assíncronas; redução das possibilidades de indicação de paradigmas para recursos especiais; ampliação das hipóteses de impossibilidade de interposição de agravo contra decisões monocráticas que neguem seguimento aos recursos especiais, que serão liminarmente rejeitados.

Frederico Bakkum e Renan D’ Elia: Com o tempo, é natural e salutar que o regimento interno do Carf passe por atualizações, em especial de modo a acompanhar a evolução da legislação processual.

Em 2015, por exemplo, acompanhando o novo Código de Processo Civil, foi introduzida a necessidade de as decisões do Carf observarem a jurisprudência vinculante do STJ (recursos repetitivos) e do STF (repercussão geral), trazendo maior previsibilidade e eficiência para o sistema, evitando discussões decisões administrativas não isonômicas e disputas desnecessárias no âmbito do Poder Judiciário.

As novas atualizações, aprovadas pela Portaria MF 1634/2023, pretendem endereçar algumas questões que se apresentaram nos últimos anos, tais como as seguintes: quando um precedente passa a ser vinculante, assim que proferido o acórdão ou há necessidade de trânsito em julgado? Um precedente vinculante do STJ deve ser aplicado imediatamente, mesmo quando haja questão constitucional envolvida na tese, a ser analisada pelo STF?


– Uma das mudanças diz respeito à necessidade de observância dos precedentes dos tribunais superiores. Em que ocasiões isso deve ocorrer, quais são as exceções e o que isso significa? 

Sávio Hubaide e Pedro Simão: O novo regimento interno determina que os conselheiros devem observar as decisões proferidas pelo STF ou pelo STJ, desde que proferidas na sistemática de repercussão geral ou dos recursos repetitivos, e que tenham transitado em julgado. Além da condição expressa do trânsito em julgado, o regimento reforça, no parágrafo único do artigo 99, que não será aplicado o recurso repetitivo do STJ caso haja recurso extraordinário com repercussão geral conhecida pendente de julgamento.

Ainda, o regimento prevê que a afetação de temas de repercussão geral ou em recursos repetitivos não permite o sobrestamento dos processos administrativos, salvo nos casos em que houver acórdão de mérito proferido, mas ainda não transitado em julgado, que tenha declarado a inconstitucionalidade ou a ilegalidade da norma em análise.

A aplicação dos precedentes vinculantes e as hipóteses de sobrestamento são positivas, pois privilegiam a eficiência e a economia processual, evitando situações em que o Carf proferia decisões em que já se sabia de antemão que seriam revertidas pelo Poder Judiciário, e para evitar aplicação de precedentes não transitados em julgado, que poderiam ser alterados.

Por fim, o novo regimento prevê que não se conhecerá de recurso voluntário interposto contra decisões de primeira instância fundadas em súmulas vinculantes do STF, ou em julgados da Suprema Corte, transitados em julgado, em ADI e ADC.

As exceções previstas são: (i) o recurso que envolver outras matérias além daquelas objeto dos precedentes vinculantes, ou (ii) o recurso que demonstrar por motivos de fato ou de direito que as razões de decidir baseadas nos precedentes não se aplicam ao caso concreto (prática conhecida como distinguishing).

Entretanto, o regimento deixa dúvidas sobre as exceções. Não está claro se as presidências das turmas avaliarão somente a existência ou não de arguição desse distinguishing, do ponto de vista formal, ou se examinarão o mérito da argumentação do recurso, para verificar a pertinência ou não das alegações. Essa questão é relevante, pois a decisão de inadmissibilidade é irrecorrível.

Frederico Bakkum e Renan D’ Elia: Com base neste novo regimento interno do Carf, não será conhecido o recurso voluntário e/ou de ofício que esteja em desacordo com decisão plenária transitada em julgado, proferida pelo STF em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), em Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e Súmula Vinculante do STF, ou que esteja em descordo com súmula publicada pelo próprio Carf.

A despeito disso, não serão enquadradas nessa hipótese de não conhecimento os recursos que detiverem outra matéria a ser apreciada pelo Carf ou que contenham argumentos no sentido de não ser aplicável (distinguish) o enunciado das súmulas e/ou os paradigmas do STF acima elencados no caso concreto.

Além disso, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros do Carf as decisões de mérito transitadas em julgado, proferidas pelo STF, em sede de repercussão geral, e pelo STJ, na sistemática dos recursos repetitivos. Por outro lado, essa determinação não será aplicável aos casos em que houver recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, pendente de julgamento pelo STF sobre o mesmo tema que fora decidido pelo STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos.

Com efeito, se o STJ firmar um entendimento em sede de recursos repetitivos, mas cuja matéria será apreciada pelo STF, em sede de repercussão geral, o Carf poderá deixar de aplicar o precedente do STJ, tendo em vista a possibilidade de mudança de entendimento (overruling) pelo Supremo.

E mais, será obrigatório o sobrestamento dos casos em que houver acórdão de mérito do STF, em sede de repercussão geral, ou do STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, já proferidos, mas ainda não transitado em julgado.

Contudo, não é permitido o sobrestamento do julgamento do processo pelo Carf quando houver apenas decisão de afetação de tema segundo a sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, sem que haja o respectivo julgamento pelos tribunais superiores. Com isso, a mera formação do Tema (repercussão geral ou recursos repetitivos) não autoriza, automaticamente, a suspensão do julgamento do processo no Carf.


– O que são as súmulas do Carf e o que muda em relação a elas?

Sávio Hubaide e Pedro Simão: As súmulas representam a orientação do Carf quanto a temas cujo entendimento já foi analisado de forma ampla pela existência de diversas decisões no mesmo sentido. Trata-se da uniformização da jurisprudência, privilegiando a isonomia.

No regimento antigo, as súmulas poderiam ser aprovadas somente em deliberações do órgão pleno do tribunal, convocadas anualmente, o que resultava num procedimento mais lento. Agora, as súmulas poderão ser aprovadas nas sessões ordinárias das turmas da Câmara Superior, desde que respeitada a competência quanto à matéria.

Além disso, qualquer conselheiro de turma da Câmara Superior pode propor enunciados de súmulas, com base em três acórdãos proferidos por unanimidade ou maioria, que serão deliberadas pelo pleno ou em sessões da Turma, a depender da matéria. Apesar da boa iniciativa de conferir celeridade à edição de súmulas, sua aprovação em sessões das turmas pode reduzir a participação de outros interessados, o que é importante, pois as súmulas vinculam as demais decisões administrativas.

Frederico Bakkum e Renan D’ Elia: Basicamente, as súmulas do Carf reproduzem uma interpretação pacífica do Carf sobre determinado assunto, a partir da constatação de decisões reiteradas e uniformes sobre a matéria. Nesse sentido, vale dizer que o entendimento consignado na súmula deverá ser seguido obrigatoriamente tanto pela primeira instância, nas Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ), quanto pelas próprias Turmas e Câmaras do Carf e pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF).

Uma primeira mudança a ser destacada é a promovida pelo artigo 124, do novo regimento interno do Carf, segundo o qual poderá ser proposto enunciado de súmula com relação a tese adotada em três acórdãos concordantes proferidos por unanimidade ou maioria. Antes, para que houvesse a proposta de súmula, deveriam ser observados, no mínimo, cinco acórdãos concordantes sobre o tema ao invés de três, como previsto no novo regimento interno.

Outra alteração diz respeito à competência para apreciação e aprovação de súmula no Carf. Anteriormente, o ritual de aprovação de súmulas estava concentrado no Pleno da CSRF. Agora, além do Pleno, as próprias Turmas da CSRF poderão aprovar súmulas, com um rito mais célere e simplificado.

No passado, as súmulas propostas eram encaminhadas ao presidente do órgão, o qual, por sua vez, convocaria sessões anuais para apreciação e aprovação do verbete sumular. Agora, as súmulas poderão ser analisadas e aprovadas pelas próprias Turmas da CSRF, em sessão de julgamento ordinário, desde que estejam relacionadas única e exclusivamente à competência da Turma. Em outras palavras, ficou mais simples a aprovação de súmulas no âmbito do Carf.


– O novo regimento visa aumentar a celeridade dos julgamentos e reduzir o estoque dos processos. Em sua visão, esses objetivos serão alcançados?

Sávio Hubaide e Pedro Simão: O estoque de processos tende a ser significativamente esvaziado. Medidas como a redução do número de julgadores de oito para seis, com a possível ampliação da quantidade de turmas, certamente permitirão o julgamento de um maior número de processos.

Outra medida que tende a esvaziar o estoque de processos é a adoção das sessões assíncronas, inspirada nas sessões virtuais do STF, que ganharam destaque durante a pandemia. O problema das sessões assíncronas é que sua utilização não pode se tornar a regra geral. No novo regimento, as partes podem pedir a retirada da sessão assíncrona com base em critérios subjetivos como a elevada complexidade de análise de provas, sujeitos a apreciação monocrática da presidência em decisões irrecorríveis. Outro problema é o curto prazo de cinco dias corridos para a apresentação dos pedidos.

Seria mais positiva a retirada automática da sessão assíncrona a pedido das partes, inclusive para dar eficácia ao direito de uso da palavra, pela ordem, previsto no Estatuto da Advocacia.

Frederico Bakkum e Renan D’ Elia: Maior celeridade no julgamento dos processos administrativos é absolutamente desejável. No entanto, é imprescindível e mais importante que as questões sejam apreciadas com os cuidados devidos, observando a legalidade e a isonomia.

É fundamental que os contribuintes tenham seus recursos apreciados e que as regras de não conhecimento dos recursos supostamente contrários a decisões vinculantes/súmulas, sejam aplicadas com a devida cautela, por exemplo. Um ajuste no regimento para prever um recurso expresso contra decisões de não conhecimento dos recursos voluntários seria muito relevante.

Também é muito relevante que não se passe por cima das decisões vinculantes do STJ, sob o argumento de poder existir, em tese, questão constitucional a ser analisada. É necessário que se faça uma avaliação honesta dos casos efetivamente envolvam teses passíveis de análise constitucional, para não se esvaziar as decisões vinculantes do STJ e se encher o judiciário de casos que já foram apreciados pela Corte Superior, com base na legalidade.

Numa análise preliminar, as mudanças postas no novo regimento têm potencial para dar maior celeridade ao sistema, principalmente no que tange a casos relacionados a teses tributárias. Casos que demandem uma análise mais detida de questões de fato, questões comprobatórias etc., devem ser menos afetados.

Essa tendência de celeridade, contudo, nem sempre se concretizará. A previsão de sobrestamento de processos relacionados a teses já julgadas pelo STJ/STF, em recursos vinculantes, mas ainda não transitadas, deve trazer um cenário de maior estabilidade e previsibilidade ao sistema, o que é positivo, mas que pode impactar negativamente no prazo de julgamento dos processos.

De fato, ainda é cedo para cravarmos uma maior celeridade nos julgamentos: há necessidade de testar as novas regras e de dar continuidade à evolução do sistema processual, para construirmos um ambiente de julgamento justo, legal e, por fim, mais célere.


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