Mudanças no Carf: o tiro vai sair pela culatra?

Volta do voto de qualidade e restrições de acesso ao conselho devem aumentar judicialização e insegurança jurídica

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Extinto em 2020, o voto de qualidade do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) renasceu recentemente, com a publicação da Medida Provisória 1.160/23 – que integra o pacote de ajuste fiscal anunciado em janeiro pelo governo. E essa ressurreição está fazendo ressurgir também toda a polêmica que envolvia o uso do instituto.

Seu fim havia sido comemorado por tributaristas e contribuintes, e a sua volta é vista como um passo atrás: “Não há dúvidas de que o retorno do voto de qualidade representa um retrocesso, pois claramente busca chancelar o Carf como um órgão estritamente com fins arrecadatórios, deixando em segundo plano a sua primordial função de controle da legalidade dos atos administrativos e neutralizando a sua autonomia técnica para decidir as controvérsias entre Fisco e contribuintes em âmbito administrativo”, afirmam os advogados Bruna Luppi e Raphael Castro, sócia e associado do Vieira Rezende Advogados.

O voto de qualidade prevê que, quando houver empate nos julgamentos envolvendo impostos, o desempate seja feito por um conselheiro do Carf que representa a Fazenda Nacional, o que geralmente beneficia o Fisco e prejudica o contribuinte. Desde a promulgação da Lei 13.988/20, quando havia empate, os contribuintes eram beneficiados. Agora, a balança voltará a pender para o Fisco. Luppi e Castro esperam um aumento da procura pelo Judiciário por parte dos contribuintes derrotados em função do voto de qualidade, mas também pelas restrições de acesso ao órgão.

Os contribuintes também enfrentam dificuldades com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade do fim do voto qualidade, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.399, 6.403 e 6.415. A maioria dos votos até agora considera legítimo o fim do instituto. Se esse entendimento persistir, a extinção valeria apenas a partir da Lei 13.988/20 e até a conversão da MP 1.160/23 em lei, caso o Congresso a aprove.  Mas nada impediria a instauração de uma nova discussão no STF, questionando a validade da MP, avaliam os advogados.

A volta do voto de qualidade do Carf é apenas uma das medidas anunciadas pelo governo com relação ao funcionamento do conselho. Agora, o Fisco não é mais obrigado a recorrer ao Carf quando perder para os contribuintes na primeira instância em casos com valores abaixo de 15 milhões de reais. A decisão na primeira instância será definitiva. Até então, o limite mínimo para o chamado recurso de ofício era de 2,5 milhões de reais A medida beneficia o contribuinte e pode contribuir para reduzir a carga de trabalho do Carf.

Por outro lado, existe a possibilidade de a Fazenda Nacional recorrer à Justiça quando for derrotada no Carf, o que era vetado. Há uma sinalização de que isso ocorreria em situação excepcional, quando a decisão administrativa final favorável ao contribuinte for manifestamente contrária à jurisprudência consolidada nos tribunais superiores.  Luppi e Castro consideram que, a ser mantida essa possibilidade, é imprescindível que haja uma clara normatização dessas hipóteses. “Caso contrário, poderia haver um grande esvaziamento da atividade do Carf e a instauração de um enorme ambiente de insegurança jurídica aos contribuintes, que serão obrigados a aguardar o decurso do prazo prescricional para terem a certeza da efetiva extinção do crédito tributário cancelado pelo Carf”.

Outro ponto é o aumento do limite de alçada para que os processos sejam elegíveis a cheguem ao Carf, que passou de 60 para mil salários-mínimos. Os advogados do Vieira Rezende questionam o critério para acessar o conselho, que foi baseado no valor e não na complexidade das causas, e também porque estabelecem uma barreira do ponto de vista constitucional por violação à legalidade, à ampla defesa e ao devido processo legal.

Outras medidas para reduzir o litígio fiscal foram recentemente anunciadas no mesmo pacote fiscal, como o programa Litígio Zero e a exclusão do ICMS da base de cálculo do Pis e da Cofins.

Na entrevista abaixo, Luppi e Castro explicam as mudanças e abordam as suas possíveis consequências.


 – Quais são as medidas anunciadas pelo governo com relação ao funcionamento do Carf? O que ainda falta ser regulamentado?

Bruna Luppi e Raphael Castro: Para compreendermos a dimensão das recentes medidas anunciadas pelo governo federal em relação ao funcionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), inicialmente, é imprescindível identificarmos qual seria a motivação de se investir tamanha energia nesse tema.

Verificamos que a principal medida anunciada vai, justamente, na direção do aumento da arrecadação e redução do déficit fiscal. O voto de qualidade pró-fisco havia sido anteriormente substituído pelo desempate pró-contribuinte, previsto na Lei nº 13.988/20 – que acrescentou o artigo 19-E na Lei nº 10.522/02, e agora volta com a revogação trazida pelo artigo 5º da Medida Provisória (MP) nº 1.160/2023.

Ainda em relação à sistemática de funcionamento do Carf, observamos duas outras relevantes mudanças: o fim do recurso de ofício contra decisões favoráveis aos contribuintes em casos com valores abaixo de 15 milhões de reais, superando, com bastante margem, o limite de 2,5 milhões que até então vigorava; e, ainda, se sugeriu a expressiva majoração do limite de alçada para que os processos sejam elegíveis a chegarem ao Carf, já que em substituição ao teto de 60 salários-mínimos, teríamos como base mínima 1.000 salários-mínimos.

Por outro lado, sinalizou-se a possibilidade de autorizar que a Fazenda Nacional, derrotada no Carf, prossiga com a discussão na esfera judicial. Ainda que se tenha sinalizado que essa seria uma situação excepcional, aplicável somente quando a decisão administrativa final favorável ao contribuinte for manifestamente contrária à jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, caso se mantenha a defesa desta possibilidade que, historicamente, sabe-se que já foi aventada antes e, conforme ensina a doutrina e estudos amplos sobre o tema, é amplamente questionável, é imprescindível que haja uma clara normatização das restritas hipóteses em que seja possível o ajuizamento de ação judicial pela Fazenda Nacional, com critérios objetivos e taxativos. Caso contrário, poderia haver um grande esvaziamento da atividade do Carf e a instauração de um enorme ambiente de insegurança jurídica aos contribuintes, que serão obrigados a aguardar o decurso do prazo prescricional para terem a certeza da efetiva extinção do crédito tributário cancelado pelo Carf.


– Quais seriam os efeitos esperados, para o fisco e para os contribuintes, com a volta do voto de qualidade do Carf? E qual é o futuro do voto de qualidade, considerando que o STF também está julgando a questão?

Bruna Luppi e Raphael Castro: O efeito mais imediato e que será rapidamente sentido será uma nova reviravolta jurisprudencial no Tribunal Administrativo, pois temas polêmicos decorrentes de autuações milionárias – e até bilionárias, que vinham sendo decididos a favor dos contribuintes ao longo dos últimos dois anos em razão do desempate pró-contribuinte a partir da Lei nº 13.988/20, tendem a ter desfecho favorável ao Fisco com o retorno do voto de qualidade. Sobretudo considerando que essa volta do critério de desempate por voto duplo tem conotações políticas e fins explicitamente arrecadatórios e, ainda, a conhecida posição fiscalista do novo presidente do referido órgão de julgamento.

Daí decorre, naturalmente, um consequente aumento da procura dos contribuintes pelo Poder Judiciário para questionar os créditos tributários que venham a ser definitivamente constituídos após o encerramento do contencioso administrativo em razão da aplicação do voto de qualidade.

Também não podemos descartar eventual iniciativa da Fazenda Nacional em buscar reverter decisões já definitivas a favor dos contribuintes, proferidas pelo Carf em razão de empate ocorrido na vigência da Lei nº 13.988/20. Como se sabe, ao longo dos últimos dois anos, os contribuintes passaram a obter vitória em casos que envolvem temas polêmicos e cifras não raras vezes astronômicas, justamente porque o empate passou a ser decidido a seu favor. A Fazenda Nacional poderia, de alguma forma, tentar reverter essas decisões definitivas por meio de ações judiciais.

Quanto ao futuro do voto de qualidade, a expectativa é que se a MP nº 1.160/23 for aprovada pelo Congresso Nacional e convertida em lei ordinária, será a nova regra aplicável. Mas nessa hipótese não se descarta a instauração de uma nova disputa perante o Poder Judiciário para questionar a sua validade.

Nesse contexto do restabelecimento do voto de qualidade, que produz efeitos imediatos a partir da publicação da Medida Provisória, o legítimo julgamento do STF em relação às Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.399, 6.403 e 6.415 – que, por maioria de votos, está declarando legítimo o fim do voto de qualidade a partir da alteração legislativa promovida pela Lei nº 13.988/20 –, estaria limitado no tempo, regulando as situações previstas no período de vigência da referida lei, que seria encerrado a partir da nova regra trazida pela MP nº 1.160/23 e sua conversão em lei.

Portanto, a chancela do STF em relação à validade do fim do voto de qualidade introduzida pela Lei nº 13.988/20, ao acrescentar o artigo 19-E na Lei nº 10.522/02, não prevaleceria sob a vigência da Medida Provisória e lei que decorra da sua conversão, de modo que a decisão da mais alta corte judicial do país seria completamente esvaziada, mas com a possibilidade de que o tema volte a ser reapreciado pela Suprema Corte, agora em discussão que venha a ser instaurada sobre a validade da MP nº 1.160/23 e sua (ainda pendente) lei de conversão.


– Quais são os efeitos esperados com o fim do recurso de ofício por parte do Carf e com a elevação dos valores para que os processos cheguem ao conselho? 

Bruna Luppi e Raphael Castro: Diante da sinalização da existência de um expressivo acúmulo de acervo pendente de julgamento pelo Carf, constatamos que as recentes medidas anunciadas pelo governo federal se destinam a otimizar o trabalho desenvolvido pelo conselho.

Nesse sentido, nos parece razoável que o governo tenha tido a preocupação de anunciar, em simultâneo, o expressivo aumento do valor dos casos excluídos da hipótese de interposição de recurso de ofício (antes, 2,5 milhões de reais, para atuais 15 milhões de reais) e a majoração para 1.000 salários-mínimos (em substituição dos anteriores 60 salários-mínimos) como limite de alçada para interposição de recurso ao Carf – em valores atuais, o salário-mínimo é de 1.302 mil reais, mudanças, portanto, respectivamente favorável e contrária aos contribuintes.

Com isso, a longo prazo, imagina-se que o estabelecimento de novas barreiras à remessa de processos ao Carf possa viabilizar a equalização do seu acervo atual e, assim, torne mais eficiente o julgamento dos processos que lhe são submetidos, realidade que interessa tanto ao contribuinte quanto ao Fisco, que aguardam por longos anos pelo desfecho das discussões administrativas em tramitação. E mais: com a maior delimitação dos casos que lhe serão submetidos, acredita-se que seja possível aos conselheiros, cuja capacidade técnica é indiscutível, enfrentar mais rapidamente e com mais propriedade as crescentes e (cada vez mais complexas) teses tributárias com ampla repercussão econômica submetidas ao Carf.

Não obstante, é pertinente destacarmos que mudanças como essas, com amplo impacto em incontáveis contribuintes, necessariamente deveriam resultar de amplo diálogo, ao invés de decorrerem de imposição unilateral, via medida provisória.

Caso o caminho escolhido tivesse sido o do diálogo, alguns pontos pertinentes precisariam ser enfrentados, como a possibilidade de se classificar um caso como mais ou menos complexo apenas com base no valor envolvido, quando, muitas vezes, o valor em discussão reflete mais o porte do contribuinte e menos a complexidade das suas operações. Somado a isso, recorda-se que os julgamentos no âmbito das Delegacias de Julgamento ocorrem à revelia da participação do contribuinte, que apenas terá a possibilidade de colaborar com a formação do convencimento dos julgadores quando da apreciação do seu caso pelo Carf. Hipótese essa, no entanto, que lhe será negada, caso o seu processo não atinja o patamar mínimo de 1.000 salários-mínimos.


– Como você avalia o conjunto de medidas anunciadas com relação ao funcionamento do Carf?

Bruna Luppi e Raphael Castro: As medidas anunciadas com relação ao funcionamento do Carf revelam o cunho notadamente arrecadatório do governo federal numa manobra política que pretende restringir o acesso dos contribuintes ao referido órgão e, ainda, restabelecer o voto de qualidade como critério de desempate, em prol do Fisco, no âmbito de um tribunal responsável pelo controle da legalidade dos atos administrativos.

Especificamente em relação à ampliação do limite do valor de alçada para interposição de recurso de ofício e recurso voluntário no âmbito do Carf, as medidas até seriam compreensíveis para concentrar no âmbito do Tribunal Administrativo os casos que envolvam cifras relevantes, deixando que as discussões que envolvam menores valores sejam decididos em última instância pelas Delegacias da Receita Federal de Julgamento.

Seria uma forma de otimizar os trabalhos do Carf, o que poderia trazer maior eficiência nos julgamentos direcionando ao referido órgão questões mais relevantes do ponto de vista arrecadatório, com a consequente liberação do estoque de processos do tribunal, além de encerrar ainda mais rapidamente o contencioso administrativo para processos de menor valor.

No entanto, por trás desse discurso de que o Carf é um órgão altamente técnico e que deveria se concentrar em resolver temas mais complexos, fato é que esse limite quantitativo para acesso ao Tribunal Administrativo não necessariamente terá o efeito de permitir que somente os temas mais difíceis ou complicados sejam levados à apreciação do referido órgão.

Essa limitação quantitativa, a bem verdade, caminha para uma barreira questionável do ponto de vista constitucional por violação à legalidade, à ampla defesa, ao devido processo legal, entre outros princípios não menos relevantes, sobretudo considerado que é notório que o julgamento no âmbito das Delegacias da Receita Federal de Julgamento geralmente estão vinculados aos atos infralegais aplicáveis no âmbito da Administração Tributária e, portanto, estão longe de revelar uma capacidade de exercer o controle da legalidade dos atos administrativos.

Já quanto ao retorno do voto de qualidade como critério de desempate nos julgamentos realizados pelo Carf, parece claro que os emblemáticos avanços jurisprudenciais conquistados com a extinção do voto de qualidade a partir do advento da Lei nº 13.988/20 seriam mitigados e colocados em xeque a partir do restabelecimento do voto duplo do presidente. E discussões bastante complexas e especializadas quanto à matéria tributária, que vinham sendo muito bem enfrentadas e encerradas no âmbito do Tribunal Administrativo, seriam levadas ao Poder Judiciário para uma discussão que nem sempre se desenvolve com a melhor tecnicidade e especialidade necessárias para o seu deslinde.

Com isso, veremos um exponencial aumento do contencioso judicial, o que vai na contramão do atual conjunto de medidas que temos em busca da redução de conflitos, desjudicialização e desestímulo à litigiosidade fiscal, assim como a possibilidade de que temas amplamente discutidos com todos as suas peculiaridades e recentemente decididos em favor dos contribuintes no âmbito no Carf possam ser questionados e tenham, inclusive, desfecho desfavorável no âmbito judicial, numa discussão mais rasa e perfunctória.

Não há dúvidas de que o retorno do voto de qualidade representa um retrocesso, pois claramente busca chancelar o Carf como um órgão estritamente com fins arrecadatórios, deixando em segundo plano a sua primordial função de controle da legalidade dos atos administrativos e neutralizando a sua autonomia técnica para decidir as controvérsias entre Fisco e contribuintes em âmbito administrativo.

Por tudo que já foi comentado até aqui, não há dúvidas de que esse universo de medidas recém anunciadas traz uma nova sistemática que reforça o ambiente de insegurança jurídica em matéria tributária.

Com esse conjunto de medidas, saem perdendo os contribuintes, o Fisco e a relação entre eles estabelecida, pois a atual busca pela construção de um ambiente de julgamento justo, composição e parceria entre tais partes dará lugar, uma vez mais, à adoção de posições antagônicas num ambiente de disputas que assoberbam o Poder Judiciário, alongam as controvérsias no tempo e estimulam um cenário de ineficiência e total insegurança jurídica, com todas as consequências negativas que daí advêm e dispensam comentários por serem tão bem conhecidas de todos nós.

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