Os retrocessos e os avanços do PL do Carf

Voto de qualidade retorna com mitigadores para reduzir judicialização

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No início do ano, o governo colocou um bode na sala: editou a Medida Provisória (MP 1.160/23), que reinstituiu o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Recentemente, o bode foi retirado da sala: a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.384/23 (PL do Carf), que retornou com o voto duplo, mas, em contrapartida, mitigou os prejuízos dos contribuintes ao trazer benefícios como o cancelamento de multas e juros, a possibilidade de parcelar os débitos fiscais e o cancelamento de eventual representação fiscal para fins penais (RFFP) referentes às cobranças que decorreram do voto de qualidade.

Pelo voto de qualidade, quando há empate nos julgamentos envolvendo impostos, o desempate é dado por um conselheiro do Carf que representa a Fazenda Nacional, que geralmente decide em prol do Fisco e contra o contribuinte.

“O retorno do voto de qualidade da forma como exposta, de fato, representa um retrocesso, sobretudo considerando que o Código Tributário Nacional prevê, em seu artigo 112 que, em caso de dúvida sobre a intepretação da legislação tributária, deve-se decidir em favor do contribuinte. No entanto, o PL do Carf minimizou o retrocesso ao trazer benefícios para pagamento e discussão judicial dos créditos tributários decididos com base nessa regra”, avaliam Pedro Simão e Júlia Swerts, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados.

“Esse desfecho para o PL nº 2.384/23 indica a opção, da Câmara dos Deputados, por uma solução negociada entre o Fisco e os contribuintes, posto que esses estarão novamente submetidos ao voto de qualidade pró-Fisco, contudo, nos casos que sejam decididos por voto de qualidade, terão a possibilidade de quitar apenas o montante principal do crédito tributário ao término do julgamento pelo Carf, inclusive de forma parcelada e mediante a utilização de prejuízo fiscal de IRPJ, base negativa de CSLL e precatórios”, consideram Bruna Luppi e Raphael Castro, sócia e associado do Vieira Rezende Advogados. Para eles, no entanto, não foi resolvida a inquietação dos contribuintes com o voto duplo do conselheiro que representa o Fisco: “Ou seja, que o mesmo julgador que provoca um empate, posteriormente, reafirmando a ótica anterior, seja capaz de dirimir esse empate”.

Thiago Duca, sócio do Nankran Mourão Brito Massoli, lembra que o percentual de processos que empatam e precisam ser julgados pelo voto de desempate é baixíssimo. “De maneira rasa, devido à complexidade do tema, a manutenção do voto de qualidade para o Fisco, com a exclusão de juros e multa para os contribuintes, que ainda podem levar o caso ao Judiciário, me parece uma saída equânime. O que não pode acontecer é essa constante alteração nas regras do jogo: em 2020 acaba o voto de qualidade, em 2023 volta o voto de qualidade. Para termos segurança jurídica, as regras devem ser claras e as instituições devem respeitá-las”, afirma.

Do lado de boas notícias para o contribuinte, o PL melhorou também as questões relativas às garantias que os contribuintes precisam apresentar para discussão de tributos na Justiça – por meio da alteração na Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80). O projeto prevê que o contribuinte ofereça garantia apenas do valor principal da dívida em discussão no Judiciário, desde que possua certidão de regularidade fiscal válida nos 12 meses anteriores à sua citação. As garantias somente serão liquidadas após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, sendo vedada a sua liquidação antecipada. E, se a Fazenda Pública perder na discussão judicial da dívida ativa, terá que ressarcir os custos que o contribuinte teve com o oferecimento, contratação e manutenção da garantia.

Luppi e Castro consideram que esses temas sensíveis – liquidação antecipada da garantia em execução fiscal e ressarcimento de despesas incorridas pelo executado com a contratação de seguro garantia ou fiança bancária –, que hoje estão em discussão acirrada no âmbito do Poder Judiciário, serão finalmente tratados e direcionados.

Para Duca, a exigência de garantia como condição para discussão do débito em sede de Embargos à Execução viola a ampla defesa e o contraditório. Embora o PL crie uma exceção a essa exigência para os contribuintes que demonstrarem capacidade de pagamento, os processos resolvidos por voto de qualidade são a minoria, o que melhora a situação dos contribuintes apenas em casos excepcionais. Ele considera que a alteração pretendida no PL está longe dos ideais de justiça.

Quando o governo editou a MP reinserindo o voto de qualidade no Carf, a expectativa era de que ocorresse um aumento da judicialização por parte dos contribuintes prejudicados pelo uso do voto duplo. Com as concessões previstas no PL, esse cenário de maior litígio poderá ser mitigado: “As concessões feitas pelo governo podem minimizar o cenário de aumento da judicialização envolvendo débitos dos contribuintes julgados sob a sistemática do voto de qualidade”, consideram Simão e Swerts.

Luppi e Castro lembram que a redação final do PL demonstra preocupação do legislador de evitar que os processos julgados pelo Carf durante a vigência da MP 1.160/23 provocassem um expressivo aumento de litígios, ao estenderem para esses casos os benefícios previstos neste PL.

Ainda falta o PL do Carf ser aprovado pelo Senado Federal.

Na entrevista abaixo, Swerts, Simão, Luppi, Castro e Duca explicam os pontos favoráveis aos contribuintes trazidos pelo PL do Carf e abordam a volta do voto de qualidade.


– Quais foram os principais pontos do Projeto de Lei 2.384/23, aprovado pela Câmara, que reinsere o voto de qualidade do Carf?

Júlia Swerts e Pedro Simão: O Projeto de Lei 2.384/23 (PL do Carf), aprovado pela Câmara, dentre outras disposições, disciplina a regra do voto de qualidade na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), de modo a permitir que o presidente da turma julgadora possa proferir um voto de desempate. Considerando que as turmas sempre são presididas por conselheiros representantes da União Federal, foi retomado o contexto de o empate ocasionar, via de regra, um julgamento em favor da União Federal.

Apenas para contextualizar, o voto de qualidade havia sido extinto desde 2020, com a Lei nº 13.988, sendo previsto o resultado favorável ao contribuinte, em caso de empate.

Apesar de ter retornado com o voto de qualidade, o PL do Carf trouxe alguns pontos favoráveis aos contribuintes em situações que tratem de créditos tributários autuados e decididos com empate a favor da União, tais como:

(i) exclusão das multas e dos juros e cancelamento de eventual representação fiscal para fins penais (RFFP), em caso de pagamento do débito em até 90 dias;

(ii) possibilidade de pagamento do débito em até 12 parcelas, com a utilização de prejuízo fiscal, base de cálculo negativa e precatórios;

(iii) inscrição em dívida ativa sem a exigência do encargo de 20% previsto no Decreto-lei n° 1.025/1969, em caso de não pagamento do débito;

(iv) possibilidade de transação tributária específica do débito inscrito em dívida ativa.

O PL do Carf trouxe também alterações referentes à imposição da multa qualificada em caso de fraude, conluio ou sonegação, prevista na Lei n° 9.430/1996, que passa a ser de 100%, aplicando-se o percentual de 150% apenas em casos de reincidência no prazo de 2 anos. Prevê, ainda, a possibilidade de redução da multa para 100% nos casos já inscritos em dívida ativa (retroatividade benigna); e hipóteses de redução da multa de ofício de 75% para um terço (1/3) e, até mesmo, a possibilidade de que seja relevada sua aplicação, a depender do histórico de conformidade do contribuinte ou responsável tributário.

Por fim, o PL do Carf trouxe alterações em relação ao oferecimento de garantias em Execuções Fiscais, transações tributárias, possibilidade de sustentação nas Delegacias de Julgamento e autorregularização de débitos.

Bruna Luppi e Raphael Castro: Dentre os principais pontos do texto final do Substitutivo do PL nº 2.384/23, merece destaque a previsão do imediato cancelamento das multas e das Representações Fiscais para Fins Penais em relação às cobranças mantidas em razão da aplicação do voto de qualidade pelo Carf. Além disso, nos casos de manifestação do contribuinte para pagamento no prazo de 90 dias, serão também excluídos os juros de mora até a data do acordo para pagamento, com possibilidade de parcelamento em até 12 vezes e utilização de créditos de prejuízo fiscal de IRPJ, base negativa de CSLL e precatórios.

A atual redação do PL também prevê que os créditos inscritos em dívida ativa em discussão judicial, que tenham sido decididos pelo voto de qualidade, poderão ser objeto de proposta de acordo de transação específica, por iniciativa do contribuinte, observada regulamentação a ser definida pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

No mais, caso o contribuinte opte por discutir o crédito tributário definitivamente constituído por voto de qualidade na esfera judicial, estará dispensado da apresentação de garantia, desde que comprovada a sua capacidade de pagamento, o que significa atender aos requisitos previstos no artigo 4º do PL. Neste ponto, merece destaque a correta preocupação do legislador em indicar, de forma taxativa, as condições a serem consideradas para a demonstração da capacidade de pagamento e consequente fruição da dispensa de garantia pelos contribuintes.

Ainda, diante da crescente celeuma entre o Fisco Federal e os contribuintes em relação à execução antecipada das garantias, o PL foi bastante feliz ao propor modificações na Lei de Execuções Fiscais para, expressamente, condicionar a liquidação da caução ao trânsito em julgado de decisão de mérito desfavorável ao contribuinte, bem como estipular a obrigatoriedade de a Fazenda Pública, se vencida, restituir integralmente as despesas incorridas pela parte contrária com o oferecimento, a contratação e a manutenção da garantia.

Esse PL ainda apresentou relevantes alterações na atual sistemática de julgamento no âmbito administrativo federal, ao assegurar ao procurador do sujeito passivo a realização de sustentação oral nos julgamentos realizados pelos órgãos colegiados, o que inclui as Delegacias de Julgamentos da Receita Federal (DRJs), sendo que, atualmente, é vedado aos patronos acompanharem as sessões das DRJs, além de atribuir efeito vinculante às súmulas do Carf em relação aos órgãos colegiados que compõem a Secretaria da Receita Federal.

Além disso, embora o PL tenha sido inicialmente proposto para o restabelecimento do voto de qualidade pró-Fisco e para possibilitar a disponibilização de métodos preventivos para autorregularização tributária e estabelecer programas de conformidade tributária, o Substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados, que registrou 60 emendas durante a sua tramitação, acabou por incorporar outras relevantes alterações como:

  • a obrigatoriedade de a RFB disponibilizar métodos preventivos para autorregularização de obrigações tributárias relativas a tributos por ela administrados com o objetivo de incentivar a conformidade tributária;
  • novas previsões em relação às multas aplicadas em lançamentos de ofício;
  • alterações em relação à transação tributária prevista na Lei nº 13.988/2020;
  • cancelamento do excesso de multas tributárias em autuações fiscais em patamar superior a 100% do montante do crédito tributário apurado, em harmonia com o princípio do não-confisco referendado por decisões do STF, nas hipóteses e condições especificas, entre outros pontos.

Por fim, e como não poderia deixar de ser, fica expressamente revogado o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 na redação dada pela Lei nº 13.988/2020, que justamente afastou a aplicação do voto de qualidade em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, com determinação para solução em favor do contribuinte.

Thiago Duca: Caso o PL seja convertido em lei, será uma grande vitória para o governo, já que reinstitui o voto de qualidade a favor do Fisco. Todavia, o contribuinte também foi beneficiado, já que o PL prevê a exclusão de multa e juros de mora cobrados nos processos julgados pelo voto de qualidade, bem como impede o oferecimento de representação fiscal para fins penais ao Ministério Público.

Ainda, o PL prevê a instituição de programa de auto regularização para os contribuintes, que poderão pagar à vista ou parcelado, sem incidência de multas, os tributos federais devidos e ainda não constituídos, ainda que tenha sido

iniciado procedimento de fiscalização, pelo período de 4 meses após a data de publicação da Lei.


– Com relação às garantias que os contribuintes precisam apresentar para discutir na Justiça questões tributárias, o que muda?

Júlia Swerts e Pedro Simão: O PL do Carf prevê alterações na Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80), passando a permitir que o contribuinte ofereça garantia apenas do valor principal da dívida em discussão no Judiciário, desde que possua certidão de regularidade fiscal válida nos 12 meses anteriores à sua citação. Essa garantia produzirá os mesmos efeitos da penhora do valor integral da execução (que inclui multas e juros).

Prevê, ainda, que as garantias somente serão liquidadas após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, sendo vedada a sua liquidação antecipada.

O texto determina ainda que, caso a Fazenda Pública seja vencida na discussão judicial da dívida ativa, ficará obrigado a ressarcir os custos que o contribuinte teve com o oferecimento, contratação e manutenção da garantia.

Bruna Luppi e Raphael Castro: Inicialmente, vale observar que a atual redação do Substitutivo do PL nº 2.384/23, aprovado pela Câmara dos Deputados, prevê que os créditos tributários definitivamente constituídos na esfera administrativa por voto de qualidade, em relação aos quais não haja intenção de pagamento pelo contribuinte, serão inscritos em dívida ativa, mas sem a incidência dos encargos legais e, ainda, com exclusão das multas. Tal previsão, de antemão, representará uma redução do crédito tributário considerando a sistemática atual, o que implicará, diretamente, numa redução do valor de garantia que tenha que ser apresentada para a discussão judicial da cobrança.

Especificamente no caso de discussão judicial dos créditos tributários definitivamente constituídos na esfera administrativa por voto de qualidade, outra novidade é que os contribuintes estarão dispensados da apresentação de garantia, desde que tenham capacidade de pagamento. Por sua vez, essa capacidade de pagamento será analisada por meio de relatório de auditoria independente no caso de pessoa jurídica, relação de bens disponíveis para futura garantia do crédito tributário e comunicação à Fazenda e substituição, em caso de alienação ou oneração e, ainda, no caso de o contribuinte não possuir outros créditos presentes e futuros em situação de exigibilidade para com a Fazenda Pública. Vale observar, ainda, que tal dispensa não será aplicada a contribuintes que não tenham certidão regularidade fiscal válida por mais de 3 meses, consecutivos ou não, nos 12 meses que antecederem o ajuizamento da medida judicial.

Outro ponto relevante, e muito positivo considerando a sistemática atual e o que temos visto em relação a recentes decisões judiciais, é que nos casos em que seja exigida a apresentação de garantia para a discussão judicial, não será admitida a execução antecipada dessa garantia até o trânsito em julgado da medida judicial, ressalvados os casos de alienação antecipada previstos em lei.

Em complemento a tal disposição, também estão previstas modificações ao artigo 9º da Lei de Execução Fiscal (Lei nº 6.830/80), que trazem avanços importantes quanto às possibilidades do executado em relação à garantia da execução. Por exemplo:

  • o executado que oferecer garantia por fiança bancária ou seguro garantia estará autorizado a assegurar apenas o valor principal atualizado da dívida, garantindo-se os mesmos efeitos da penhora para fins de regularidade fiscal, desde que o contribuinte esteja com certidão de regularidade fiscal válida por mais de 3 meses, consecutivos ou não, nos 12 meses que antecederem a sua citação na execução fiscal;
  • as modalidades de garantia por meio de fiança bancária ou seguro garantia somente serão liquidadas após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, ficando expressamente vedada a sua liquidação antecipada; e,
  • caberá à Fazenda Pública ressarcir ao executado as despesas por ele incorridas com o oferecimento, contratação e manutenção de garantias ao crédito tributário.

Portanto, aspectos sensíveis como a liquidação antecipada da garantia em execução fiscal e ressarcimento de despesas incorridas pelo executado com a contratação de seguro garantia ou fiança bancária, que hoje estão em discussão acirrada no âmbito do Poder Judiciário, serão finalmente tratados e direcionados, ao que tudo indica, para uma solução mais pacífica entre Fisco e contribuintes.

Também há previsão de composição entre Fisco e contribuintes como forma de equalizar e chegar a um consenso em relação à aceitação, avaliação, modo de constrição e substituição de garantias do crédito tributário, o que será viabilizado por meio da celebração de negócio jurídico ou qualquer outra solução consensual com a Fazenda Pública. Permite-se, assim, uma interação e negociação entre Fisco e contribuintes em direção a uma composição entre as partes quanto às garantias, equalizando os respectivos interesses e mitigando eventuais disputas e medidas coercitivas indesejadas.

Thiago Duca: O artigo 4º do PL dispensa a apresentação de garantia para a discussão judicial dos créditos resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade naqueles casos em que o contribuinte demonstre capacidade de pagamento.

Primeiramente, entendo que a exigência de garantia como condição para discussão do débito em sede de Embargos à Execução prevista na Lei nº 6.830/80 viola a ampla defesa e o contraditório. Desta forma, o PL cria uma exceção à regra da necessidade de apresentação de garantia, o que beneficia os contribuintes enquadrados nas situações previstas no PL.

Assim, em que pese a alteração legislativa beneficie os contribuintes em casos excepcionais, sobretudo porque os processos resolvidos por voto de qualidade são a minoria, de fato há uma melhora na condição do contribuinte.

Contudo, como mencionado, a alteração pretendida no PL está longe dos ideais de justiça.


– Qual é o saldo que fica para os contribuintes com relação ao voto de qualidade? O acordo que os isenta do pagamento de multas e juros, desde que não recorram ao Judiciário quando perderem processos julgados pelo voto de qualidade, minimiza o possível retrocesso representado pela volta do voto duplo?

Júlia Swerts e Pedro Simão: O retorno do voto de qualidade da forma como exposta, de fato, representa um retrocesso, sobretudo considerando que o Código Tributário Nacional prevê, em seu artigo 112 que, em caso de dúvida sobre a intepretação da legislação tributária deve-se decidir em favor do contribuinte.

No entanto, o PL do Carf minimizou o retrocesso ao trazer benefícios para pagamento e discussão judicial dos créditos tributários decididos com base nessa regra.

Bruna Luppi e Raphael Castro: Diante do argumento de que a decisão prolatada pelo Carf é terminativa para a Fazenda Pública, enquanto ao contribuinte é facultada a possibilidade de prosseguir com a discussão na esfera judicial, parecia inevitável que a Câmara dos Deputados se alinhasse à posição defendida pelo Poder Executivo, no sentido de restabelecer o voto de qualidade pró-Fisco.

Tal posicionamento, a nosso ver, decorreu da leitura de que, havendo dúvida razoável sobre os efeitos da aplicação da norma jurídica tributária abstrata ao caso concreto, não seria razoável impor ao Carf, enquanto órgão que compõe a administração pública, a obrigação de interpretar essa norma de forma mais favorável aos contribuintes no caso de empate. Por outro lado, ainda partindo dos efeitos dessa premissa, prevaleceu a correta constatação de que a real existência de dúvida dos julgadores administrativos quanto à melhor forma de dirimir a controvérsia atesta que a conduta adotada pelo contribuinte se revestia de razoável legalidade.

Com isso, se mostrou inevitável, com o restabelecimento do voto de qualidade pró-Fisco, que, nos casos que sejam decididos com sua aplicação, ao menos, se afastasse a exigência das multas e, ainda, caso o pagamento ocorra no prazo de 90 dias, também se exclua os juros de mora. Esse desfecho para o PL nº 2.384/23 indica a opção, da Câmara dos Deputados, por uma solução negociada entre o Fisco e os contribuintes, posto que esses estarão novamente submetidos ao voto de qualidade pró-Fisco, contudo, nos casos que sejam decididos por voto de qualidade, terão a possibilidade de quitar apenas o montante principal do crédito tributário ao término do julgamento pelo Carf, inclusive de forma parcelada e mediante a utilização de prejuízo fiscal de IRPJ, base negativa de CSLL e precatórios. Além disso, há previsão de cancelamento da representação fiscal para fins penais em relação ao crédito tributário mantido pelo Carf pelo exercício do voto de qualidade.

No entanto, o mero restabelecimento do voto de qualidade pró-Fisco tal como previsto no PL não responde a uma antiga inquietação dos contribuintes quanto à possibilidade de se admitir que um conselheiro no caso do Carf, sempre representante do Fisco, tendo em vista que o voto de qualidade é prerrogativa dos cargos de Presidente das Turmas, que são ocupados por representantes do Fisco detenha a prerrogativa de votar duas vezes. Ou seja, que o mesmo julgador que provoca um empate, posteriormente, reafirmando a ótica anterior, seja capaz de dirimir esse empate.

Thiago Duca: O voto de qualidade é uma questão de política pública e o debate deve ser feito com parcimônia, sem os exageros que foram colocados na mídia, tanto para um lado quanto para o outro.

Como ex-conselheiro, primeiramente é relevante salientar a idoneidade da conduta dos membros do órgão, sobretudo após a Operação Zelotes, em que ocorreu uma verdadeira revolução no Carf, com a nomeação de conselheiros altamente técnicos e com obtenção de vários certificados (ISO) de excelência.

Dito isto, o percentual de processos que empatam e precisam ser julgados pelo voto de desempate (seja pró Fisco ou pró contribuinte) é baixíssimo. Grande parte dos processos é julgada por maioria de votos.

De maneira rasa, devido à complexidade do tema, a manutenção do voto de qualidade para o Fisco, com a exclusão de juros e multa para os contribuintes, que ainda podem levar o caso ao Judiciário, me parece uma saída equânime.

O que não pode acontecer é essa constante alteração nas regras do jogo: em 2020 acaba o voto de qualidade, em 2023 volta o voto de qualidade. Para termos segurança jurídica as regras devem ser claras e as instituições devem respeitá-las.

Quanto à consideração da exclusão do pagamento de multas e juros, condicionada a que o contribuinte não recorra ao Judiciário, tal previsão não consta no texto do PL.


– Quando o governo editou a MP reinserindo o voto de qualidade no Carf, a expectativa era de que ocorresse um aumento da judicialização por parte dos contribuintes prejudicados pelo uso do voto duplo. As concessões feitas pelo governo durante a tramitação do PL evitarão esse cenário de aumento da judicialização?

Júlia Swerts e Pedro Simão: As concessões feitas pelo governo podem minimizar o cenário de aumento da judicialização envolvendo débitos dos contribuintes julgados sob a sistemática do voto de qualidade.

De fato, são atraentes os benefícios para pagamento dos débitos decididos com base no critério de desempate a favor da União. No entanto, em muitos casos, os contribuintes devem optar por levar a discussão ao Judiciário por acreditarem em sua tese de defesa.

Inclusive, como falado acima, o PL do Carf também trouxe benefícios para os contribuintes decidirem pela discussão judicial desses débitos, como a facilitação no oferecimento de garantias e o reembolso dos custos com a sua contratação, caso a Fazenda Pública seja vencida na demanda.

Bruna Luppi e Raphael Castro: Com o objetivo de equalizar a problemática decorrente dos processos julgados por voto de qualidade durante o período de vigência da Medida Provisória nº 1.160, de 2023, se previu que, aos mencionados casos, se aplicará o disposto nos artigos 25, § 9º-A e 25-A do Decreto nº 70.235/72 e nos artigos 3º e 4º do PL.

Isso significa o imediato cancelamento das multas e representações fiscais para fins penais. E na hipótese de o contribuinte manifestar interesse em realizar a imediata quitação do débito, também lhe será assegurado a exclusão dos juros de mora.

Além disso, torna possível que referidos débitos sejam objeto de proposta de acordo de transação específico, bem como que os contribuintes com capacidade de pagamento fiquem dispensados da apresentação de garantia na esfera judicial. Isto é, caso atendam aos requisitos previstos nos incisos do artigo 4º do PL.

De igual modo, a liquidação da garantia ofertada pelos contribuintes para assegurar esses débitos se condicionará ao trânsito em julgado da medida judicial.

Em resumo, a redação final do Projeto de Lei atende à preocupação do legislador de evitar que os processos julgados pelo Carf durante a vigência da referida MP provoquem um expressivo aumento de litígios, ao estenderem para esses casos os benefícios previstos neste PL.

Thiago Duca: Como comentado, o debate é amplo e deve ser levado à sociedade de maneira honesta e transparente por aqueles envolvidos (Congresso Nacional, Governo Federal, Receita Federal, Carf etc.).

Acusações levianas, sobretudo quanto a índole dos conselheiros representantes dos contribuintes, apenas apequena o debate e tira o foco na melhoria do Carf e do processo administrativo fiscal.

Creio que o texto do PL traz uma paridade entre Fisco e contribuinte, mas há muito o que melhorar para termos uma justiça fiscal efetiva.


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