Mudança nos créditos de Pis e Cofins promete disputa acirrada

Lei 14.592/23 deve ser questionada no Judiciário por contribuintes

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Uma recente lei editada pelo governo federal viola o princípio da não-cumulatividade do Pis e da Cofins – contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social – e deve ser objeto de acirradas discussões no Judiciário por parte de empresas e do Fisco, avaliam advogados tributaristas. A lei em questão é a 14.592/23, que veda que as empresas se creditem do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) pago na aquisição de mercadorias.

“Do nosso ponto de vista, a vedação da tomada de créditos de Pis/Cofins sobre a parcela do ICMS nas operações de aquisições fere o princípio da não-cumulatividade constitucionalmente previsto para tais contribuições”, avaliam Bruna Luppi e Gabriel Eleutério, sócia e associado do Vieira Rezende Advogados. Os dois acreditam que os contribuintes do regime não-cumulativo contam com argumentos plausíveis para questionar esse ponto da Lei 14.592/23 no Judiciário.

O regime não-cumulativo é uma forma de se evitar o efeito cascata da tributação, que ocorre quando um imposto incide sobre o outro, ou seja, quando o contribuinte tem que pagar um tributo sobre uma operação que já foi anteriormente tributada pelo mesmo imposto. Por isso, ao adquirir determinado insumo, o contribuinte pode constituir créditos de Pis e Cofins, que serão posteriormente abatidos do pagamento do Pis e da Cofins referentes às mercadorias que ele vender. Há, portanto, dois momentos: o da aquisição do insumo, com potencial para gerar créditos, e o da venda do produto por parte da empresa.

Quando adquire um insumo, a empresa paga o valor total da nota fiscal – que inclui o ICMS. Desde o julgamento da “tese do século” por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), ela pode excluir o ICMS da base de cálculo do Pis e da Cofins. O entendimento da corte foi o de que o ICMS não faz parte da receita bruta da empresa, pois será pago ao governo e apenas transita pela sua contabilidade. Portanto, o Pis e a Cofins devem ser calculados sobre uma base que exclui o ICMS.

A partir dessa decisão da corte, o governo considerou que a mesma sistemática deveria valer para os créditos do Pis e da Cofins: se o ICMS não integra a base de cálculo do Pis e da Cofins que incidem sobre a venda da mercadoria, também não deveria integrar a base de cálculo dos créditos de Pis e Cofins. Primeiro, a Medida Provisória 1.159/23 determinou a exclusão do ICMS do cálculo dos créditos de Pis e Cofins. Agora, a medida foi convertida na Lei 14.592/23.

No entanto, Luppi e Eleutério consideram que o raciocínio (exclusão do ICMS no débito e no crédito) não vale para as duas situações: “O cálculo do crédito está relacionado ao custo de aquisição por parte do adquirente, ao passo que o recolhimento do Pis/Cofins está ligado ao faturamento, este sim representado somente por aquilo que o vendedor recebe pela venda da mercadoria ou serviço.”

Eles explicam que o crédito do Pis/Cofins é calculado sobre o valor do bem adquirido (que considera o ICMS), e que embora o ICMS não represente uma receita do vendedor de mercadoria, ele compõe o preço do bem adquirido pelo tomador do crédito (o comprador da mercadoria), que deve recolher o Pis e a Cofins quando posteriormente vender a mercadoria ou serviço. Portanto, ao deixar de poder creditar o valor do ICMS embutido no preço da compra da mercadoria, o contribuinte não tem como abater esse valor quando for pagar o Pis e a Cofins.

Luppi e Eleutério lembram que a mudança trazida pela lei (originalmente, pela MP nº 1.159/2023), já vem sendo questionada por contribuintes de todo o país no âmbito do Poder Judiciário – com decisões favoráveis e desfavoráveis aos contribuintes. “Fato é que a discussão promete ser acirrada junto ao Poder Judiciário, ainda mais considerando que recentemente o STF firmou a tese de que “legislador ordinário possui autonomia para disciplinar a não cumulatividade a que se refere o art. 195, § 12, da Constituição, respeitados os demais preceitos constitucionais, como a matriz constitucional das contribuições ao PIS e COFINS e os princípios da razoabilidade, da isonomia, da livre concorrência e da proteção à confiança”, conforme Tema 756 da repercussão geral.

Na entrevista abaixo, Luppi e Eleutério explicam a complicada questão.


– O que a Lei 14.592/23 mudou com relação aos créditos do Pis e da Cofins? O que fundamenta a mudança?

Bruna Luppi e Gabriel Eleutério: Inicialmente, apenas para melhor compreensão do contexto legislativo, a Lei nº 14.592/2023, publicada em 30/05/2023 e com início da sua vigência na mesma data, é resultado da aprovação pelo Congresso Nacional da Medida Provisória nº 1.147/2022, que originalmente tratava sobre as regras do Perse (isenções ao setor de eventos), mas acabou incorporando o texto da Medida Provisória nº 1.159/2023, numa manobra política para evitar a sua caducidade.

Com a edição da MP nº 1.159/2023 e conseguinte aprovação e publicação da Lei nº 14.592/2023, foram alteradas as Leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003, que respectivamente dispõem sobre o regime não cumulativo de apuração da Contribuição ao Pis e da Cofins, para excluir o ICMS não apenas da incidência das referidas contribuições (consolidando o entendimento firmado pelo STF na chamada “tese do século”), mas também da base de cálculo dos créditos delas decorrentes.

Vale observar que a exclusão do ICMS da incidência de Pis/Cofins decorre da necessidade de adequação legislativa à chamada “tese do século” (Tema 69 da repercussão geral do STF – RE nº 574.706/PR), segundo a qual o ICMS incidente na venda de mercadorias deve ser excluído da base de cálculo das mencionadas contribuições, por não constituir receita ou faturamento, o que foi expressamente consolidado na nova Lei, de modo que o ICMS deixa de ser considerado parte do faturamento das empresas.

Por sua vez, especificamente em relação aos créditos de Pis/Cofins, a alteração legislativa passou a prever que os contribuintes sujeitos à incidência não cumulativa das referidas contribuições estão obrigados a excluir o ICMS que incidiu nas operações de aquisição de mercadorias e serviços no cálculo para apuração dos créditos a serem descontados das contribuições devidas. Nesse sentido, a partir da Lei nº 14.592/2023, passou a ser vedado aos contribuintes tomarem crédito dessas contribuições sobre a parcela do ICMS incidente na aquisição de mercadorias e serviços.

Conforme a exposição de motivos apresentada pelo governo federal, essa proibição de se incluir a parcela do ICMS na base de cálculo dos créditos de Pis/Cofins busca promover um reequilíbrio econômico, minimizando potenciais impactos orçamentário-financeiros decorrentes do Tema 69 e, ainda, ajustando a forma de aproveitamento de créditos do ICMS pelos contribuintes supostamente em linha com o que foi decidido pelo STF.

Para tanto, numa linha tortuosa, afirma que se o valor do ICMS destacado na nota fiscal não está sujeito ao pagamento das contribuições, conforme decidido pelo STF, consequentemente não deveria dar direito ao crédito – já que a própria legislação determina que o valor da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento das contribuições não dará direito a crédito, concluindo que “caso persista a inclusão do ICMS na base de cálculo dos créditos da Contribuição ao PIS e da Cofins, pode-se gerar acúmulo de créditos por parte dos contribuintes, causando esvaziamento na arrecadação das contribuições destinadas à Seguridade Social”.

Contudo, ao contrário do que defendido pelo governo federal, a alteração legislativa em relação ao modelo de creditamento de Pis/Cofins não se justifica, pois vai de encontro ao princípio da não-cumulatividade constitucionalmente previsto para referidas contribuições. A falta de coerência na exclusão do ICMS tanto nos créditos quanto nos débitos é verificada principalmente na situação das prestadoras de serviços, para as quais a exclusão do ICMS da base de cálculo do Pis/Cofins não representa nenhuma redução no recolhimento dessas contribuições, mas, por outro lado, terão redução significativa na tomada de seus créditos, aumentando, portanto, sua carga tributária.

Fato é que não se verifica nessas situações nenhum “reequilíbrio” defendido pelo governo federal para a alteração normativa. Ao contrário, a alteração promovida pela Lei nº 14.592/2023 na legislação do Pis/Cofins não-cumulativos pode acarretar relevante aumento do custo das empresas, pois implica na redução dos créditos e, indiretamente, no aumento da carga tributária das referidas contribuições.


– A exclusão do ICMS da base de cálculo do Pis e da Cofins contraria o regime não cumulativo? Por quê?

Bruna Luppi e Gabriel Eleutério: Do nosso ponto de vista, a vedação da tomada de créditos de Pis/Cofins sobre a parcela do ICMS nas operações de aquisições fere o princípio da não-cumulatividade constitucionalmente previsto para tais contribuições.

A sistemática não-cumulativa do Pis/Cofins não permite compreender necessariamente que haveria um equilíbrio na exclusão do ICMS tanto no crédito como no débito, por envolver situações distintas. O cálculo do crédito está relacionado ao custo de aquisição por parte do adquirente, ao passo que o recolhimento do Pis/Cofins está ligado ao faturamento, este sim representado somente por aquilo que o vendedor recebe pela venda da mercadoria ou serviço.

Como se sabe, o ICMS é um imposto que integra a sua própria base de cálculo, conforme dispõe a Lei Complementar nº 87/1996. Sendo assim, se o crédito do Pis/Cofins é calculado sobre o “valor do bem” adquirido, o ICMS, como parte integrante do valor da operação, integra o custo de aquisição do bem, base de cálculo para a tomada de crédito das referidas contribuições. Assim, embora o ICMS não represente receita do contribuinte vendedor de mercadoria, ele compõe o preço do bem adquirido pelo tomador do crédito, que é sujeito ao recolhimento da Contribuição ao PIS e da COFINS na venda da mercadoria ou serviço.

Destaque-se que a não-cumulatividade do Pis/Cofins, diferentemente da não-cumulatividade do IPI e do ICMS, não é calculada sobre o valor do tributo pago (“imposto sobre imposto”), mas sobre a base de cálculo (“base sobre base”), no caso o preço do bem vendido versus o bem adquirido, e, portanto, a exclusão do ICMS na recuperação dos créditos das contribuições, como previsto pela Lei nº 14.592/2023, acaba por desvirtuar a não-cumulatividade do Pis/Cofins, podendo sua constitucionalidade ser objeto de discussão no âmbito do Poder Judiciário.


– A partir de quando as empresas devem se submeter à nova forma de cálculo dos créditos do Pis e da Cofins?

Bruna Luppi e Gabriel Eleutério: A Lei nº 14.592/2023 passou a ter vigência a partir da sua publicação, em 30.05.2023. No entanto, é importante destacar que referida lei convalidou todos os atos praticados com base na MP nº 1.159/2023, publicada em 12.01.2023, a qual já estabelecia a obrigatoriedade de os contribuintes excluírem a parcela do ICMS das operações de aquisição no cálculo dos créditos de Pis/Cofins a partir do primeiro dia do quarto mês subsequente à sua publicação, ou seja, a partir de 1º de maio de 2023.

Sendo assim, desde 1º de maio de 2023, os contribuintes sujeitos ao regime não-cumulativo das contribuições já deveriam excluir da base de cálculo dos créditos a parcela do ICMS incidente nas operações de aquisição, por força do que determinava a MP nº 1.159/2023. Com a inclusão do texto da MP nº 1.159/2023 na Lei nº 14.592/2023, e a convalidação de todos os seus atos, foi mantida a obrigatoriedade de os contribuintes excluírem o ICMS na apuração dos créditos do Pis/Cofins, a partir de junho de 2023 em diante, agora por força da Lei nº 14.592/2023.

Não se desconhece que há quem defenda que a exclusão do ICMS na apuração dos créditos das mencionadas contribuições deveria se sujeitar à anterioridade nonagesimal, prevista no artigo 195, §6º, da Constituição da República. Para tanto, argumenta-se que a exclusão da parcela do ICMS incidente nas aquisições do cálculo para apropriação dos créditos de Pis/Cofins não estava originalmente prevista no texto da MP nº 1.147/2022, mas somente foi incluída durante o curso de sua conversão na Lei nº 14.592/2023, com a inclusão da MP nº 1.159/2023 no texto substitutivo da MP nº 1.147/2022, de modo que a alteração no cálculo de recuperação de créditos de Pis/Cofins representaria um aumento das contribuições efetivamente devidas pelos contribuintes, o que permitiria questionar que a produção de efeitos da Lei nº 14.592/2023, nesse aspecto, ocorreria noventa dias após a sua publicação.

Sobre a referida tese de defesa acima apontada, não é demais destacar a importância de se levar em conta que, como já mencionado, desde 1º de maio de 2023 existia o dever de os contribuintes excluírem a parcela do ICMS incidente nas aquisições da base de cálculo dos créditos de Pis/Cofins, por força da MP nº 1.159/2023. Tal situação continuou no mês subsequente, por força da Lei nº 14.592/2023.

Assim, à primeira vista, não haveria uma surpresa aos contribuintes e um aumento na sua carga tributária a partir da publicação da Lei nº 14.592/2023. Também é importante se levar em conta que a MP nº 1.159/2023, publicada em 12/01/2023, apenas passou a produzir efeitos, em relação à exclusão da parcela do ICMS da base de cálculo dos créditos de Pis/Cofins, a partir de 1º de maio de 2023, portanto, respeitando o princípio da anterioridade nonagesimal.


– As empresas contam com argumentos sólidos para buscar manter, via Judiciário, a forma antiga de cálculo dos créditos (com a inclusão do ICMS)?

Bruna Luppi e Gabriel Eleutério: Os contribuintes sujeitos à apuração não cumulativa do Pis/Cofins contam com fundamentos jurídicos plausíveis para questionar junto ao Poder Judiciário a legitimidade da alteração promovida pela Lei nº 14.592/2023 na forma de cálculo dos créditos das mencionadas contribuições, diante do desvirtuamento do racional da não-cumulatividade específica para essas contribuições, baseado no método subtrativo indireto (método de cálculo de “base sobre base”), bem como da existência de conflito entre o novo comando de exclusão do ICMS incidente na aquisição do cálculo dos créditos de Pis/Cofins em face da prevalência do comando anterior, que ainda estabelece a apropriação de créditos dessas contribuições sobre o valor do bem adquirido, no qual está inserido o ICMS.

Aliás, vale lembrar que essa alteração legislativa, originalmente contida no texto da MP nº 1.159/2023, já vem sendo questionada por contribuintes de todo o país no âmbito do Poder Judiciário, com o registro de algumas decisões liminares favoráveis à suspensão dos efeitos da nova regra, proferidas em primeira e segunda instâncias, e outras desfavoráveis.

Fato é que a discussão promete ser acirrada junto ao Poder Judiciário, ainda mais considerando que recentemente o STF firmou a tese de que “legislador ordinário possui autonomia para disciplinar a não cumulatividade a que se refere o art. 195, § 12, da Constituição, respeitados os demais preceitos constitucionais, como a matriz constitucional das contribuições ao PIS e COFINS e os princípios da razoabilidade, da isonomia, da livre concorrência e da proteção à confiança”, conforme Tema 756 da repercussão geral.

Portanto, levando-se em conta que um dos pontos centrais de questionamento em relação à exclusão do ICMS na base de cálculo dos créditos do Pis/Cofins perpassa justamente pela violação ao princípio da não cumulatividade constitucionalmente previsto, será necessário compreender até que ponto o legislador infraconstitucional poderá limitar seu alcance e, ainda, sem ferir outras regras constitucionais.

Também não se descarta a possibilidade de se argumentar, do ponto de vista formal, que essa alteração em relação à apuração dos créditos do Pis/Cofins envolve matéria sem pertinência com o tema original objeto da MP nº 1.147/2022 (Perse), que resultou na lei de conversão, assim como a necessidade de observância ao princípio da anterioridade nonagesimal para a eficácia da Lei nº 14.592/2023, embora, sob o nosso ponto de vista, estes argumentos sejam mais frágeis e tenham potencial para enfrentar maiores dificuldades de serem abraçados pelo Poder Judiciário.


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