Tributação de variação cambial gera questionamento

Ausência de acréscimo patrimonial no caso de aquisições em moeda estrangeira é um dos argumentos contrários à cobrança

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Uma pessoa que realizou um investimento em dólares no exterior, com recursos que já estavam lá fora e que foram auferidos na mesma moeda, deveria pagar Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre a variação cambial desse investimento? Sim, para o governo. Mas, para os advogados tributaristas, há elementos para questionar essa cobrança na Justiça.

A divergência surgiu com a Lei 14.754/23, publicada no ano passado no âmbito das medidas para igualar a tributação dos super ricos à dos demais aplicadores, e que passou a tributar como ganho de capital a variação cambial do investimento no exterior. Antes, havia isenção dessa tributação quando os investimentos ou ativos no exterior tivessem sido adquiridos com rendimentos auferidos originalmente em moeda estrangeira (conforme previa artigo da Medida Provisória MP 2.158-35/01, revogado pela Lei).

“O maior ponto de controvérsia sobre o tema em comento reside na revogação da isenção da tributação da variação cambial decorrente de ativos adquiridos com recursos auferidos originalmente em moeda estrangeira. Isto porque, se o custo de aquisição de um ativo foi formado na moeda local, não há nem que se falar em variação cambial, o ativo já nasceu em moeda estrangeira”, consideram Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados.

Para eles, se os ativos no exterior foram adquiridos com rendimentos auferidos originalmente em moeda estrangeira, não há que se falar em acréscimo patrimonial por variação cambial porque o custo de aquisição dos ativos foi originado na moeda local de seu país (e não no real). Portanto, não faria sentido haver a incidência de IRPF sobre ganho de capital decorrente de variação cambial.

A mesma opinião têm Thiago Braichi e Anna Laura Lacerda, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados. Eles avaliam que nem sempre a variação cambial implica em acréscimo patrimonial tributável pelo IRPF como ganho de capital. Este acréscimo ocorre quando o contribuinte tem um ganho econômico porque a moeda estrangeira se valoriza em relação ao real. No entanto, não haveria acréscimo patrimonial quando a aquisição e a alienação foram realizadas na mesma moeda. 

Violação ao princípio da irretroatividade 

Outro ponto questionável diz respeito ao início da cobrança do tributo. De acordo com a Lei 14.754/2023, seriam tributados os rendimentos/ganhos que foram incorporados ao ativo/bem até 31/12/2023, antes da vigência da Lei. Os advogados do Vieira Rezende lembram que, pelo princípio da irretroatividade previsto na Constituição, a legislação tributária não pode retroagir para alcançar, de forma prejudicial, fatos anteriores à sua entrada em vigor.

Braichi e Lacerda também consideram que precisa ser respeitado o princípio da irretroatividade, que impede a União, Estados e Municípios de cobrarem tributos sobre fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que institua a cobrança. “Neste sentido, não poderia a Lei prever a cobrança do IRPF sobre a variação cambial apurada antes de sua vigência, isto é, 31 de dezembro de 2023.” Outro ponto, ressaltam, é que o princípio da anterioridade anual precisaria ser respeitado porque a Lei revogou uma regra de isenção tributária, de modo que a variação cambial somente poderia ser tributada pelo IRPF partir de 1º de janeiro de 2024.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende detalham a questão e explicam por que consideram que há fundamentos para questionar essa tributação.


– A Lei 14.754/23 passou a tributar como ganho de capital a variação cambial referente a investimentos feitos no exterior por residentes no Brasil. Como será calculada a variação cambial (no resgate/venda ou anualmente) e qual a alíquota incidente?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: De acordo com a Lei 14.754/2023, a variação cambial sobre o principal investido em aplicações financeiras no exterior será considerada ganho sujeito à tributação pelo IRPF no momento do resgate, amortização, alienação, vencimento ou liquidação de tais aplicações financeiras. O mesmo se aplica à variação cambial do principal aplicado nas controladas no exterior (estejam elas submetidas ou não à tributação automática anual dos lucros), de modo que compõe o ganho de capital percebido no momento da alienação, baixa e liquidação do investimento (inclusive por meio de devolução de capital).

A legislação isenta de tributação a variação cambial decorrente (i) de depósitos em conta corrente ou em cartão de débito ou crédito no exterior, desde que não sejam remunerados e sejam mantidos em instituição financeira reconhecida e autorizada a funcionar; e (ii) de moeda estrangeira em espécie até o limite da alienação da moeda, no ano-calendário, equivalente a US$ 5.000,00.

Por fim, a Lei 14.754/2023 revogou, com efeito a partir de 01/01/2024, o artigo 24 da MP 2.158-35/2001, que isentou do IRPF a variação cambial decorrente de operações envolvendo ativos/investimentos no exterior que tenham sido adquiridos com rendimentos auferidos originalmente em moeda estrangeira. Sendo assim, a partir de 01/01/2024, até mesmo os ganhos com variação cambial de ativos adquiridos com recursos em moeda estrangeira serão tributados.

A regra geral é que a alíquota de IRPF incidente sobre tais ganhos/rendimentos será de 15%, com algumas exceções previstas na legislação (como a tributação de fundos de investimento de determinada natureza).

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: A Lei 14.754 de 2023 inovou ao tratar da tributação da renda auferida por pessoas físicas em aplicações financeiras, entidades controladas e trust no exterior. Dentre as novidades, a chamada Lei prevê a tributação da variação cambial do investimento realizado em entidades controladas no exterior como ganho de capital.

A apuração da variação cambial, e tributação pelo imposto de renda, ocorrerá na liquidação do investimento, seja por meio de alienação, baixa ou devolução de capital, e será equivalente à diferença positiva entre o valor percebido pela pessoa física e o custo de aquisição médio por cota/ação, em moeda nacional.

Para fins de cálculo da variação cambial, o custo de aquisição será calculado em reais, considerando a cotação da moeda estrangeira na data de realização do investimento, e o valor do resgate ou alienação, será calculado considerando a cotação na data da liquidação. A variação cambial será tributada por alíquotas progressivas que variam de 15% a 22,5%.


– Alguns consideram que a tributação, nesse caso, poderá ser retroativa – o que seria inconstitucional. Por que existe essa argumentação? Ela procede?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: O maior ponto de controvérsia sobre o tema em comento reside na revogação da isenção da tributação da variação cambial decorrente de ativos adquiridos com recursos auferidos originalmente em moeda estrangeira. Isto porque, se o custo de aquisição de um ativo foi formado na moeda local, não há nem que se falar em variação cambial, o ativo já nasceu em moeda estrangeira.

Porém, ainda que tal premissa seja superada e que se permita a tributação da variação cambial nestes casos, a Lei 14.754/2023 peca ao tributar inclusive os rendimentos/ganhos que foram incorporados ao ativo/bem até 31/12/2023, antes da sua vigência. Pelo princípio da irretroatividade, previsto no artigo 150, III, alínea a, da Constituição Federal de 1988, a legislação tributária não poderá retroagir para alcançar, de forma prejudicial, fatos anteriores à sua entrada em vigor.

Dentro desse contexto e para estes contribuintes (que consideram os seus ativos adquiridos com recursos auferidos em moeda estrangeira), a Lei 14.754/2023 foi ainda mais além e excepcionou a tributação da variação cambial nos casos em que a pessoa física optar por atualizar o valor do ativo na sua declaração para o seu valor de mercado e pagar uma alíquota de IRPF menor – de 8% – sobre eventual ganho de capital obtido com a diferença. Sendo assim, apenas nos casos em que o contribuinte opte pela atualização dos ativos que ele não teria a variação cambial tributada de forma acumulada. No entanto, essa isenção não deveria ficar condicionada à atualização dos ativos, mas sim, ser mantida em sua integralidade ou, quando muito, até os rendimentos produzidos até 31/12/2023, sendo tributada apenas a partir de 01/01/2024.

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Como a nova Lei revoga uma regra de isenção tributária, há de ser respeitado o princípio da anterioridade anual, de modo que a variação cambial somente poderia ser tributada pelo IRPF partir de 1º de janeiro de 2024.

Além disto, há de ser respeitado o princípio da não retroatividade, que impede a União, Estados e Municípios de cobrarem tributos sobre fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que institua a cobrança. Neste sentido, não poderia a Lei prever a cobrança do IRPF sobre a variação cambial apurada antes de sua vigência, isto é, 31 de dezembro de 2023.

Isto porque o fato gerador do tributo (ganho/perda por variação cambial) ocorre minuto a minuto ao longo do ano, e não somente no dia 31/12, e por isso a Lei estaria retroagindo ao tentar cobrar o IRPF sobre um fato gerador ocorrido antes mesmo de sua vigência (01/01/2024).

O legislador ainda prevê uma exceção à retroatividade para os contribuintes que optarem por atualizar o valor do ativo na Declaração de Ajuste Anual para o valor de mercado em 31 de dezembro e se sujeitar à alíquota de 8% de IRPF sobre o acréscimo ao custo de aquisição. Neste caso, a variação cambial ocorrida até 31 de dezembro estará isenta ao imposto.


– A variação cambial significa que houve de fato acréscimo patrimonial que possa caracterizar o ganho de capital? Ou se trata de uma questão controversa?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: No caso em que os ativos no exterior foram adquiridos com rendimentos auferidos originalmente em moeda estrangeira, de fato, não há que se falar em acréscimo patrimonial por variação cambial, justamente pelo fato de que o custo de aquisição dos ativos foi originado na moeda local de seu país (e não na moeda brasileira).

Cumpre ressaltar, no entanto, que é importante uma avaliação precisa do histórico de aquisição do ativo de modo a verificar se existem evidências suficientes a corroborar/comprovar a origem dos recursos que foram utilizados quando de sua aquisição.

Um ponto que gera bastante controvérsia, por exemplo, é o fato de que os ativos que foram regularizados no âmbito do RERCT – programa de repatriação promovido em duas rodadas pelo Governo Federal, seriam considerados um investimento novo em moeda estrangeira e, por conta disso, a variação cambial posterior não seria passível de tributação. No entanto, a Receita Federal do Brasil já consolidou o seu entendimento por meio da publicação do Perguntas e Respostas específico da Lei 14.754/2023 (Questão nº 21), de que o mero fato de ativos terem sido declarados no RERCT não indica que eles possuem origem em moeda estrangeira. Segundo a Receita Federal do Brasil, é necessário comprovar que a origem dos ativos em moeda estrangeira ocorreu de forma histórica, antes mesmo do RERCT.

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Nem sempre a variação cambial implica em acréscimo patrimonial tributável pelo IRPF como ganho de capital. Quando ocorre um ganho econômico pelo contribuinte, diante da valorização de moeda estrangeira em relação ao real, há um acréscimo patrimonial.

No entanto, a Lei instituiu a tributação de variação cambial sobre a alienação de investimentos realizados em moeda estrangeira. Nas operações de aquisição e alienação de bens, direitos e aplicações financeiras, ambas realizadas em moeda estrangeira, é controversa a cobrança de IRPF por falta de efetivo acréscimo patrimonial (fato gerador do IR) decorrente da variação cambial.

Neste caso, entende-se que não há um acréscimo patrimonial pelo contribuinte, visto que, como a aquisição e a alienação foram realizadas na mesma moeda, a pessoa física não perceberá qualquer vantagem econômica.


– O que se recomenda aos contribuintes?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Os contribuintes que estejam efetivamente inseridos dentre aqueles que tiveram os ativos no exterior adquiridos com recursos auferidos originalmente em moeda estrangeira podem se valer de sólidos argumentos de defesa pela não tributação da variação cambial como um todo (mesmo após a vigência da Lei 14.754/2023) ou apenas da variação cambial acumulada (i.e., que a variação cambial até 31/12/2023 não seja tributada mesmo nos casos em que o contribuinte não optar pela atualização do valor dos ativos).

De todo modo, é importante levar em consideração que não há precedentes específicos para estes casos de forma favorável e que a Receita Federal do Brasil já publicou orientação formal em sentido diverso. 

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Há a possibilidade de questionamento da cobrança de Imposto de Renda sobre as variações cambiais, por ausência de efetivo acréscimo patrimonial no caso de aquisições em moeda estrangeira, como mencionamos anteriormente.

Ainda, pode ser discutida a retroatividade da Lei 14.754/23 para alcançar fatos geradores do IRPF anteriores à sua vigência e a inconstitucionalidade da tributação da variação cambial ocorrida até 31 de dezembro. Mesmo que o legislador tenha previsto a isenção para os optantes pela atualização do custo de aquisição dos ativos, a retroatividade da norma não deve ser imposta a nenhum contribuinte.


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1 comentário
  1. Cesar Diz

    Caso receba dividendos no exterior essas já taxados em 30% e gaste esses dividendos em viagem no exterior, ou seja, não transformo em reais gasto em dolar, mesmo assim posso estar sujeito a tributação de variação cambial? Obrigado

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