CVM se manifesta contra supressão de direito de minoritários

Ações movidas pelas empresas não deveriam prevalecer sobre processos movidos por acionistas

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A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) recentemente manifestou entendimento contrário ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre as ações de responsabilidade civil contra administradores e controladores que causaram prejuízos em empresa controlada. O regulador entendeu que as ações movidas pelos minoritários não deveriam ser extintas automaticamente quando a própria empresa também mover uma ação também buscando reparação dos prejuízos.

A questão está relacionada ao caso JBS e ao pagamento de propina usando o caixa da empresa. Em 2017, um minoritário da JBS entrou com um processo contra os controladores. Em 2018, foi a vez de o fundo SPS I abrir um procedimento arbitral na Câmara de Arbitragem de Mercado (CAM) da B3 pedindo o ressarcimento à JBS dos prejuízos causados à empresa por conta dos atos de corrupção. Os dois processos foram anexados, já que tratavam do mesmo assunto. Apenas em 2021, a JBS também entrou com uma arbitragem com o mesmo tema, mas, na realidade, já havia tentado isso em 2017, quando convocou uma assembleia para que os acionistas deliberassem pela propositura da ação. A empresa foi pressionada pelo BNDESPar, que também era seu acionista. No entanto, a assembleia foi suspensa por conta da discussão se os irmãos Batista, controladores da JBS, poderiam votar ou não. Com isso, o encontro de acionistas foi realizado apenas em 2020 e a companhia entrou com a arbitragem em 2021.

O STJ decidiu, em 2022, que o processo da companhia deveria prevalecer sobre o dos minoritários, que teria de ser extinto. “O principal argumento do STJ no âmbito do caso foi a interpretação expansiva do artigo 159 da Lei das S.A., o qual prevê os requisitos necessários para o ajuizamento de ação contra os administradores da companhia, havendo, nesse caso, a necessidade de assembleia prévia para a propositura da ação e o enquadramento do acionista minoritário como legitimado extraordinário”, explicam Felipe Hanszmann e Ricardo Mafra, sócios do Vieira Rezende Advogados, e Caio Brandão e Thomaz Veiga, associados do mesmo escritório.

Na visão do tribunal, a Lei das Sociedades Anônimas (Lei das S.As) é silente sobre os requisitos para a propositura da ação – e, por isso, ele ampliou o uso dos critérios previstos no artigo 159 para o artigo 246 da mesma lei. O artigo 159 dispõe que compete à companhia, em decisão tomada em assembleia geral, mover uma ação de responsabilidade civil contra o administrador pelos prejuízos causados a seu patrimônio.

Já o artigo 246 visa proteger os acionistas minoritários das empresas controladas contra abuso de poder dos seus controladores. Para tanto, ele prevê que a controladora repare os danos que tiver causado na controlada. Uma ação pleiteando essa reparação pode ser movida pelos acionistas que representarem 5% ou mais do capital social ou mesmo qualquer acionista que preste caução e pague as custas e honorários dos advogados, caso perca a ação.

Trata-se de um incentivo para que os minoritários exerçam seus direitos. Isso porque o mesmo artigo prevê que o autor da ação receberá um prêmio de 5% sobre o valor da indenização, caso a controladora for condenada. Além disso, ela tem que reparar os danos e pagar os honorários dos advogados.

O diretor relator João Accioly, da CVM, se manifestou pela impossibilidade de extinção da ação do minoritário pelo ajuizamento da demanda pela companhia. Ele considerou que a extinção violaria o artigo 109, §2º da Lei das S.A., que prevê a impossibilidade de o estatuto ou a assembleia geral privar o acionista minoritário do exercício dos direitos conferidos por lei ou pelo estatuto.

“A extinção da ação do minoritário em caso de ação posterior da companhia poderia causar o esvaziamento da possibilidade de ação de responsabilidade do controlador, além de potencialmente suprimir direitos dos acionistas minoritários”, avaliam os advogados do Vieira Rezende. Para eles, a teoria defendida pelo STJ desincentivaria os minoritários a defender os direitos da companhia. Eles consideram que uma possível medida no futuro poderia ser a criação de uma regra legal para permitir a consolidação dos procedimentos.

Na entrevista abaixo, os advogados do Vieira Rezende explicam as visões da CVM e do STJ sobre o assunto.


– Recentemente, a CVM entendeu que, quando uma empresa abre uma arbitragem envolvendo ações de responsabilidade civil contra seus acionistas, isso não anula automaticamente a existência e de outras ações movidas por minoritários. O que baseou esse entendimento?

Felipe Hanszmann, Ricardo Mafra, Caio Brandão e Thomaz Veiga: O diretor relator João Accioly analisou dois aspectos principais no seu voto condutor, quais sejam: se o artigo 246 da Lei das S.A. exige assembleia geral prévia para propositura, pelo acionista minoritário, de ação de responsabilidade civil contra o controlador por danos causados à companhia controlada; e se a propositura, pela companhia, de ação de responsabilidade contra o seu acionista controlador após a propositura de ação de responsabilidade promovida pelos acionistas minoritários acarreta a automática extinção da ação de responsabilidade movida e conduzida pelos minoritários.

Em relação ao primeiro item, em resumo, sustentou-se que a Lei das S.A. é silente em relação à necessidade de prévia aprovação em assembleia, afastando a possibilidade de uso por analogia do artigo 159 da mesma lei. Por este motivo, a sua manifestação foi no sentido de que não seria necessária a convocação de assembleia para deliberar sobre a proposição de ação, podendo o acionista minoritário propor a demanda a qualquer momento.

No segundo tópico, o diretor relator, assim como faz em muitos de seus votos, utilizou-se de análise econômica e jurídica para chegar à sua conclusão. Argumentou, assim, pela impossibilidade de extinção da ação do minoritário pelo ajuizamento da demanda pela companhia, tendo em vista que tal consequência seria uma violação ao artigo 109, §2º da Lei das S.A., que prevê a impossibilidade de o estatuto ou a assembleia geral privar o acionista minoritário do exercício dos direitos conferidos por lei ou pelo estatuto. Além disso, o diretor relator sustenta que a extinção da ação do minoritário pela posterior ação da companhia se enquadraria em uma condição puramente potestativa, devendo ser rejeitada, com base no artigo 122 do Código Civil.


– O entendimento da CVM foi oposto ao do STJ, que analisou o mesmo caso em junho de 2022. Na ocasião, por que o STJ entendeu de forma diferente?

Felipe Hanszmann, Ricardo Mafra, Caio Brandão e Thomaz Veiga:  O principal argumento do STJ no âmbito do caso foi a interpretação expansiva do artigo 159 da Lei das S.A., o qual prevê os requisitos necessários para o ajuizamento de ação contra os administradores da companhia, havendo, nesse caso, a necessidade de assembleia prévia para a propositura da ação e o enquadramento do acionista minoritário como legitimado extraordinário. Vale destacar que o STJ já tinha interpretado em outros casos pela ampliação do uso dos critérios dispostos no artigo 159 para o artigo 246, tendo em vista que, na visão do tribunal, a lei é silente sobre os requisitos para a propositura da ação.


– Quais seriam os impactos, sobre as empresas e os investidores, da existência de dois casos de arbitragem semelhantes, com a diferença de serem movidos por minoritários ou pela própria companhia? E quais seriam as implicações de as ações dos minoritários serem posteriormente anuladas quando as companhias entrarem com as próprias ações contra seus controladores?

Felipe Hanszmann, Ricardo Mafra, Caio Brandão e Thomaz Veiga: Nesse ponto, é necessário observar que o bem que está sendo tutelado pelo artigo 246 da Lei das S.A. é o patrimônio da companhia como um todo. Em ambos os casos de arbitragem, seja o do acionista minoritário, seja o da companhia, o que se está pretendendo indenizar é o dano causado ao patrimônio da companhia pelo acionista controlador. A principal diferença do artigo 246 em relação ao artigo 159 da Lei das S.A. está no incentivo ao acionista minoritário no caso da propositura da demanda, que é o prêmio de 5% sob o valor da causa e os honorários fixados em 20%, ambos presentes no artigo 246, §2º da Lei das S.A.

A extinção da ação do minoritário em caso de ação posterior da companhia poderia causar o esvaziamento da possibilidade de ação de responsabilidade do controlador, além de potencialmente suprimir direitos dos acionistas minoritários. O minoritário que deseja ajuizar a demanda leva em consideração os custos e possíveis ganhos majorados pelos incentivos do artigo 246, §2º da Lei das S.A., contudo, no caso de aplicação da teoria defendida pelo STJ, estaria configurado um desincentivo pela defesa dos direitos da companhia pelo minoritário.

Para o futuro, uma medida de eficiência que se pode considerar seria a possibilidade de criação de regra legal permitindo a consolidação dos procedimentos, tal qual já ventilado no item 1.5.2 do relatório produzido em conjunto por OECD, CVM e Ministério da Economia denominado “Private Enforcement of Shareholder Rights: A Comparison of Selected Jurisdictions and Policy Alternatives for Brazil”, datado de 18 de novembro de 2020, dentre várias outras medidas para aumentar o nível de proteção de acionistas minoritários e consequentemente fortalecer o mercado de capitais brasileiro.


– O entendimento da CVM tem alguma implicação prática? O STJ pode reformular o seu entendimento nesse caso ou em casos futuros?

Felipe Hanszmann, Ricardo Mafra, Caio Brandão e Thomaz Veiga: As decisões da CVM, por serem feitas no âmbito administrativo, não possuem força vinculante perante o órgão judiciário. Contudo, são importantes fontes de orientação tendo em vista serem consideradas manifestações técnicas e especializadas em matéria de direito societário, o que pode demandar a necessidade de maior fundamentação em decisões posteriores do Judiciário contrárias ao entendimento da autarquia.


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