Voto de qualidade do Carf continua a gerar polêmica
Contribuintes que foram prejudicados por causa do dispositivo acionam a Justiça, mas perdem no TRF da 2ª Região
A Lei 13.988, publicada em abril, extinguiu o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e determinou que, em caso de empate nos julgamentos de autuações fiscais, os contribuintes sejam beneficiados. Com a mudança, algumas empresas têm pleiteado que a lei retroaja para beneficiá-las, alegando que perderam ações por causa do voto de qualidade. Duas decisões recentes da 3ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, no entanto, vetaram a aplicação da lei antes de sua publicação.
Na visão de Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, os pedidos de retroatividade não têm respaldo, pois a Lei 13.988/20 é processual e não retroage, sendo aplicável imediatamente aos processos em curso.
Sócia do Candido Martins Advogados, Tatiana Chiaradia também considera que se o pleito dos contribuintes for fundamentado na simples aplicação retroativa da Lei 13.988/20 é difícil sua defesa. “Por outro lado, se as medidas judiciais forem fundamentadas com base no artigo 112 do Código Tributário Nacional, que protege o contribuinte em caso de dúvida sobre a correta interpretação do direito tributário, há mais chances de êxito”, afirma.
A seguir, Braichi e Chiaradia abordam as controvérsias envolvendo o assunto.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem negado a aplicação retroativa da lei que acabou com o voto de qualidade no Carf. Em linhas gerais, o que era o voto de qualidade e o que determinou a Lei 13.988/20?
O voto de qualidade no Carf funcionava como um mecanismo de desempate dos julgamentos. Em caso de empate, o presidente da turma, além do voto ordinário, poderia proferir o voto de preferência para desempatar o julgamento. Considerando que o presidente da turma é sempre representante da Fazenda Nacional, a controvérsia sobre o critério de desempate reside no fato de que não haveria, nesses casos, um julgamento completamente isento, pois prevaleceria o voto do presidente. Com o advento da Lei 13.988/20, em situação de empate nos julgamentos, o caso deve ser resolvido favoravelmente ao contribuinte.
O voto de qualidade, previsto no § 9º do art. 25 do Decreto 70.235/72 para caso de empate de julgamento, era prerrogativa dos presidentes das turmas do Carf, que necessariamente são conselheiros representantes da Fazenda Nacional. Curiosamente, essa prerrogativa oportunizou a vitória da Fazenda Nacional em diversos julgamentos polêmicos que geralmente envolviam altos valores e terminavam em empate.
Contudo, a recente Lei 13.988/20 dispõe que, em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto 70.235/72, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.
Os pleitos negados pelo TJ-RJ foram apresentados por empresas que já haviam entrado na Justiça antes da Lei 13.988/20, reclamando de derrotas no Carf por causa do voto de qualidade. Na sua opinião, é justo o pedido das empresas pela retroatividade?
O pleito dos contribuintes que ajuizaram medidas judiciais, antes da Lei 13.988/20, visando a reversão de julgamentos do Carf que se utilizaram do voto de qualidade, encontra fundamento no artigo 112 do Código Tributário Nacional, de acordo com o qual, em caso de dúvida, a lei tributária deve ser interpretada favoravelmente ao contribuinte. Entendo que o simples pedido de aplicação da lei superveniente de forma retroativa não tem sentido do ponto de vista jurídico, pois não veio conferir interpretação acerca da legislação fiscal. O pleito dos contribuintes faz sentido, na minha visão, se fundamentado no artigo 112 do Código Tributário Nacional.
Inicialmente, é importante esclarecer que as ações não foram propostas com fundamento na retroatividade da Lei nº 13.988/20, mas sim com base na tese de inconstitucionalidade do voto de qualidade que, à época, ainda era vigente. Essa tese não é pacificada nos tribunais brasileiros, e não houve em qualquer momento declaração de inconstitucionalidade do voto de qualidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Contudo, após a promulgação da Lei 13.988/20, discute-se se esta lei poderia retroagir para descaracterizar julgamentos definidos com o voto de qualidade antes de sua vigência.
A meu ver, essa retroatividade não tem respaldo, pois se trata de uma lei processual, que não retroage e é aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada, nos termos do art. 14 do CPC, aplicável aos processos administrativos por força do art. 15 do mesmo diploma legal.
Além disso, não é possível considerar que a lei deve retroagir por ser benéfica ao contribuinte, pois a retroatividade da lei tributária está prevista apenas para os casos discriminados no art. 106 do Código Tributário Nacional (CTN), quais sejam: lei expressamente interpretativa; ou tratando-se de ato não definitivamente julgado, quando deixe de defini-lo como infração, deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência ou lhe comine penalidade menos severa.
Portanto, findo o julgamento durante a vigência do § 9º do art. 25 do Decreto 70.235/72, em minha opinião, não caberia pleitear sua anulação para aplicação de lei posterior, que não se enquadra nas hipóteses do art. 106 do CTN.
Por que, na sua avaliação, a criação de uma lei específica não consegue acabar definitivamente com as discussões em torno do voto de desempate no Carf?
Não há dúvidas sobre a aplicação da Lei 13.988/20 para os casos julgados pelo Carf a partir da data de sua publicação. Ocorre que os contribuintes vêm questionando a aplicação do voto de qualidade em julgados concluídos antes de sua publicação. Se o pleito dos contribuintes for fundamentado na simples aplicação retroativa da Lei 13.988/20, é difícil sua defesa. Por outro lado, se as medidas judiciais forem fundamentadas com base no artigo 112 do Código Tributário Nacional, que protege o contribuinte em caso de dúvida sobre a correta interpretação do direito tributário, há mais chances de êxito. Nesses casos, a aprovação da lei que extingue o voto de qualidade corrobora com a interpretação defendida pelo contribuinte, mas, na minha visão, não deve ser utilizada isoladamente como fundamento legal para o cancelamento do crédito tributário/anulação do julgamento administrativo.
Isso acontece porque há uma discussão envolvendo a constitucionalidade da estratégia adotada para o trâmite da Lei 13.988/20. O art. 28 desta lei decorre de emenda aglutinativa que não teria pertinência temática com as matérias previstas na Medida Provisória 899/19, convertida na Lei 13.988/20. O tema é, inclusive, objeto da ADI 6415, pendente de julgamento no STF.
Contudo, esta não é a única polêmica. Além da dúvida sobre a constitucionalidade do art. 28, a Fazenda Nacional aponta para o risco de prejuízo à arrecadação em casos controversos, pois o contribuinte será sempre beneficiado pela ausência de consenso entre os conselheiros. Portanto, também há discussão em torno da legitimidade da extinção automática de débito diante da inexistência de consenso, sobretudo considerando a irresignação da Fazenda Nacional.