Fim do voto de qualidade do Carf: o que vem pela frente?

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Está previsto para o primeiro semestre deste ano o julgamento, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o fim do voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A questão é polêmica e aguardada com ansiedade pelos contribuintes, que há pouco tempo começaram a se beneficiar do término do dispositivo. 

O voto de qualidade (também chamado de voto duplo) prevê que, em casos de empate nos julgamentos envolvendo impostos (tecnicamente, créditos tributários), o desempate seja feito por um conselheiro do Carf que represente a Fazenda Nacional. O problema é que essa prerrogativa beneficiava quase sempre o Fisco em detrimento do contribuinte. Após muita polêmica sobre o assunto, o voto de qualidade foi extinto em 2020, com a promulgação da Lei 13.988/20 — desde então, no caso de empate, passou a se dar ganho aos pagadores de impostos. Há, no entanto, quem não tenha se conformado com a mudança. Tanto que hoje três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) questionam o fim do mecanismo. 

Se a decisão for pela inconstitucionalidade, o voto de qualidade voltará a valer. Nessa situação, uma das preocupações é o que acontecerá com as decisões favoráveis aos contribuintes nas situações em que houve empate após a vigência da lei.  Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados, acredita que, nesse cenário, o STF deverá modular os efeitos de sua decisão para salvaguardar as decisões proferidas no Carf antes do julgamento. 

É controversa a possiblidade de rediscussão dos débitos dos contribuintes se o voto de qualidade voltar a valer, considera Ligia Merlo, advogada associada do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados. “Embora no passado tenham ocorrido tentativas infrutíferas da Fazenda Nacional de recorrer ao Judiciário para debater sobre decisões proferidas no âmbito do Carf, em regra, não seria possível reaver os créditos já extintos em âmbito administrativo”, afirma.

Já se a decisão do tribunal for pela constitucionalidade, Bruna Luppi e Breno Kingma, sócios do Vieira Rezende Advogados, consideram que um cenário de maior segurança jurídica será estabelecido, mas não sem que outras discussões, como a que diz respeito à Portaria 260, de 1 de julho de 2020, surjam. 

Na entrevista abaixo, Coimbra, Luppi, Kingma e Merlo explicam a questão e tecem considerações sobre possíveis cenários a partir da decisão do STF. 


Quais são as ações no STF que remetem à constitucionalidade do fim do voto de qualidade do Carf e o que elas questionam? 

Paulo Coimbra: As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.399, 6.403 e 6.415 possuem como pauta a extinção do voto de qualidade. Elas discutem sobre possível declaração de incompatibilidade, com a Constituição Federal, do artigo 19-E da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, na redação dada pela Lei 13.988/20, que afasta o voto duplo do Fisco em casos de empate entre conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Em 2020, a mencionada lei estabeleceu a: (i) vedação do voto de qualidade (entenda-se, voto duplo) no âmbito do Carf, caso haja empate no julgamento sobre a determinação e a exigência do crédito tributário; e (ii) determinação de que, nessa hipótese, a controvérsia seja resolvida de maneira favorável ao contribuinte.

Questiona-se, também, nas ADIs, a possibilidade de a Fazenda Pública ajuizar ação pleiteando o restabelecimento do crédito tributário na hipótese de a controvérsia ser resolvida de maneira favorável ao sujeito passivo, posteriormente ao empate no julgamento.

A ADI 6.399 foi proposta pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, e aponta vício no processo legislativo (i) por inserção do tema ao projeto de lei mediante emenda parlamentar de matéria de iniciativa reservada ao presidente; e (ii) por ser matéria sem pertinência temática com o texto originário.

A ADI 6.403, proposta pelo o Partido Socialista Brasileiro, afirma que o fim do voto de qualidade “implicará a alteração da própria natureza do Carf, que passará a ter caráter eminentemente privado, pois os representantes dos contribuintes, indicados por entidades privadas, passam a ter poder decisório soberano.”

A ADI 6.415 foi proposta pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) e está centrada, basicamente, nos argumentos acima descritos.

Bruna Luppi e Breno Kingma: A discussão acerca da constitucionalidade do fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio das Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.399, 6.403 e 6.415, todas com origem no Distrito Federal e respectivamente ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República, Partido Socialista Brasileiro e Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP).

Tais ADIs questionam especificamente o artigo 28 da Lei 13.988, de 14 de abril de 2020, que introduziu o artigo 19-E na Lei 10.522/02 para dispor que, nos casos em que houver empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não mais será aplicado o voto de qualidade, até então adotado pelo Carf com base no artigo 25, §9º do Decreto 70.235/72, como critério de desempate, resolvendo-se o julgamento a favor do contribuinte.

A tese central defendida nas referidas ADIs é a existência de uma inconstitucionalidade formal em razão de vício no processo legislativo já que, por meio de emenda parlamentar, foi inserida em lei (Lei 13.988/20) de conversão de medida provisória (MP 899/19), matéria de iniciativa reservada e sem pertinência quanto ao tema em relação ao texto original da medida provisória, que tratou da transação em matéria tributária para a negociação extrajudicial de créditos tributários.

Também se alega a existência de inconstitucionalidade material pois, em linhas gerais, não mais caberá ao Estado decidir sobre a exigência de tributos por meio dos seus representantes, mas sim a representantes do ambiente privado e associados a interesses específicos. Essa situação implicaria em violação à soberania, aos princípios da legalidade e da impessoalidade, inafastabilidade do controle jurisdicional, segurança jurídica e ao devido processo legal substantivo. Além disso, reforçaria a força representativa privada sobre o órgão público por não mais prevalecer o entendimento do representante da Fazenda em caso de empate no julgamento pelo Carf.

No entanto, esse argumento de inconstitucionalidade material trazido nas ADIs se mostra equivocado, uma vez que, que enquanto integrantes do Carf, os conselheiros do Fisco ou dos contribuintes se colocam na posição de julgadores, não podendo prevalecer uma errônea ideia de que uns defendem o Fisco e outros os contribuintes. Tanto é assim que um representante do Fisco poderá votar a favor dos contribuintes e vice-versa.

Ligia Merlo: A Lei 13.988/20, que teve origem da conversão em Lei da Medida Provisória 899/19, acabou gerando repercussão desde o início de sua vigência uma vez que, ao incluir o artigo 19-E na Lei 10.522/02, foi responsável por dar fim ao voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

O Carf, enquanto órgão com estrutura colegiada paritária, possui em sua composição conselheiros que se dividem entre representantes dos contribuintes e representantes da Fazenda Nacional. Contudo, as presidências das turmas de julgamento são sempre reservadas para os conselheiros representantes da Fazenda. Em caso de empate nos votos desses conselheiros, a situação que era resolvida pela aplicação do chamado voto de qualidade. Esse voto servia como mecanismo de desempate, mas apenas o voto dos presidentes, ou seja, os membros representantes da Fazenda Nacional tinham peso duplo. No entanto, com a entrada em vigor da Lei 13.988/20, os casos de empate no Carf passaram a ser solucionados de forma “pró-contribuinte”, pondo fim ao “voto duplo” do representante da Fazenda Nacional.

Tal lei passou a gerar grande controvérsia, em razão de suposta existência de vício formal e material de constitucionalidade, dando origem a três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6.399, 6.403 e 6.415), atualmente pendentes de análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Em síntese, as três ADIs, que serão julgadas de forma conjunta pelo Supremo, questionam a inconstitucionalidade desse dispositivo, por vício formal. Isso porque a inclusão art. 19-E na Lei 10.522/02 não foi aprovada com a observância ao devido processo legislativo, uma vez que resultou de emenda parlamentar apresentada após a emissão de parecer com a comissão mista, sem qualquer relação com a Medida Provisória 899/19.

Além disso, também são debatidas questões de inconstitucionalidade material atreladas ao fim do voto de qualidade. Dentre elas, cabe menção ao desequilíbrio da relação processual entre Fazenda Pública e contribuintes, bem como a inobservância do princípio da prevalência do interesse público sobre o privado, uma vez que os desempates sempre serão decididos de forma favorável aos contribuintes. Nessa hipótese, de forma diversa do que era feito pelos contribuintes antes do fim do voto de qualidade, a Fazenda Pública não poderá recorrer ao Judiciário para reaver os créditos tributários.


Caso o fim do voto de qualidade seja considerado inconstitucional, quais são os possíveis cenários para os contribuintes que tiveram decisões favoráveis após o fim do voto? Seus casos seriam julgados novamente pelo Carf? Eles teriam que pagar os impostos? 

Paulo Coimbra: Caso o fim do voto de qualidade seja considerado inconstitucional, em nossa opinião, deverá o Supremo modular os efeitos dessa eventual decisão, de forma a salvaguardar as decisões proferidas no Carf antes de sua decisão (do STF) definitiva.

Nesse caminho, especialmente diante da ausência do deferimento de medidas liminares que impeçam a eficácia da Lei 13.988/20, entende-se que STF deverá atribuir efeitos prospectivos à declaração de inconstitucionalidade tendo em vista a garantia da segurança jurídica e excepcional interesse social. 

Bruna Luppi e Breno Kingma: Uma decisão que venha a declarar a inconstitucionalidade do fim do voto de qualidade se dará por meio do controle concentrado de constitucionalidade, já que o tema está sob julgamento na Suprema Corte por meio de ADIs.

Nesse cenário, a decisão que declare a inconstitucionalidade do fim do voto de qualidade teria o efeito de restabelecer o critério de desempate pelo voto de qualidade, o que poderia colocar em xeque todas as decisões administrativas decididas em favor dos contribuintes desde abril de 2020, sob o manto do artigo 19-E na Lei 10.522/02, que certamente seriam questionadas pelo Fisco. E caso eventualmente ocorra uma reversão das decisões administrativas para aplicar o voto de qualidade como critério de desempate, restará aos contribuintes a via do Judiciário para questionar a manutenção da exigência fiscal ou mesmo o critério utilizado para o seu restabelecimento, pois uma eventual anulação dos efeitos representaria uma total violação à segurança jurídica e à proteção da confiança legítima do contribuinte, já que foi adotada a lei plenamente vigente e válida no momento do julgamento administrativo para tratar o seu caso.

Vale lembrar que poderá o STF, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, definir a abrangência da decisão nas ADIs para restringir seus efeitos ou mesmo decidir que tenham eficácia a partir do seu trânsito em julgado ou de outro momento que seja fixado pelo tribunal, nos termos do artigo 27 da Lei 9.868/99.

Portanto, a fim de neutralizar um possível questionamento e restabelecimento do voto de qualidade para atingir casos que já tenham aplicado o artigo 19-E da Lei 10.522/02 para decidir e desempatar julgamentos em favor dos contribuintes e tenham se encerrado na esfera administrativa, o STF poderia estabelecer um critério para tratar tais situações, o que seria plausível e adequado do ponto de vista jurídico para não criar um ambiente ainda maior de insegurança jurídica e de contencioso entre o Fisco e os contribuintes.

Ligia Merlo: A possiblidade de os contribuintes terem seus débitos rediscutidos em caso de eventual declaração de inconstitucionalidade da Lei 13.988/20 ainda é questão controversa. Isso porque, embora no passado tenham ocorrido tentativas infrutíferas da Fazenda Nacional de recorrer ao Judiciário para debater sobre decisões proferidas no âmbito do Carf, em regra, não seria possível reaver os créditos já extintos em âmbito administrativo.

Isso se dá em razão da aplicação do artigo 156, IX do Código Tributário Nacional (CTN) que prevê que “a decisão administrativa é irreformável na órbita administrativa”. Além disso, por força do princípio do tempus regit actum, os fatos devem ser regidos pela lei processual vigente no momento de sua ocorrência. Assim, ainda que decretada a inconstitucionalidade da Lei 13.988/20, o Carf não poderia reavaliar os casos já julgados e decididos conforme a legislação processual aplicável à época.

Nesse cenário, a Fazenda Nacional só poderia reaver os seus créditos se levasse a discussão ao Judiciário, o que, contudo, não seria possível no caso.


Se o fim do voto de qualidade for considerado constitucional, o Fisco poderá recorrer ao Judiciário para questionar as decisões do Carf? O que se espera nesse cenário?

Paulo Coimbra: Caso o fim do voto de qualidade seja considerado constitucional, sem prejuízo de muitos que pensam de forma diferente, entendemos que a possibilidade de a Fazenda ajuizar ação visando ao restabelecimento do crédito tributário, nos casos de empate com efeitos favoráveis ao contribuinte no Carf, pode ser uma consequência que guarda certa lógica e coerência. 

Embora a decisão administrativa final contrária aos interesses do Fisco seja proferida no âmbito da própria administração pública, em sede de controle interno de legalidade, a extinção do voto duplo (usualmente aludido como voto de qualidade em favor de representante do Fisco) e a previsão de que decisões empatadas prevaleçam em favor dos contribuintes acabaram por atribuir ao conselho uma relativa autonomia e independência que se manifesta, de forma muito candente, nos casos de empate pró contribuinte. Tal independência tende a atenuar, em nosso sentir, o caráter vinculante das decisões do Carf favoráveis aos contribuintes em decorrência de empate à própria administração. Havendo, portanto, uma representação genuinamente paritária (sem voto duplo em favor de representante do Fisco) e efeitos favoráveis ao sujeito passivo em decorrência de empate, não nos parece de todo desarrazoado que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) pleiteie em juízo a revisão da decisão objeto de empate, cujos efeitos lhe sejam desfavoráveis por presunção legal de que o tributo não possa ser exigido.

Nessa ordem de ideias, a decisão administrativa irreformável somente extinguiria o crédito tributário se, primeiro, for favorável ao contribuinte e, segundo, se não decorrer de empate entre os conselheiros do Carf.

Alguns entendem que, caso o Poder Judiciário possa decidir pelo restabelecimento de exigência anteriormente extinta no Carf, o primeiro estaria realizando o lançamento do crédito tributário, que consiste em atividade privativa da autoridade administrativa, nos termos do artigo 142, caput, do Código Tributário Nacional (CTN). Em sentido contrário, pode-se entender que o Poder Judiciário não estaria realizando o ato do lançamento propriamente dito, mas sim revisando o seu controle interno de legalidade, podendo frustrar os efeitos da decisão administrativa resultante de empate entre conselheiros que o tenha cancelado, caso se convença da existência de motivos fáticos e jurídicos para tanto.

Contudo, algumas ressalvas merecem ser feitas: primeiramente, em relação às penalidades, a dúvida objetivamente estampada pelo empate entre conselheiros, todos especialistas em matéria tributária, inviabiliza sua exigência, por força do princípio in dubio pro infrator, previsto no artigo 112 do CTN. Com efeito, se num determinado julgamento metade dos conselheiros, especialistas de reconhecido nível técnico e notório saber em matéria tributária, entenderam não haver a prática de ato punível, não se poderia exigir do contribuinte (diante de uma legislação intrincada e, não raro, impenetrável ao homem médio) a previsibilidade da necessidade de conduta diversa. Assim, caso seja reconhecida legitimidade de a Fazenda pública provocar o Poder Judiciário questionando os efeitos de decisão do Carf tomada por empate, salvo melhor juízo, somente o tributo e os juros poderão ser objeto de eventual reforma pelo Judiciário.

Em segundo lugar, eventual legitimidade da PGFN para questionar em juízo decisões administrativas favoráveis ao contribuinte em decorrência de empate entre conselheiros deverá ser exercida com atilado escrúpulo, mercê o risco de sucumbência. Litigar, por certo, deve ensejar um risco, de forma a se evitar a provocação do já assoberbado Poder Judiciário com demandas levianas e aventureiras, que não tenham chances razoáveis de êxito. Nesse particular, vale destacar que também a Fazenda Pública, maior litigante de nosso País, ocupando polo ativo ou passivo de quase metade dos milhões de processos judiciais em curso no Brasil, deve exercer seu direito de ação com responsabilidade.

Bruna Luppi e Breno Kingma: Caso o fim do voto de qualidade previsto no artigo 28 da Lei 13.988/20 seja declarado constitucional pelo STF, há uma grande possibilidade de que seja fixada tese para assegurar à Fazenda Nacional o ajuizamento de ação judicial com o objetivo de restabelecimento do lançamento tributário, o que inclusive já foi levantado no voto proferido pelo ministro Luiz Roberto Barroso.

Nesse cenário, em que a Fazenda Nacional seja autorizada a recorrer ao Poder Judiciário das decisões finais administrativas no âmbito do Carf decididas favoravelmente aos contribuintes após empate no julgamento, a expectativa é uma enxurrada de ações judiciais que serão propostas pelo Fisco para questionar as decisões administrativas que já tenham aplicado o artigo 19-E da Lei 10.522/02 para decidir e desempatar julgamentos em favor dos contribuintes.

Entretanto, vale ressaltar que essa possibilidade de a Fazenda Nacional questionar judicialmente a decisão do Carf é tema recorrente, que volta de tempos em tempos à pauta jurídico-tributária, mas a própria doutrina e estudos sobre o tema, em diversas ocasiões, já pontuaram que tal possiblidade seria um completo absurdo, já que o Carf, assim como a PGFN, é órgão integrante do Ministério da Economia. Logo, na prática, teríamos a PGFN questionando uma decisão dada pela própria Administração Pública Direta da qual faz parte.

Ligia Merlo: Como mencionado, as decisões administrativas, por força do artigo 156, IX do CTN, são irreformáveis na órbita administrativa, salvo os casos que podem ser objeto de ação anulatória. Essa não é, contudo, a situação em análise. Isso porque, ainda que o STF decida pela inconstitucionalidade do fim do voto de qualidade do Carf, não será possível que a Fazenda Nacional ajuíze ação anulatória para questionar os débitos já desconstituídos pelo conselho, tendo em vista a sua ilegitimidade para tanto.

No mesmo sentido, as decisões em sede de ADI são vinculantes para todo o Judiciário e administração pública, não sendo possível que a Fazenda Nacional venha rediscutir a Lei 13.988/20 caso o voto de qualidade seja considerado constitucional pelo Supremo.

Nessa perspectiva, tendo em vista que atualmente a Fazenda Nacional não possui legitimidade ativa para ajuizar ações para rediscussão de crédito tributário, não parece haver atualmente mecanismos para que o Fisco traga novamente a questão ao Judiciário


Quais seriam os efeitos de uma decisão favorável ao fim do instrumento para os contribuintes? Haverá mais segurança jurídica?

Paulo Coimbra: Caso haja decisão favorável aos contribuintes, consolidando o fim do voto de qualidade (entenda-se voto duplo em favor de representante do Fisco), haverá a materialização da aplicação do princípio in dubio pro contribuinte, atribuindo-se, sem sombra de dúvidas, maior segurança jurídica ao sistema tributário federal.

Com o fim do voto duplo em favor de representante do Fisco, além da instituição de uma representação genuinamente paritária no Carf, a atribuição de efeitos favoráveis aos contribuintes em decisões objeto de empate entre conselheiros tende a mitigar a injustiça que não raro é cometida em diversas autuações fiscais pautadas em entendimentos fiscalistas tendenciosos, muitas vezes imprevisíveis pelo contribuinte à época do fato gerador. É draconiano exigir do contribuinte que anteveja qual será a interpretação que irá prevalecer, anos mais tarde, em torno de legislação tributária marcada por notória complexidade, tecnicidade e instabilidade.

Bruna Luppi e Breno Kingma: Caso o STF venha a declarar a constitucionalidade do fim do voto de qualidade, restará chancelado que nos casos em que houver empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, a controvérsia será resolvida a favor do contribuinte, e não mais por voto de qualidade, até então previsto no artigo 25, §9º do Decreto 70.235/72 com critério de desempate no âmbito do Carf.

Nesse cenário, haveria uma definição quanto à constitucionalidade e consequente validade do novo critério de desempate — a favor dos contribuintes —, o que, em princípio, confirmaria as decisões proferidas pelo Carf desde abril de 2020, que passaram a adotar esse critério.

Com a definição do tema pelo STF, certamente seria estabelecido um cenário de maior segurança jurídica, pelo menos em relação à validade das decisões favoráveis aos contribuintes em processos administrativos no âmbito do Carf que tenham empate no julgamento, sem aplicação do voto de qualidade, tal como previsto no artigo 19-E da Lei 10.522/02.

Ocorre que, a partir de uma decisão do STF favorável ao fim do voto de qualidade para os contribuintes, certamente será instaurada uma nova discussão entre o Fisco e os contribuintes a respeito da interpretação restritiva que a Portaria 260, de 1 de julho de 2020, editada pelo Ministério da Fazenda, pretendeu atribuir à aplicação da extinção do voto de qualidade prevista no artigo 19-E da Lei 10.522/02.

A discussão nesse ponto se revela na medida em que o artigo 19-E da Lei 10.522/02 não prevê ou mesmo determina matérias ou situações nas quais o voto de qualidade poderia ainda ser utilizado, limitando-se a extingui-lo, de modo a aplicar o desempate favorável ao contribuinte de forma abrangente nos casos em que ocorra o empate no julgamento do processo administrativo pelo Carf. 

Apesar disso, a Portaria 260/20 insiste em manter a aplicação do voto de qualidade quando ocorrer empate na votação em determinadas situações julgadas no âmbito do Carf, tais como responsabilidade tributária, questões processuais, conversão de julgamento em diligência, embargos de declaração e demais espécies de processos de competência do Carf que não decorrem de auto de infração ou de notificação de lançamento, como, por exemplo, compensação tributária.

A justificativa da Fazenda Nacional para essa interpretação restrita é que o artigo 19-E da Lei 10.522/02 faz referência a “empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”, o que não alcançaria as situações elencadas na portaria.

No entanto, por trazer uma limitação não prevista no artigo 19-E da Lei 10.522/02 em relação ao desempate favorável ao contribuinte e, ainda, pretender restringir seu alcance às hipóteses em que o empate ocorrer em julgamento de processo administrativo em que há exigência de crédito tributário por meio de auto de infração ou de notificação de lançamento, a Portaria 260/20 já vem sendo questionada no âmbito do Poder Judiciário, com registro de recentes decisões favoráveis aos contribuintes.

Portanto, ainda que o STF adote uma decisão favorável ao fim do voto de qualidade, um novo contencioso está anunciado, agora a respeito da abrangência do novo critério de desempate previsto no artigo 19-E da Lei 10.522/02, já que a Portaria 260/20 pretende restringi-lo para afastar determinadas situações.

Também é importante pontuar que, num cenário em que a extinção do voto de qualidade seja declarada constitucional, a Fazenda Nacional certamente brigará para que ao menos seja assegurado o seu direito de questionar judicialmente as decisões administrativas decididas pelo novo critério de desempate, com o objetivo de que se restabeleça o lançamento tributário perante o Poder Judiciário.

A bem verdade, a única certeza até o momento é que na atual conjuntura há um ambiente de total imprecisão e indefinição tanto para o Fisco quanto para os contribuintes em relação às decisões administrativas proferidas desde abril de 2020 com base no novo critério de desempate previsto no artigo 19-E da Lei 10.522/02. 

Enquanto a definição do STF sobre as ADIs não chega, não é possível dar definitividade aos casos administrativos que foram julgados com base nesse novo critério — ou mesmo pontuar suas consequências —, pois somente após o término do julgamento será possível conhecer os desdobramentos e efeitos da decisão, sendo certo que até que isso ocorra o cenário é de insegurança jurídica.

Ligia Merlo:  Desde a entrada em vigor da Lei 13.988/20, os contribuintes têm vivido um cenário de grande insegurança jurídica, especialmente ao se considerar as ADIs pendentes de análise pelo Supremo. No entanto, esse cenário de insegurança parece ser mitigado na hipótese de uma decisão favorável à constitucionalidade do fim do voto de qualidade.

Isso porque as decisões definitivas em sede de ADI possuem efeitos vinculantes em relação a todos os órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, não sendo possível também que a Fazenda Pública venha a discutir os lançamentos tributários no Judiciário.

Desse modo, resta aguardar o desfecho dado pelo Supremo à questão, bem como as manifestações dos ministros acerca da modulação dos efeitos dessa decisão, caso seja declarada a inconstitucionalidade da Lei 13.988/20.


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