A batalha em torno dos alimentos nocivos à saúde

Manifesto por Reforma Tributária saudável pede tributação de ultraprocessados pelo Imposto Seletivo

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A definição dos bens cujo consumo é nocivo à saúde será essencial para a aplicação do Imposto Seletivo (IS), instituído pela Reforma Tributária do Consumo. A batalha para incluir ou excluir produtos da lista que definirá o que é prejudicial à saúde ou ao meio ambiente já começou em várias frentes, sendo uma delas travada no setor de alimentos. De um lado, médicos, economistas, epidemiologistas e  chefes de cozinha como Bela Gil, Rita Lobo e Rodrigo Mocotó defendem que os alimentos ultraprocessados sejam tributados pelo IS. De outro, representantes da indústria de ultraprocessados, com a Frente Parlamentar do Empreendedorismo, pretendem que a taxação pelo IS de cada produto conste de projeto de lei específico.

“Em razão do potencial aumento da carga tributária sobre essas atividades, é esperado que, durante o processo de regulamentação do IS, haja uma movimentação de empresas dos setores econômicos envolvidos a fim de afastar ou diminuir a tributação das suas atividades pelo imposto”, afirma Anna Flávia Moreira, associada do Freitas Ferraz Advogados. Para a advogada, há instrumentos para fazer com que o interesse público prevaleça, como a iniciativa popular de proposições legislativas (prevista pela Constituição) e o lobby político, ainda não regulamentado, mas que pode se constituir em ferramenta democrática de representação de interesses, levando contribuições da opinião pública para os tomadores de decisões.

A intenção de representantes da indústria ultraprocessados é tornar obrigatória a elaboração de estudo individualizado para cada alimento, com a indicação das metas de redução do seu consumo. Assim, a incidência do IS não seria instituída indistintamente sobre todos os alimentos ultraprocessados a partir de uma mesma lei, e sim por várias leis – o que tornaria o processo de aprovação no Legislativo bem mais complexo e demorado.

Como vai funcionar a regulamentação do Imposto Seletivo

Moreira explica que, pela redação da Reforma Tributária sobre o Consumo (EC 132/23), uma Lei Complementar definirá os bens e serviços considerados danosos à saúde e ao meio ambiente e cuja produção, comercialização ou importação deverá ser onerada pelo IS. Depois, uma Lei Ordinária definirá as alíquotas aplicáveis aos produtos.

No caso dos alimentos, no entanto, pode haver uma brecha para deixar alguns produtos nocivos à saúde de fora do IS. O parágrafo 9º do artigo 9º da EC 132/23 estabelece que o IS não incidirá, dentre outros, sobre “alimentos destinados ao consumo humano” listados na Lei Complementar que definirá as operações beneficiadas com redução de 60% das alíquotas do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

“Dessa forma, caso sejam incluídos na lista de ‘alimentos destinados ao consumo humano’ dessa lei complementar, os alimentos ultraprocessados serão beneficiados com alíquotas reduzidas e não poderão ser objeto de tributação seletiva”, afirma Moreira.

Na entrevista abaixo, a advogada do Freitas Ferraz explica como o IS vai funcionar e aborda a questão da sua incidência sobre os alimentos ultraprocessados.


– No processo de regulamentação do Imposto Seletivo (IS), espera-se muita pressão por parte de fabricantes de produtos que podem ser considerados nocivos e atrair a incidência do IS? Há mecanismos para fazer com que o interesse público prevaleça? 

Anna Flávia Moreira: O Imposto Seletivo (IS) previsto pela Emenda Constitucional nº 132/2023 (Reforma Tributária) pode incidir sobre a produção, a comercialização ou a importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Em razão do potencial aumento da carga tributária sobre essas atividades, é esperado que, durante o processo de regulamentação do IS, haja uma movimentação de empresas dos setores econômicos envolvidos a fim de afastar ou diminuir a tributação das suas atividades pelo imposto.

A título de exemplo, representantes da indústria de alimentos ultraprocessados estão construindo, junto à Frente Parlamentar do Empreendedorismo, minuta de projeto de lei que determina que, para cada produto a ser taxado pelo IS, deve ser formulado um projeto de lei específico. O objetivo do setor é tornar obrigatória a elaboração de estudo individualizado para cada alimento, com a indicação das metas de redução do seu consumo, de modo que a incidência do IS não se dê indistintamente sobre todos os alimentos ultraprocessados a partir de uma mesma lei.

Quanto à prevalência do interesse público em tributar produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, destacam-se como instrumentos de promoção dos interesses dos segmentos sociais e de participação nas decisões políticas: a iniciativa popular de proposições legislativas e o lobby político. O primeiro instrumento é garantido pelo parágrafo 2º do artigo 61 da Constituição Federal e o segundo, embora ainda não seja regulamentado no Brasil, pode se constituir em ferramenta democrática de representação de interesses, levando contribuições da opinião pública para os tomadores de decisões no Congresso Nacional.


– O IS terá uma alíquota única para todos os produtos considerados nocivos ao meio ambiente e/ou à saúde ou as alíquotas poderão variar conforme o produto e o seu grau de nocividade? 

Anna Flávia Moreira: Na redação dada pela Reforma Tributária, o novo texto constitucional estabelece que serão definidos, em lei complementar, os bens e serviços considerados danosos à saúde e ao meio ambiente e cuja produção, comercialização ou importação deverá ser onerada pelo IS. Por sua vez, as alíquotas do IS serão definidas em lei ordinária, “podendo ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem” – ou seja, poderão ser fixadas por unidade de produto (ad rem) ou de forma proporcional ao valor do bem ou serviço tributado (ad valorem).

As alíquotas específicas (ad rem) são fixadas em termos de uma quantia determinada por unidade de medida, com um valor em dinheiro por quilo, litro ou metro cúbico.

Por outro lado, as alíquotas ad valorem correspondem a uma forma de tributação em que a exação varia de acordo com o valor da operação, sendo sobre este último aplicado um determinado percentual.

Embora não haja previsão expressa no texto constitucional acerca da aplicabilidade do princípio da essencialidade na definição das alíquotas do IS, como ocorre em relação aos atuais Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e Comunicação (ICMS) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), as alíquotas poderão variar conforme o produto e o seu grau de nocividade. Isso porque o objetivo da cobrança do IS é influenciar as práticas de consumo dos indivíduos, induzindo-os a reduzir ou deixar de consumir os bens e os serviços definidos pela legislação complementar como nocivos.


– Também recentemente, um manifesto de cientistas e médicos pediu que os alimentos ultraprocessados fiquem sujeitos ao IS. Em sua visão, e do ponto de vista jurídico, há embasamento para que esse tipo de alimento fique sujeito à incidência do Imposto Seletivo? 

Anna Flávia Moreira: Na redação dada pela Reforma Tributária, o texto constitucional confere à União Federal competência para instituir o IS para reduzir o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Ainda que denominado de seletivo, o imposto não tem sua incidência delineada em função da essencialidade do bem ou serviço, como ocorre em relação aos atuais ICMS e IPI.

Nesse contexto, há embasamento jurídico para a cobrança de IS sobre a produção, comercialização ou importação de alimentos ultraprocessados, pois o IS é um tributo eminentemente discriminatório e se destina a desestimular atos de consumo no contexto de políticas públicas relacionadas à saúde ou ao meio ambiente; a imprescindibilidade do bem ou serviço prejudicial à saúde ou ao meio ambiente é irrelevante para a sua cobrança; e há consenso na comunidade médica e científica quanto à nocividade dos alimentos ultraprocessados para a saúde da população.

Contudo, o § 9º do artigo 9º da EC 132/23 estabelece que o IS não incidirá, dentre outros, sobre “alimentos destinados ao consumo humano” listados na lei complementar que definirá as operações beneficiadas com redução de 60% das alíquotas do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Dessa forma, caso sejam incluídos na lista de “alimentos destinados ao consumo humano” dessa lei complementar, os alimentos ultraprocessados serão beneficiados com alíquotas reduzidas e não poderão ser objeto de tributação seletiva.


– Recentemente, o Ministério do Desenvolvimento e da Assistência Social definiu os produtos da cesta básica, que terão isenção de tributos federais conforme a Reforma Tributária. Essa lista poderá ser aproveitada pela regulamentação da Reforma Tributária? 

Anna Flávia Moreira: A composição da cesta básica de alimentos, no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento Alimentar, foi definida pelo Governo Federal por meio do Decreto nº 11.936/2024. A fim de regulamentar esse decreto, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social publicou a Portaria MDS nº 966, a qual definiu dez grupos alimentares que compõem a cesta básica de alimentos: feijões (leguminosas); cereais; raízes e tubérculos; legumes e verduras; frutas; castanhas e nozes (oleaginosas); carnes e ovos; leites e queijos; açúcares, sal, óleos e gorduras; e o grupo de café, chá, mate e especiarias.

Essa lista elaborada no âmbito do Executivo Federal poderá servir de parâmetro, mas não é vinculante para os membros do Legislativo Federal, os quais deverão aprovar lei complementar definidora dos produtos que comporão a Cesta Básica Nacional de Alimentos. Com efeito, a lista a ser aprovada em sede de lei complementar pelo Legislativo Federal definirá os produtos sobre os quais serão reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS; ao passo que a lista já elaborada pelo Executivo Federal tem o fim específico de orientar políticas públicas relacionadas à alimentação.


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