Programa polêmico ganha mais um litígio

Extinção de benefícios do Perse deve gerar intensos debates na Justiça

0

O benefício era para durar por cinco anos, mas não irá completar nem três anos – ao menos se o governo federal for bem-sucedido na tentativa de eliminá-lo. Por meio da Medida Provisória 1.202/23, foi extinta a isenção de quatro tributos federais para as empresas do setor de eventos, afetadas pela pandemia e beneficiadas pelo Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). A questão é mais uma das polêmicas envolvendo o Perse e tem tudo para novamente desaguar na Justiça.

“Trata-se de mais uma “cartada” do Poder Executivo para aumentar a arrecadação a qualquer custo, violando direitos e munindo os contribuintes de diversos argumentos que certamente serão levados ao Judiciário”, avaliam Sávio Hubaide e Nathan Amaral, associados do Freitas Ferraz Advogados. Alguns desses argumentos são que o Código Tributário Nacional (CTN) dispõe que não podem ser revogadas as isenções concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições – justamente o caso do Perse, que previa isenções por 60 meses e a condicionava à regularidade das empresas perante o Cadastur (um cadastro de prestadores de serviços turísticos).

O programa, estabelecido pela Lei 14.148/21, isenta as empresas do pagamento do IRPF, CSLL, Pis e Cofins. À época, era uma forma de compensar o setor de eventos, duramente afetado pela pandemia da covid-19, de preservar empregos e evitar o fechamento das empresas. Mas, agora, a preocupação do governo tem sido com a elevação da arrecadação para cumprir a meta de déficit zero. Publicada no fim de dezembro de 2023, a MP 1.202/23 reintroduz o pagamento da CSLL, Pis e Cofins a partir de 1º de janeiro deste ano, e do IRPJ a partir de 1º de janeiro de 2025. É a mesma MP que impôs um teto às compensações tributárias e que reonerou a folha de pagamentos de setores da economia.

“Entendemos que a questão em tela irá gerar um intenso debate na esfera judicial em relação à ilegalidade decorrente da revogação, por meio de Medida Provisória, da isenção concedida pelo Perse. Isso porque, como exposto, a MP 1.202/23 prejudicou diretamente o planejamento financeiro das empresas da área de eventos, ao extinguir abruptamente os benefícios fiscais concedidos a esse setor, violando frontalmente a segurança jurídica e a legítima confiança dos contribuintes – princípios caros ao nosso ordenamento jurídico”, afirmam Bianca Mareque, Raphael Castro e Miguel Guerrero, sócia e associados do Vieira Rezende Advogados. Eles lembram que a MP 1.202/23 tem força legal, mas ainda não foi convertida definitivamente em lei, o que representa uma fragilidade.

“Esse cenário de incertezas torna relevante que as empresas beneficiadas pelo Perse busquem no Poder Judiciário a concessão de tutela que impeça, em especial, a imediata cobrança da CSLL, Pis e Cofins, cujas alíquotas foram reestabelecidas a partir de 1º de janeiro de 2024”, recomendam. 

Perse acumula histórico de litígios

Após publicada a Lei 14.148/21, que criou o Perse, o governo começou a colocar restrições para que as empresas pudessem usufruir da isenção dos tributos – e as empresas começaram a acessar o Judiciário. A lei não estabelecia a necessidade de as empresas estarem em regularidade perante o Cadastur para usufruir o benefício. “Nesse contexto, os primeiros litígios versavam sobre a criação da exigência do Cadastur por ato infralegal, a Portaria ME nº 7.163/21, e sobre se o Programa abrangeria todo o resultado auferido, ou somente aquele diretamente relacionado às atividades do setor de eventos”, explicam Hubaide e Amaral.

Eles lembram que as distorções foram posteriormente corrigidas pela MP 1.147/22, convertida na Lei 14.592/23, que alterou a Lei do Perse tanto para prever a condição de regularidade perante o Cadastur, quanto para limitar o benefício aos resultados e às receitas obtidos diretamente das atividades do setor de eventos.

No entanto, agora o governo volta a surpreender as empresas por meio da retirada dos benefícios. Na entrevista abaixo, os advogados do Vieira Rezende e do Freitas Ferraz comentam a MP 1.202/23 e explicam por que a questão tem potencial para ser judicializada.


– Quais eram as condições originais do Perse e quais desonerações o governo pretende retirar, por meio da Medida Provisória 1.202/23? De que forma a reoneração deve ocorrer? 

Bianca Mareque, Raphael Castro e Miguel Guerrero: Instituído a partir da Lei 14.148/21 (publicada ainda durante a vigência das medidas de isolamento necessárias para o enfrentamento da pandemia da Covid-19), o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) tinha como objetivo dar fôlego orçamentário ao setor de eventos, por meio da adoção de medidas que pudessem mitigar as perdas financeiras sofridas por esse importante setor da econômica brasileira, gravemente prejudicado com os efeitos da pandemia da covid-19.

Destaca-se que o principal benefício decorrente do Perse era a previsão de que seriam zeradas as alíquotas do Imposto de Renda, CSLL, Pis e Cofins devidos pelas empresas do setor de eventos pelo prazo fixo de 60 meses.

No entanto, por meio da edição da Medida Provisória 1.202/23 (MP 1.202/23), o governo federal reestabeleceu a cobrança gradual desses tributos, ao prever a revogação, a partir de 1º de janeiro de 2024, dos benefícios previstos em relação à CSLL, Pis e Cofins; e, a partir de 1º de janeiro de 2025, dos benefícios concedidos relacionados ao IRPJ. 

Sávio Hubaide e Nathan Amaral: O Perse consiste num programa instituído com o objetivo de mitigar as perdas sofridas pelo setor de eventos durante a pandemia. Inicialmente, o Perse reduzia a zero as alíquotas de IRPJ, CSLL, Pis e Cofins, pelo prazo de 60 meses, para as empresas do setor de eventos que cumprissem os requisitos legais. O programa ainda permite a criação de modalidades específicas de transação tributária para essas empresas.

Todavia, o incentivo tributário do Perse foi revogado pela Medida Provisória 1.202/23 (MP 1.202/23), editada com o objetivo declarado de preservar a meta de déficit fiscal “zero” no orçamento/exercício de 2024. Isto é, caso a MP se mantenha vigente, as empresas beneficiadas pelo Perse deverão retomar o recolhimento de CSLL, Pis e Cofins a partir de 1º de abril de 2024, em atenção à anterioridade nonagesimal, e de IRPJ a partir de 1º de janeiro de 2025.

Outras medidas instituídas pela MP foram: a reoneração parcial da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos, com a revogação do regime conhecido como CPRB, em que a contribuição era recolhida com base na receita bruta para empresas dos setores que mais empregam funcionários, e a limitação da compensação de créditos tributários decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado.


– Qual deve ser o impacto da medida sobre as empresas beneficiadas pelo Perse? 

Bianca Mareque, Raphael Castro e Miguel Guerrero: As empresas do setor de eventos tinham a legítima expectativa de que não teriam que recolher Imposto de Renda, CSLL, Pis e Cofins pelo prazo de cinco anos, eis que as referidas exações estariam com a alíquota zerada durante esse período. No entanto, com a edição da MP 1.202/23, essas empresas foram surpreendidas com a drástica modificação da sistemática dos benefícios originalmente concedidos pelo Perse, cujo efeito é que, bem antes do que se previa, será reestabelecida a exigência dos tributos.

Sobre isso, cabe pontuar que a data de edição da referida Medida Provisória, publicada em 28 de dezembro de 2023, prejudica o planejamento das empresas desse setor, que – cabe novamente frisar – tinham a legítima expectativa de que as benesses previstas na Lei 14.148/21 vigorariam pelo período de 60 meses.

Nesse sentido, constata-se que a MP 1.202/23, infelizmente, se apresenta como um exemplo do grave cenário de incerteza e insegurança jurídica ao qual as empresas estão submetidas no Brasil.

Sávio Hubaide e Nathan Amaral: Caso a MP seja mantida e convertida em lei, haverá um substancial aumento de carga tributária para as empresas beneficiadas pelo Perse. Na exposição de motivos da MP 1.202/23, foi mencionado um levantamento feito pela Receita Federal de que a receita desonerada pelo Perse em 2022 teria alcançado R$ 255 bilhões. Em 2023, o texto aponta o valor desonerado de R$ 115 bilhões no período de janeiro a agosto de 2023, com impacto na arrecadação tributária mensurado entre R$ 17 e 32 bilhões.

Ainda que não seja possível prever o impacto sobre as empresas beneficiadas pelo Perse, certamente os valores serão expressivos.


– A questão poderá ser judicializada, considerando que os benefícios foram concedidos por prazo certo e com condições preestabelecidas?

Bianca Mareque, Raphael Castro e Miguel Guerrero: Entendemos que a questão em tela irá gerar um intenso debate na esfera judicial em relação à ilegalidade decorrente da revogação, por meio de Medida Provisória, da isenção concedida pelo Perse. Isso porque, como exposto, a MP 1.202/23 prejudicou diretamente o planejamento financeiro das empresas da área de eventos, ao extinguir abruptamente os benefícios fiscais concedidos a esse setor, violando frontalmente a segurança jurídica e a legítima confiança dos contribuintes – princípios caros ao nosso ordenamento jurídico.

Somado a isso, destaca-se que, muito embora a MP 1.202/23 tenha força legal, ainda não foi convertida definitivamente em lei, o que representa uma fragilidade.

Esse cenário de incertezas torna relevante que as empresas beneficiadas pelo Perse busquem no Poder Judiciário a concessão de tutela que impeça, em especial, a imediata cobrança da CSLL, Pis e Cofins, cujas alíquotas foram reestabelecidas a partir de 1º de janeiro de 2024.

De todo modo, importante se atentar à formação da jurisprudência sobre o assunto, que, eventualmente, poderá ser guiada por um entendimento fiscalista do tema. 

Sávio Hubaide e Nathan Amaral: Sim, pois o artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN) dispõe que não podem ser revogadas as isenções concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições. E é justamente esse o caso do Perse, que foi concedido pelo prazo determinado de 60 meses, sendo que a própria lei condiciona a fruição do benefício à regularidade das empresas perante o Cadastur em 18/03/2022 (artigo 4º, §5º, da Lei nº 14.148/21.

A controvérsia provavelmente residirá na definição do benefício como isenção ou alíquota zero, na existência ou não de contrapartidas ao contribuinte, e na classificação dessa exigência do Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur) como requisito ou condição, muito embora a redação legal utilize o termo “condicionada”. Apesar da ligeira diferença técnica entre isenção e alíquota zero, o resultado prático no caso é o mesmo, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já aplicou a previsão do artigo 178 do CTN inclusive para hipóteses de alíquota zero.

Não bastasse, há diversos outros fundamentos para questionar a revogação do programa, tais como: a inexistência de urgência, a afronta à separação de poderes (pois o Congresso já derrubou veto presidencial que afastava a redução das alíquotas), a exigência constitucional de que medidas provisórias só podem majorar tributos se convertidas em lei no ano de sua publicação, o que não ocorreu, a violação à segurança jurídica e à proteção da confiança, pela perda de previsibilidade daquelas empresas que se programaram em função do benefício, entre outros.

Vale destacar que algumas dessas questões já foram submetidas ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.587, ainda não apreciada.


– Como você avalia o Perse e as sucessivas limitações que o governo foi impondo para que as empresas pudessem usufruir dos benefícios inicialmente previstos? 

Bianca Mareque, Raphael Castro e Miguel Guerrero: Entendemos que o Perse foi instituído em razão de um momento bastante específico da histórica recente do Brasil, em que toda a sociedade estava empenhada em adotar as medidas necessárias para superar os graves efeitos da pandemia da covid-19, que atingiu inúmeros setores da economia, dentre os quais, certamente, um dos mais afetados foi o de eventos, que, em quase a sua totalidade, foi paralisado durante a vigência das restrições de circulação e aglomeração.

Assim, o governo federal somou força aos esforços necessários para impulsionar a nossa economia, tendo no Perse uma imprescindível ferramenta de desoneração do setor de eventos, que tornou possível mitigar as perdas decorrentes da decretação de estado de calamidade pública em razão da pandemia. Além disso, a expectativa de economia decorrente dessa desoneração pelo período de cinco anos ainda viabilizou que se pudesse planejar investimentos a longo prazo.

No entanto, passados quase três anos, se constata que o cenário que motivou a edição da Lei 14.148/21 se transformou em uma lembrança, que se contrapõe ao novo desafio enfrentado pelo governo federal, de reequilibrar as contas públicas em busca do ambicionado déficit zero.

Como resultado dessa nova realidade, o governo federal vem impondo sucessivas restrições à fruição dos benefícios do Perse, vez que, em detrimento da inicial intenção de reanimar um setor da econômica gravemente afetado pela pandemia, atualmente vigora a preocupação com o incremento da arrecadação, o que culminou com a edição da MP 1.202/23, com vistas a antecipar o reestabelecimento da cobrança do Imposto de Renda, CSLL, Pis e Cofins devidos pelas empresas do setor de eventos.

Sávio Hubaide e Nathan Amaral: Desde a sua instituição, o Perse tem sido fonte de litígios. Inicialmente, a Lei 14.148/21 nada dispôs sobre a regularidade perante o Cadastur, nem sobre quais receitas estariam abrangidas pelo benefício. Nesse contexto, os primeiros litígios versavam sobre a criação da exigência do Cadastur por ato infralegal, a Portaria ME nº 7.163/21, e sobre se o Programa abrangeria todo o resultado auferido, ou somente aquele diretamente relacionado às atividades do setor de eventos.

Essas distorções foram posteriormente corrigidas pela MP 1.147/22, convertida na Lei 14.592/23, que alterou a Lei do Perse tanto para prever a condição de regularidade perante o Cadastur, quanto para limitar o benefício aos resultados e às receitas obtidos diretamente das atividades do setor de eventos. Ainda, os CNAEs beneficiados foram diretamente inseridos na Lei do Perse, retirando a delegação até então conferida a ato do Ministério da Economia.

Embora a exigência do Cadastur seja questionável, a delimitação do benefício às receitas vinculadas ao setor de eventos é medida condizente com a finalidade do programa.

De toda forma, quando parecia ter se esgotado a fonte de litígios, veio a MP 1.202/23 para revogar o benefício, que, como dito acima, foi concedido por prazo determinado e sob determinadas condições. Trata-se de mais uma “cartada” do Poder Executivo para aumentar a arrecadação a qualquer custo, violando direitos e munindo os contribuintes de diversos argumentos que certamente serão levados ao Judiciário.


Leia também

Receita reforça restrição ao Perse

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.