Amortização do ágio interno ganha força no Judiciário

Decisões do STJ e do TRF-3 dão razão ao contribuinte; enquanto isso, no Carf, governo ganha casos bilionários

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Dada a sua relevância econômica e os valores bilionários que costuma envolver, a amortização fiscal do ágio interno é um tema que gera constantes embates entre o Fisco e os contribuintes. Em recente decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), o contribuinte saiu vitorioso. A corte entendeu que a amortização do ágio interno não era proibida antes de 2014 e que tampouco era vedada a criação de uma empresa veículo para facilitar essa amortização. Esta decisão, aliada ao julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) realizado no ano passado, pode sinalizar uma mudança favorável para os contribuintes na Justiça.

“Embora não haja entendimento vinculante sobre o tema, tampouco qualquer Instrução Normativa emitida pela Receita Federal regulamentando o tema (em 25 anos de contencioso tributário), o precedente do STJ, tanto quanto a recente decisão proferida pelo TRF-3, tendem a representar uma mudança no âmbito do Judiciário sobre o assunto, podendo influenciar, também, as futuras decisões administrativas”, avaliam Rafael Amorim e Priscila Generoso, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados.

No caso julgado pelo TRF-3, a reestruturação societária em questão foi a aquisição gradual do controle da CTEEP entre 2006 e 2007 e, posteriormente, a incorporação da ISA pela CTEEP em 2008 por meio de uma subsidiária (ISA Participações). Como  a transação não poderia ser feita de forma direta devido a normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), optou-se para a incorporação por meio da subsidiária (a empresa veículo).

O TRF-3 entendeu não ser procedente a autuação fiscal que considerou indevida a amortização fiscal do ágio. Isso porque não havia vedação ao ágio interno antes da Lei 12.973/14 e também porque a utilização da empresa veículo no caso era viável, ainda mais por conta das restrições impostas pelos reguladores. “Historicamente, as decisões do TRF-3 foram majoritariamente contrárias ao contribuinte. Trata-se da primeira decisão do TRF-3 favorável ao contribuinte sobre o tema após a decisão do STJ em setembro de 2023”, ressaltam Amorim e Generoso.

Pedro Simão e Marina Guimarães, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados, afirmam que o precedente do TRF-3 se destaca pela fundamentação na legislação vigente durante a operação e ao alinhar-se à posição da 1ª Turma do STJ. “Embora não haja um entendimento vinculante definitivo e as análises sempre avaliem os casos concretos, a jurisprudência caminha para se adequar ao posicionamento do STJ, com base na legalidade e se amparando em outras decisões favoráveis aos contribuintes identificadas em tribunais como TRF-4.” 

Como funciona a amortização fiscal do ágio interno

O ágio é o valor que o comprador de uma empresa paga a mais por conta da expectativa de que o negócio aumente a sua rentabilidade futura. Ele é a diferença entre o valor de aquisição e o patrimônio líquido da empresa comprada. Quando essa compra ocorre entre empresas do mesmo grupo, tem-se o ágio interno. Como o ágio pago pode ser deduzido da base de cálculo do imposto de renda (IR) e da contribuição social sobre lucro líquido (CSLL) – a chamada amortização – ele reduz o imposto que as empresas pagam. Por isso, a Receita Federal olha essas operações com muita atenção, tentando identificar transações legítimas daquelas sem objeto negocial e que visam apenas a economia tributária. Em 2014 ficou proibido haver amortização fiscal do ágio interno, de acordo com a Lei 12.973/14.

Só que alguns contribuintes passaram a ser multados por eventos ocorridos antes de 2014. Desde este ano, diversos contribuintes foram autuados pela utilização do ágio em períodos anteriores, com a cobrança de valores relevantes: “Nesse sentido também, as autoridades fiscais argumentam que seu posicionamento busca a conformidade das operações com a legislação para evitar a manipulação de resultados e a redução indevida da carga tributária. Entretanto, é possível verificar que têm sido autuadas operações que envolvam “empresas veículo” ou partes relacionadas, mesmo que não haja provas de fraude, dolo ou simulação por parte dos contribuintes”, afirmam Simão e Guimarães, do Freitas Ferraz. 

A decisão do STJ sobre o ágio interno (REsp 2026473-SC)

Em setembro de 2013, o STJ julgou um caso referente à amortização fiscal do ágio interno antes da vigência da Lei 12.973/14 (REsp 2026473-SC). No caso, os controladores da Cremer criaram uma empresa veículo (Cremerpar) para efetuar uma reorganização societária. A Cremerpar conduziu uma Oferta Pública de Ações (OPA) e, posteriormente, foi incorporada pela Cremer – houve ágio na operação. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) ratificou a reestruturação e autorizou a dedução do ágio amortizado da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. A Fazenda alegou que a reorganização resultou na criação de despesas com o intuito de evitar indevidamente a tributação e recorreu. O STJ, por sua, vez, deu razão ao contribuinte.

Enquanto no Judiciário parece haver uma tendência favorável ao contribuinte, no âmbito administrativo a situação parece ainda não ter mudado, apesar da decisão do STJ. Recentemente, a Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) deu vitórias ao governo em dois processos de ágio interno que somavam mais de 5 bilhões de reais, referentes à aquisição da Vivo Participações pela Telefônica Brasil; e em cisão de empresas da Unilever Brasil.

Na entrevista abaixo, os advogados do Vieira Rezende e do Freitas Ferraz explicam por que a questão é relevante e intrincada e abordam como o Judiciário vem encarando o tema.


– Qual é o contexto envolvendo as autuações referentes à amortização indevida de ágio? Por que essa questão é polêmica e leva a disputas entre contribuintes e o Fisco?

Rafael Amorim e Priscila Generoso: A formação e o aproveitamento do ágio são eventos relevantes no contexto das reorganizações societárias.

Como regra, o ágio seria uma despesa dedutível e o seu aproveitamento implicaria na redução da base de cálculo do Imposto sobre a Renda (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Contudo, desde a edição da Lei nº 9.532/97, que dispôs sobre o aproveitamento do ágio em caso de incorporação, fusão ou cisão de empresas, o tema ganhou papel de destaque no contencioso sobre a matéria. Posteriormente, as discussões se intensificaram com a edição da Lei nº 12.973/14, em que o ágio interno (partes relacionadas) passou a ser vedado.

Desse modo, o litígio instaurado gerou disseminada controvérsia envolvendo o período anterior à Lei nº 12.973/14, partes relacionadas e diversas teses geradas pelas autoridades fiscais para glosar o aproveitamento do ágio pelos contribuintes, como nas operações envolvendo “empresas veículo”, propósito negocial e discussões relacionadas aos laudos de avaliação dos ativos.

O efeito econômico das discussões é de grande interesse social, seja pelos montantes envolvidos ou pela relevância das operações. A título de exemplo, são pelo menos 800 processos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Segundo a agenda do Carf, foram pautados para o dia 5 de março de 2024, os julgamentos de dois processos de ágio que somam mais de R$ 5 bilhões em casos envolvendo ágio interno na aquisição da Vivo Participações pela Telefônica Brasil; e em cisão de empresas da Unilever Brasil.

Pedro Simão e Marina Guimarães: O ágio pode ser definido como o sobrepreço pago na aquisição de sociedades, quando considerado o valor da aquisição e o valor dos ativos. Esse montante pode ser basear na rentabilidade futura da sociedade, e ao mesmo tempo pode representar grande economia tributária. Inicialmente, de acordo com a Lei nº 9.532/97 seria permitido o registro do ágio como uma despesa no balanço, e seu valor seria amortizado para a redução da base de cálculo do Imposto de Renda (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Apesar disso, após a vigência da Lei nº 12.973/14, a amortização do ágio interno passou a ser proibida.

A partir desse panorama legal, diversos contribuintes ficaram sujeitos a autuações fiscais relacionadas à utilização do ágio em períodos anteriores, com a cobrança de valores relevantes. Nesse sentido também, as autoridades fiscais argumentam que seu posicionamento busca a conformidade das operações com a legislação para evitar a manipulação de resultados e a redução indevida da carga tributária. Entretanto, é possível verificar que tem sido autuadas operações que envolvam “empresas veículo” ou partes relacionadas, mesmo que não haja provas de fraude, dolo ou simulação por parte dos contribuintes.


– Como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado com relação aos casos de amortização fiscal do ágio? 

Rafael Amorim e Priscila Generoso: No ano passado, em setembro de 2023, o STJ apreciou, de forma inédita, importante caso envolvendo a exigência do IRPJ e da CSLL em discussão de ágio apurado em período anterior à Lei nº 12.973/14.

Sinteticamente, o STJ negou provimento ao recurso especial interposto pela Fazenda Nacional no Caso Cremer (REsp 2026473-SC) e manteve a sentença que julgou procedente a Ação Anulatória proposta pelo contribuinte, afastando, resumidamente, as acusações relativas ao aproveitamento do ágio interno (partes relacionadas) antes da Lei 12.973/14; e vedação à utilização de empresa veículo no caso em que as “reais adquirentes” seriam empresas estrangeiras e, portanto, a constituição de holding no Brasil seria uma empresa veículo sem propósito negocial.

De acordo com a decisão, “quando desejou excluir, de plano, o ágio interno, o legislador o fez expressamente (com a inclusão do art. 22 da Lei n. 12.973/2014), a evidenciar que, anteriormente, não havia vedação a ele”.

Concluiu também que inexiste fundamento legal para a tese do real adquirente, além de acrescentar que “(…) quando a investidora é empresa estrangeira, é ainda mais justificável a constituição de uma “empresa-veículo” (…), e ressaltou que a constituição de sociedade-veículo não pode, por si só, configurar impedimento para a dedução do ágio.

Ainda, a decisão do STJ repisou o fato de não ter havido conduta dolosa, fraude ou simulação, já que o próprio Fisco não identificou nenhuma ilicitude nas operações.

Por fim, a nosso ver, a decisão do STJ representa um importante precedente sobre a discussão da amortização do ágio e, embora não pacificado, pode gerar um cenário mais favorável ao contribuinte, de modo que, após a decisão do STJ, outras decisões foram julgadas procedentes, como o recente caso da ISA CTEEP cuja decisão foi proferida pelo TRF-3.

Pedro Simão e Marina Guimarães: A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão, em setembro de 2023, ao analisar o recurso especial interposto pela Fazenda no âmbito do Caso Cremer (REsp 2026473-SC). De forma sintética, foi desprovido o recurso especial apresentado pela Fazenda, que buscava tributar a operação de aquisição da Cremer pelo grupo internacional Merril Lynch. A operação questionada referia-se à criação da empresa veículo Cremerpar pelos controladores da Cremer, com objetivo de possibilitar a reorganização societária. A Merril Lynch investiu na Cremerpar, que conduziu uma Oferta Pública de Ações (OPA) e, posteriormente, foi incorporada pela Cremer. O ágio, nesse caso, resultou da diferença entre o valor de avaliação do patrimônio líquido da Cremer, inicialmente negativo, e os montantes desembolsados pela adquirente, tendo em vista que o valor da aquisição superou o valor do investimento.

Em análise ao caso na instância anterior, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) ratificou a reestruturação e autorizou a dedução do ágio amortizado da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. A Fazenda, recorreu, alegando que a reorganização resultou na criação de despesas com o intuito de evitar indevidamente a tributação. No âmbito do STJ, o relator ministro Gurgel de Faria destacou que a resolução do caso envolve a interpretação dos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97 os quais estabelecem exceções à regra de indedutibilidade do ágio. De acordo com a lei, a dedução fiscal do ágio é permitida quando ocorre a absorção patrimonial de uma pessoa jurídica na qual se detém participação societária.

Por um lado, a Fazenda argumentou que a norma criou uma oportunidade de aproveitamento do ágio fictício, sustentando que a sua fruição deveria depender da demonstração do propósito negocial no caso concreto. No entanto, o ministro Gurgel afirmou que isso, por si só, não é suficiente para impedir a dedutibilidade do ágio nas situações em que derivar da relação entre partes dependentes ou quando o negócio é conduzido por meio de uma empresa-veículo. Afinal, não existiria uma proibição legal para a criação de sociedades-veículo e caberia ao Fisco comprovar, em cada caso, a artificialidade das operações.

O relator destacou que não há uma proibição legal para a criação de uma sociedade empresarial como “veículo para facilitar a realização de um negócio jurídico. Além disso, salientou que é possível que as pessoas jurídicas originais tenham motivos reais (“propósito negocial”) para manter sua segregação por razões estratégicas, econômicas ou operacionais. Sendo assim, de acordo com o STJ, não caberia cabe ao Fisco obstruir a possibilidade de dedução do ágio, mesmo quando este decorre da relação entre partes dependentes (ágio interno) ou é concretizado por meio de uma empresa veículo.


– Em recente caso julgado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, foi afastada a multa aplicada a um contribuinte que havia sido autuado por amortização indevida de ágio. Qual foi esse caso e por que o resultado foi favorável ao contribuinte?

Rafael Amorim e Priscila Generoso: O caso recentemente julgado pelo TRF-3 envolvia controvérsia referente a amortização do ágio decorrente da aquisição gradual do controle da CTEEP entre 2006 e 2007 e, posteriormente, a incorporação da ISA pela CTEEP em 2008 por meio de uma subsidiária (ISA Participações), a fim de atender às normas regulatórias impostas Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que impossibilitariam a transação de ocorrer de forma direta.

No caso, assim como julgado no recente precedente do STJ, o tribunal regional reconheceu que não havia vedação ao ágio interno em relação ao período anterior a Lei nº 12.973/14, além de referenciar que “é plenamente viável a utilização de empresa veículo na reorganização societária, sobretudo no caso, em que restou comprovada a impossibilidade, por restrição da Aneel e CVM, na incorporação direta da ISA Capital pela CTEEP. Ademais, inexistem indícios de ocorrência de fraude à lei ou simulação na reestruturação em análise“.

A nosso ver, o caso foi julgado favorável ao contribuinte pois reflete o entendimento do STJ ao se basear na legislação vigente à época da operação e rejeitar acusações das autoridades fiscais sem fundamentos previstos da legislação.

Historicamente, as decisões do TRF-3 foram majoritariamente contrárias ao contribuinte. Trata-se da primeira decisão do TRF-3 favorável ao contribuinte sobre o tema após a decisão do STJ em setembro de 2023.

Pedro Simão e Marina Guimarães: Em dezembro passado, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) emitiu decisão extremamente relevante no âmbito da controvérsia da amortização fiscal do ágio. A Corte reconheceu a inexistência de proibição legal, anterior à promulgação da Lei 12.973/14, para a amortização de ágio formado entre partes relacionadas, bem como para a utilização de empresa veículo com o propósito de facilitar essa amortização. Isso resultou na rejeição da autuação debatida no contexto da Ação Anulatória n° 5024068-10.2018.4.03.6100.

A disputa envolvendo a contribuinte ISA CTEEP está relacionada à aquisição gradual do controle acionário da CTEEP entre 2006 e 2007, o que resultou em ágio contábil. Posteriormente, devido a restrições normativas da CVM e Aneel, a ISA foi incorporada pela CTEEP por meio de uma subsidiária, chamada ISA Participações. Essa subsidiária, criada para cumprir as normas regulatórias, adquiriu ações da CTEEP por aumento de capital, registrando o ágio nas contas de investimento. Em 2008, a ISA acabou incorporada pela CTEEP. Apesar dos procedimentos adotados, e tendo seguido todos os requisitos legais e regulatórios, a empresa enfrentou autuação fiscal por amortização indevida de ágio e uso de intermediária na incorporação.


– O caso recentemente julgado sinaliza que os entendimentos dos tribunais podem se tornar mais favoráveis aos contribuintes?

Rafael Amorim e Priscila Generoso: Embora não haja entendimento vinculante sobre o tema, tampouco qualquer Instrução Normativa emitida pela Receita Federal regulamentando o tema (em 25 anos de contencioso tributário), o precedente do STJ, tanto quanto a recente decisão proferida pelo TRF-3, tendem a representar uma mudança no âmbito do Judiciário sobre o assunto, podendo influenciar, também, as futuras decisões administrativas.

Ainda, a nosso ver, os casos envolvendo o aproveitamento do ágio estão bastante ligados às situações fáticas de cada operação, mas ficou evidenciado que as recentes decisões buscaram confirmar a validade das operações e seus efeitos jurídicos, pautando-se na legalidade e na segurança jurídica.

Pedro Simão e Marina Guimarães: O precedente do TRF-3 se destaca pela fundamentação na legislação vigente durante a operação e ao alinhar-se à posição da 1ª Turma do STJ. Embora não haja um entendimento vinculante definitivo e as análises sempre avaliem os casos concretos, a jurisprudência caminha para se adequar ao posicionamento do STJ, com base na legalidade e se amparando em outras decisões favoráveis aos contribuintes identificadas em tribunais como TRF-4.


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