Compensação tributária entra na pauta do STF

Tribunal prevê julgamento sobre aplicação da multa isolada por parte da Receita Federal

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No primeiro semestre deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá decidir sobre a constitucionalidade da multa isolada, aplicada pela Receita Federal quando não há aprovação (homologação) de compensação tributária. A questão é relevante porque esse tipo de multa acaba inibindo muitos contribuintes de exercerem seu direito. 

A compensação tributária é uma espécie de conciliação de contas: quando o contribuinte paga um imposto a mais, pode entrar com um pedido de reconhecimento desses créditos, e caso a Receita considere que há valores a receber, eles podem ser usados para quitar outros tributos. Ocorre que, nas situações em que a Receita não homologa a compensação tributária, o contribuinte deve pagar uma multa de 50% sobre os valores considerados indevidos pelo Fisco.

Sávio Hubaide, advogado associado do Freiras Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, explica que as multas se destinam a coibir atos ilícitos. A compensação, entretanto, é um direito e, portanto, não faria sentido o Fisco concluir automaticamente que o contribuinte incorreu num ilícito ao pedir a compensação, mesmo que discorde dos valores ou da tese jurídica apresentada. Por isso, na visão de Hubaide, essa multa consiste numa espécie de sanção política, que visa inibir o exercício do direito de compensação.

Daí a importância do julgamento do STF — o tema está previsto para ser apreciado no dia 1º de junho. Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados, considera que, se a multa for tida como inconstitucional, os contribuintes terão a garantia do exercício dos seus direitos fundamentais, como o direito de petição, ao contraditório e à ampla defesa. “Multas jamais deveriam ser exigidas com fins arrecadatórios. A previsão de despesas orçamentárias lastreadas em arrecadação de multas já é um forte indício de grave desvio de finalidade: multas servem para punir, não para amealhar recursos para a burra estatal”, afirma Coimbra.

Na entrevista abaixo, Hubaide e Coimbra detalham os problemas envolvendo a multa isolada.


O que a Receita Federal leva em conta na hora de aceitar ou recusar a homologação das compensações tributárias? Há prevalência de critérios objetivos ou subjetivos? 

Sávio Hubaide: Diferentemente das compensações consideradas não declaradas, em que há uma lista objetiva das hipóteses (artigo 74, §12, da Lei 9.430/96), a lei não prevê um rol específico de situações para justificar a decisão de não homologação. Nesse sentido, uma vez transmitida uma declaração de compensação, a Receita Federal possui o prazo de cinco anos para analisar o pedido, que pode vir a ser não homologado em virtude de erros de cálculo ou eventual deficiência na comprovação da origem dos créditos pleiteados, como também em decorrência de outras questões, como ocorre diante de créditos oriundos de teses jurídicas para as quais não há precedentes vinculantes. Com a não homologação da compensação requerida, é proferido um despacho decisório e é lançada a multa de 50%. Ao contribuinte é concedido prazo de trinta dias para quitar os débitos ou para apresentar manifestação de inconformidade, o que o constituirá em mora e instaurará o processo administrativo, durante o qual a exigibilidade dos débitos ficará suspensa. 

Paulo Coimbra: Existem três diferentes modalidades de compensação previstas na legislação: (i) a requerida pelo contribuinte ao Fisco, nos termos do artigo 156, II do Código Tributário Nacional (CTN); (ii) a realizada de ofício pelo Fisco, unilateralmente, de acordo com os critérios do artigo 163 do CTN; e (iii) a realizada pelo próprio contribuinte (autocompensação), dentro da sistemática do lançamento por homologação (autolançamento). Nesta última, a extinção do crédito tributário é condicionada à posterior homologação, expressa ou tácita (esta última se dá pelo decurso do prazo de cinco anos). 

É em relação à terceira modalidade de compensação (ou autocompensação), feita no âmbito dos tributos sujeitos a lançamento por homologação (atualmente, quase a totalidade dos tributos no Brasil), que a Receita Federal deve homologar (expressa ou tacitamente) ou indeferir. 

Dessa forma, verifica-se que o contribuinte tem direito subjetivo à autocompensação como algo inerente ao autolançamento, conforme entendimento antigo e pacífico na jurisprudência Superior Tribunal de Justiça (STJ), no sentido de que a compensação, no âmbito do lançamento por homologação, não necessita de prévio reconhecimento da autoridade fazendária ou de decisão judicial transitada em julgado, para a configuração da certeza e liquidez dos créditos. 

Essa compensação é processada mediante elaboração de Pedido Eletrônico de Restituição (PER) e respectiva Declaração de Compensação (DCOMP), na qual se requer a compensação com o crédito objeto do pedido de restituição. 

Contudo, no caso de indeferimento, a legislação prevê a aplicação da multa de 50% do valor do crédito indeferido (compensação não homologada ou glosada). 

Para a aplicação da multa de 50% sobre compensações não homologadas (ou indeferidas), a fiscalização analisa a origem e consistência do crédito utilizado, devendo, para tanto, utilizar-se de critérios objetivos. 

No entanto, observa-se que, não raro, alguns agentes fiscais, ao indeferirem (não homologarem) a DCOMP (declaração de compensação) têm aplicado multa qualificada de 150%, o que deveria ser restrito a caso em que haja dolo, fraude e falsidade comprovadas.


Um dos temas previstos para ser julgado pelo STF neste semestre se refere à multa de 50% aplicada pela Receita Federal quando ela não homologa compensações tributárias (ADI 4905 e RE 796939). Por que se questiona a cobrança dessa multa? 

Sávio Hubaide: Qualquer multa tributária deve ter como pressuposto a prática de um ato ilícito. Ocorre que, por ser a compensação um direito dos contribuintes, ainda que o Fisco venha discordar dos valores ou da tese jurídica, não se pode concluir de forma automática que o contribuinte incorreu num ilícito capaz de atrair tal sanção. Nesse contexto, a multa isolada no caso da não homologação viola diversos preceitos constitucionais que estão sob análise nos mencionados casos submetidos ao STF. Em primeiro lugar, a multa isolada viola o direito constitucional de petição aos poderes públicos. Embora o direito não seja impedido, a multa cria uma barreira ao seu exercício, de forma a desestimular que o contribuinte o exerça. Ademais, a multa fere o princípio da proporcionalidade, uma vez que há meios alternativos menos lesivos para fiscalizar as compensações transmitidas. Caso o pedido não seja homologado, o débito não compensado pode ser exigido com a incidência dos juros e da multa de mora, o que já é suficiente para penalizar o contribuinte. Ainda, como a multa é automaticamente lançada, mesmo que a discordância fazendária se baseie em questões de direito, a imposição da penalidade viola o direito ao contraditório e à ampla defesa, uma vez que o contribuinte sofre a sanção sem a oportunidade de arguir a viabilidade de sua tese. A penalidade não distingue os contribuintes de boa-fé, presumindo sempre que todos estariam sempre de má-fé ao realizar os mencionados procedimentos. Há que se considerar também que a multa consiste numa espécie de sanção política, que visa inibir o exercício regular do direito de compensação, impondo ao contribuinte o receio de ser penalizado caso seu pedido não seja deferido. Por essas graves violações é que o ministro relator Edson Fachin propôs a tese de inconstitucionalidade da multa, pois a mera negativa da compensação não consiste em ato ilícito passível de tão gravosa penalidade. Espera-se que a tese proposta seja acompanhada pelos demais ministros. 

Paulo Coimbra: A cobrança da multa isolada relativa à compensação tributária não homologada é questionada porque os contribuintes recebem autos de infração inflacionados com duas multas: a de mora (20%) e a isolada, de 50%, simplesmente por terem se aproveitado de créditos tributários não judicializados, objeto de pedido administrativo. Tal fato recorrente na práxis tributária brasileira, especialmente federal, representa o mau hábito da pródiga imposição de multas muitas vezes com propósitos arrecadatórios. 

A lei (artigo 74, §17 da Lei 9.430/96) prevê a aplicação de multa isolada de 50% sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, salvo no caso de falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo. 

Desse modo, ressalvadas as hipóteses de comprovada má-fé do sujeito passivo (que jamais pode ser presumida), não se pode admitir a imposição de penalidade (multa de 50%) em razão do indeferimento de um requerimento do contribuinte. Dessa forma, acabaria por penalizar o exercício do direito de petição que, uma vez garantido pela Constituição, não pode ser considerando como uma conduta ilícita. 

Nessa ordem de ideias, questiona-se a constitucionalidade da multa de 50% pela não homologação (indeferimento) da DCOMP com fundamento nos princípios da proporcionalidade, da boa-fé objetiva, na garantia do inafastável direito de petição (que jamais pode ser equiparado a um ato ilícito pressuposto à aplicação e sanções punitivas) e na proibição do bis in idem, somente poderia ser exigido, se tanto, o valor referente à multa moratória (de 20%), sob pena de se impor uma cobrança desarrazoada e confiscatória, capaz de obstar o acesso do contribuinte ao instituto da compensação. Neste caso, é esperado o afastamento da referida penalidade pelos tribunais superiores, mediante reconhecimento da inconstitucionalidade da multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não consistir em ato ilícito com aptidão para propiciar imputação automática da penalidade pecuniária. 

A aplicação da multa de 50% apresenta razões de multa moratória, e é, portanto, absolutamente desarrazoada, sobretudo porque afasta o direito de o contribuinte peticionar (direito de petição) e pretende, tão somente, inibir o exercício de um direito subjetivo de autocompensação (sanção política). 


Qual é a importância desse julgamento para os contribuintes e para a arrecadação do governo? 

Sávio Hubaide: Para os contribuintes, é de grande importância pelas graves violações constitucionais causadas pela multa isolada. Reconhecida a sua inconstitucionalidade, os contribuintes poderão exercer o direito de compensação sem o indevido receio de penalização, cabendo ao Fisco fiscalizar os pedidos e, no caso de não homologação, exigir a cobrança dos débitos com as penalidades específicas de mora. Para o Fisco, embora seja estimado um impacto financeiro, as multas não servem para satisfazer pretensões arrecadatórias. As multas possuem funções de prevenir a prática do ilícito, punir aqueles que o praticam e educar o contribuinte para que não incorra no mesmo ato novamente. A pretensão punitiva das multas em hipótese alguma se confunde com a pretensão arrecadatória representada pelos tributos, e ainda que a multa seja julgada inconstitucional, o Fisco continuará com seu poder-dever de fiscalizar as compensações transmitidas pelos contribuintes. 

Paulo Coimbra: Caso a multa prevista no artigo 74, §17 da Lei 9.430/96 seja considerada inconstitucional, em conformidade com a repercussão geral já conhecida no RE 796939, os contribuintes terão a garantia do exercício dos seus direitos fundamentais, como o direito de petição (artigo 5º, inciso XXXIV, a, da Constituição, CRFB/88) e o direito ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, LV, da CRFB/88). 

No que se refere à arrecadação do governo, esta seria diminuída, tendo em vista que a multa de 50% dada às empresas resulta em ganhos bilionários à arrecadação governamental. Contudo, multas jamais deveriam ser exigidas com fins arrecadatórios. A previsão de despesas orçamentárias lastreadas em arrecadação de multas já é um forte indício de grave desvio de finalidade: multas servem para punir, não para amealhar recursos para a burra estatal. 

Aos contribuintes, entretanto, o reconhecimento pela inconstitucionalidade da multa isolada será extremamente benéfico, visto que a aplicação apenas da multa de mora em caso de não-homologação resultará em menos gastos, afastando uma punição injusta que penaliza, indevidamente, o exercício do direito de petição.


A decisão do STF deve contemplar a modulação de efeitos? 

Sávio Hubaide: A princípio, não há razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público capazes de justificar a modulação de efeitos, uma vez que a multa isolada por compensação não homologada é inconstitucional desde a sua criação, e o interesse público não se confunde com interesses financeiros fazendários. Na mesma linha, também não há alteração de jurisprudência dominante do STF capaz de sustentar a modulação. Pelo contrário, a Suprema Corte possui consolidado entendimento no sentido de rechaçar sanções políticas que coíbam o exercício regular de direitos dos contribuintes. De toda forma, não se pode descartar o risco de eventual modulação de efeitos em caso de declaração da inconstitucionalidade da multa, prática que se tornou recorrente nos temas tributários de repercussão geral julgados recentemente, muitas vezes motivada pelo argumento consequencialista do impacto financeiro.

Paulo Coimbra: Acreditamos que, nesse caso, a decisão do STF será favorável aos contribuintes e não deve contemplar a modulação de efeitos. Como dito acima, as multas não devem exercer função arrecadatória e, por isso, sua inconstitucionalidade, em tese, sequer deveria impactar em orçamento público realizado de forma responsável.

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