Carta branca para aumento do IPTU preocupa

Conforme texto da reforma tributária aprovado na Câmara dos Deputados, municípios poderão alterar valor venal dos imóveis por decreto

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Apesar de o foco da reforma tributária aprovada pela Câmara dos Deputados (PEC 45/19) ser a tributação referente ao consumo, ela trouxe algumas mudanças que devem afetar os impostos que incidem sobre o patrimônio das pessoas físicas. Por exemplo, a previsão para que o imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD) seja progressivo e o início da cobrança do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) para quem possui veículos aquáticos e aéreos. Embora essas duas cobranças possam trazer aumento dos impostos, a mudança que preocupa os advogados tributaristas diz respeito ao imposto predial e territorial urbano (IPTU). O imposto passaria a poder ser alterado por decreto, dispensando a aprovação pelas câmaras municipais.

A PEC autoriza que a base de cálculo do IPTU (valor venal do imóvel) seja atualizada pelo Poder Executivo por decreto, com base em critérios estabelecidos em lei municipal. “Na prática, o que podemos esperar são recorrentes atualizações do valor de IPTU exigido, uma vez que os municípios poderão atualizar a base de cálculo (valor venal do imóvel) de forma bem mais livre”, consideram Thiago Braichi e Júlia Barreto, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados. Isso porque a aprovação do IPTU por decreto permitirá o aumento da carga tributária de forma mais rápida. Outro ponto, lembram os advogados, é que haverá uma flexibilização da limitação hoje existente ao poder do Estado de tributar – limitação que garante segurança ao contribuinte.

Thiago Duca, sócio do Nankran Mourão Brito Massoli, lembra que uma das garantias do Estado Democrático de Direito é o respeito à legalidade, sobretudo em matéria tributária, prevista no artigo 150, I, da Constituição Federal. É proibido que tributos sejam exigidos ou aumentados sem a previsão legal. “Permitir que o município atualize o valor do imóvel, base de cálculo do IPTU, via decreto do Poder Executivo, é flagrantemente aumentar tributo sem prévia lei autorizativa, violando frontalmente o princípio da legalidade tributária”, considera.

“A princípio a alteração preocupa, pois não estabelece limites. Tampouco há parâmetros para os critérios a serem criados”, consideram Michel Siqueira Batista e Caio Persici, associados do Vieira Rezende Advogados. Eles lembram ainda que o texto parece contrariar o entendimento do Supremo Tribunal Federal (Tema 211). Segundo ele, a edição de lei somente pode ser dispensada para atualização do valor venal dos imóveis para fins de cobrança do IPTU caso a atualização não exceda os índices inflacionários anuais de correção monetária.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz, Nankran Mourão Brito Massoli e Vieira Rezende explicam as principais alterações referentes ao IPVA, ITCMD e IPTU previstas na PEC 45/19, e que afetam as pessoas físicas. 


– Embora o foco da reforma tributária recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados seja a tributação sobre o consumo, ela também alterou alguns impostos que afetam diretamente as pessoas físicas. Já é possível prever se haverá aumento desses tributos para elas?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: A nosso ver, ainda é difícil falar em aumento de carga tributária. Como sabemos, a arrecadação de um tributo pode aumentar em decorrência de majoração da alíquota, alargamento da base de cálculo (valor sobre qual os tributos são exigidos), criação de novos fatos geradores (situações que “engatilham” a cobrança do tributo), entre outros.

No contexto da reforma tributária, ainda não é possível falar sobre aumento de alíquota, uma vez que estas só serão definidas em momento subsequente. Também temos uma série de situações que só serão previstas em Lei Complementar, a ser editada, conforme previsão atual do texto da reforma. Contudo, já é possível estimar outras situações que irão impactar o recolhimento tributário.

Uma dessas situações é a inclusão da previsão da progressividade do ITCMD para doações e transmissões, que resultará em aumento do recolhimento tributário para bens de maior valor. Também passou a existir a previsão de cobrança de IPVA para veículos aquáticos e aéreos, o que pode impactar a pessoa física diretamente, por mais que existam exceções à essa cobrança, como tratores, aeronaves e máquinas agrícolas. Essas duas alterações, por exemplo, resultarão em aumento tributário para as pessoas físicas, mas – como adiantado – ainda é cedo para falar de majoração no cenário total da reforma. Ou seja, por mais que novas situações passem a ser tributadas, espera-se que outras situações sejam desoneradas, resultando em equilíbrio do recolhimento tributário para pessoas físicas.

Thiago Duca: De fato, em que pese haja um clamor social pela reforma tributária, é bom consignar que a PEC 45/19 recém aprovada pela Câmara dos Deputados e enviada ao Senado para votação trata da alteração da tributação sobre o consumo, uma das bases tributárias eleitas pela legislação brasileira (as outras são renda, propriedade e folha de salário).

Contudo, a PEC 45/19 também trouxe alterações relativas ao IPTU, de competência dos municípios, e do IPVA e ITCMD, de competência dos Estados. Em relação ao IPTU, o texto da proposta possibilita a atualização do valor do imóvel, base de cálculo do IPTU, mediante decreto do Poder Executivo Municipal, violando a estrita legalidade tributária.

Quanto ao ITCMD, introduz previsão constitucional de progressividade do imposto em razão do valor da transmissão causa mortis ou da doação, bem como pretende suprir a inconstitucionalidade formal apontada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 825 quanto à incidência do imposto envolvendo não residentes.

Por fim, a meu sentir, a alteração pretendida pela proposta em relação ao IPVA é a que genuinamente promove justiça fiscal, incluindo no âmbito de incidência do imposto a propriedade de veículos aquáticos e aéreos, bens que compõem o patrimônio de pessoas abastadas.

Com certeza, tais alterações irão promover aumento na carga tributária imposta ao contribuinte, sobretudo no atual momento em que vários Estados e municípios da federação passam por grave situação fiscal, com baixa arrecadação de receitas públicas.

Michel Siqueira Batista e Caio Persici:  Basicamente, dois pontos da reforma atingem potencialmente de forma direta as pessoas físicas.

O primeiro deles é a previsão para que o Imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD) obrigatoriamente tenha alíquotas progressivas (quanto maior o valor da doação ou patrimônio transferido via herança, maior deve ser a alíquota).

Hoje, alguns Estados já adotam essa prática (como o Rio de Janeiro), porém a maioria ainda possui alíquotas únicas, independente do montante transferido, como é o caso de São Paulo.

Embora o texto da PEC não preveja os critérios a serem adotados, é possível que os Estados que hoje não adotam alíquotas progressivas passem a estabelecer alíquotas superiores às hoje praticadas, o que representaria um aumento de carga tributária em alguns casos.

O segundo ponto é a ampliação do escopo do Imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA), que passaria a incidir também sobre veículos automotores aquáticos e aéreos (como lanchas, jet skis, helicópteros, jatinhos etc)


– Com relação à progressividade do ITCMD, de que forma ela deverá ser viabilizada pelos Estados, ou seja, quais devem ser os critérios estabelecidos? Poderá haver muita discrepância entre esses critérios?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: Caso o texto aprovado na Câmara dos Deputados permaneça igual, a progressividade do ITCMD será uma obrigatoriedade a ser observada pelos Estados, sendo guiada pelo valor da transmissão ou da doação. Assim, quanto maior o valor do bem ou direito objeto da transação, maior será a alíquota aplicável.

Contudo, não há determinação sobre qual alíquota usar em qual faixa de valor ou mesmo quais seriam essas faixas. Atualmente, é previsto apenas um limite da alíquota de 8%. Na redação aprovada pela Câmara dos Deputados, não há alteração desse limite de alíquota. Portanto, os Estados deverão se adequar à progressividade, nos termos da redação atual da proposta, mas mantendo o limite ao patamar já existente.

É possível que existam discrepâncias exatamente na aplicação desses dois requisitos ante a inexistência de faixas já definidas, de forma que um Estado pode definir uma faixa totalmente divergente da faixa de outro Estado. O efeito seria que operações com o mesmo valor podem ter alíquotas distintas em Estados diferentes, resultando exatamente na complexidade fiscal que a reforma tributária tenta combater.

Thiago Duca: É difícil falar nos critérios que devem ser estabelecidos pelos Estados na implementação da progressividade das alíquotas do ITCMD. Certo é que o parâmetro econômico será utilizado, tributando com alíquotas mais altas aqueles que possuem maior patrimônio.

Contudo, deve-se levar em conta as limitações constitucionais ao poder de tributar para que não seja violada a capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, tampouco que o imposto tenha caráter confiscatório, já que nossa Constituição protege o direito à propriedade.

É possível que haja discrepância nos critérios, sobretudo econômicos, já que o ITCMD é de competência dos Estados membros da Federação, a menos que haja uma padronização via Lei Complementar, nos termos do artigo 146 da Constituição Federal.

Michel Siqueira Batista e Caio Persici: O texto da PEC não estabelece as faixas das alíquotas progressivas.

Espera-se que alguns parâmetros sejam estabelecidos via Lei Complementar para evitar grandes discrepâncias.


– Ainda com relação ao ITCMD, conforme decisão do STF, seria necessária a edição de uma Lei Complementar para instituir a cobrança do imposto relativo a heranças recebidas de não residentes. O PL 45/19, conforme aprovado pela Câmara, dispensaria a edição da Lei Complementar?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: A atual redação da PEC não dispensa a edição de Lei Complementar nesses casos. A previsão permanece no artigo 155 da Constituição Federal, de forma que a edição da Lei Complementar permanecerá pendente mesmo com a reforma tributária.

Esperamos que, dada a necessidade de edição de Lei Complementar para diversos temas previstos no atual texto da PEC, a controvérsia relacionada a determinadas situações envolvendo o exterior também seja devidamente regulada. Até que isso ocorra, a reforma tributária criou um regime de transição – até a edição de Lei Complementar – em que o ITCMD será recolhido:

(i)         Para bens imóveis, no Estado do bem ou no Distrito Federal.

(ii)        Para doações em que o doador seja domiciliado no exterior, no Estado em que tiver domicílio o donatário.

(iii)       Para doações em que o doador e o donatário residirem no exterior, no Estado em que se encontra o bem ou no Distrito Federal.

(iv)       Para transmissões causa mortis, no Estado onde a pessoa falecida tinha domicílio. Se a pessoa falecida tiver domicílio no exterior, caberá ao Estado em que o herdeiro ou legatário tiver domicílio ou o Distrito Federal.

Portanto, apesar da ausência de Lei Complementar, a tributação pelo ITCMD já terá previsão constitucional.

Thiago Duca: Como mencionado no item 1, creio que a PEC/45 esteja tentando suprir inconstitucionalidade formal apontada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 825 quanto à incidência do imposto envolvendo não residentes.

Entretanto, não vejo como superar a necessidade de edição de Lei Complementar, já que, conforme artigo 146, III, da Constituição Federal é o instrumento legislativo que estabelece normas gerais em matéria de legislação tributária, sobretudo quanto à definição de tributos e de suas espécies e, em relação aos impostos, dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

Michel Siqueira Batista e Caio Persici: O texto aprovado pela Câmara tem um dispositivo que estabelece alguns critérios e autoriza os estados a cobrarem o ITCMD nossas hipóteses, enquanto não houver Lei Complementar específica sobre a matéria.

Ou seja, a PEC 45/19 não dispensa a edição de Lei Complementar por completo. A Lei Complementar continua sendo exigida, porém transitoriamente, enquanto ela não for editada, serão adotados os critérios estabelecidos no teto da PEC.

Essa situação é bastante confusa, principalmente se a Lei Complementar não for efetivamente editada, o que poderia suscitar questionamentos nos moldes daqueles analisados pelo STF.


– Com relação ao IPTU, a proposta aprovada prevê que o imposto possa ser alterado por decreto, sem passar por aprovação das Câmaras Municipais. Os contribuintes deveriam se preocupar com essa possibilidade?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: Sim, com toda certeza. A Constituição Federal conta com uma seção intitulada “limitações ao poder de tributar”, que coloca efetivos limites aos entes tributantes (Governo Federal, Estadual e Municipal) ao criar e exigir tributos dos contribuintes.

Esse sistema foi estruturado de forma a prevenir que novas cobranças (sejam em razão de aumento de alíquota, nova base de cálculo ou até mesmo novo tributo) aconteçam de forma a surpreender o contribuinte. Ou seja, é permitido que esses entes possam aumentar a carga tributária, porém, é necessário que isso aconteça de forma que aqueles que efetivamente pagam os tributos possam se programar para quitar os novos tributos.

Ao permitir que o IPTU seja aumentado por decreto, sem a aprovação das Câmaras Municipais, o aumento da carga tributária irá acontecer de forma mais célere, permitindo que os municípios exijam o imposto sem a possibilidade de discussão pelo Poder Legislativo (Câmaras Municipais), flexibilizando exatamente as limitações aos poderes de tributar, que são necessárias para garantir a segurança ao contribuinte.

Na prática, o que podemos esperar são recorrentes atualizações do valor de IPTU exigido, uma vez que os municípios poderão atualizar a base de cálculo (valor venal do imóvel) de forma bem mais livre.

Thiago Duca: Com toda a certeza. Uma das garantias do Estado Democrático de Direito é o respeito à legalidade, sobretudo em matéria tributária, prevista no artigo 150, I, da Constituição Federal. Assim, é vedado ao ente político exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.

Permitir que o município atualize o valor do imóvel, base de cálculo do IPTU, via decreto do Poder Executivo, é flagrantemente aumentar tributo sem prévia lei autorizativa, violando frontalmente o princípio da legalidade tributária.

Michel Siqueira Batista e Caio Persici: O texto da PEC 45/19 autoriza a atualização da base de cálculo do IPTU (valor venal do imóvel) pelo Poder Executivo (por decreto) conforme critérios previamente estabelecidos em lei municipal.

A princípio a alteração preocupa, pois não estabelece limites, tampouco há parâmetros para os critérios a serem criados.

O novo texto parece contrariar o entendimento do STF (Tema 211), segundo o qual a edição de lei somente pode ser dispensada para atualização do valor venal dos imóveis para fins de cobrança do IPTU caso a atualização não exceda os índices inflacionários anuais de correção monetária.


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