O desafio de entender a disparidade salarial nas companhias

Falta de padronização na apresentação das informações e peculiaridades de cada setor dificultam análise do investidor

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Desde o início deste ano, as companhias abertas precisam informar sobre a disparidade salarial existente entre seus funcionários – a medida visa aumentar a transparência e a proteção dos investidores, reprimindo a remuneração excessiva e injustificada dos administradores e incentivando a diminuição da desigualdade nos vencimentos. No entanto, na prática, a interpretação desses números tem sido desafiadora por conta de diferenças setoriais e da falta de padronização na apresentação das informações.

“Apesar das orientações gerais trazidas pela Resolução CVM 59, a ausência de critérios para a avaliação do resultado do cálculo atrapalha a comparação entre as companhias abertas, uma vez que há diversas variáveis que devem ser consideradas na interpretação deste dado, como o setor de atuação, o local em que os funcionários e as operações da companhia estão concentrados, os sindicatos aos quais estão vinculados seus funcionários, as características de sua força de trabalho e sua estrutura organizacional”, avaliam Gyedre Carneiro de Oliveira, Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues, sócias e associada do Carneiro de Oliveira Advogados.

Elas observam ainda que a forma de divulgação varia: há desde companhias que somente informam os números exigidos pela norma da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) até outras que detalham melhor os dados e trazem informações adicionais. “Nesse sentido, a comparação do resultado de disparidade salarial entre todas as companhias abertas de forma ampla e indiscriminada pode gerar distorções relevantes e uma percepção errada do mercado”, consideram as advogadas do Carneiro de Oliveira. Para evitar essa distorção, elas ressaltam a importância de a comparação da disparidade salarial ser realizada de forma criteriosa.

Embora considerem compreensível que a remuneração de administradores seja maior em relação à de outros funcionários, por conta das reponsabilidades e atribuições distintas, as advogadas lembram que garantir uma renda mínima digna aos funcionários deve ser uma das prioridades das companhias e de seus dirigentes – e que é possível encontrar um equilíbrio entre as remunerações dos dirigentes e dos demais funcionários.

Na entrevista abaixo, Oliveira, Krieck e Rodrigues esclarecem aspectos referentes à divulgação da disparidade salarial e a sua importância para os investidores.


– Com relação aos dados referentes à disparidade salarial entre funcionários de companhias abertas, o que deve ser divulgado no Formulário de Referência?

Gyedre Carneiro de Oliveira, Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: A obrigatoriedade de divulgação de informações referentes à disparidade salarial entre funcionários de companhias abertas foi introduzida pela Resolução CVM nº 59, de 22 de dezembro de 2021 (Resolução CVM 59), que entrou em vigor em 2 de janeiro de 2023, em conjunto com a obrigação de divulgação de outras informações relacionadas a aspectos ambientais, sociais e de governança corporativa (ASG).

Dessa forma, a partir da atualização anual do Formulário de Referência deste ano, as companhias abertas passaram a ser obrigadas a divulgar a razão entre a maior remuneração individual reconhecida no resultado no último exercício social, incluindo a remuneração de administrador estatutário, se for o caso; e a mediana da remuneração individual dos empregados no Brasil, conforme reconhecida em seu resultado no último exercício social, excluída a maior remuneração conforme item anterior.


– A norma especifica os critérios de cálculo dos números? Em caso negativo, a ausência de critérios atrapalha a comparação entre diferentes companhias?

Gyedre Carneiro de Oliveira, Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: De acordo com a Resolução CVM 59, o cálculo da maior remuneração individual deverá considerar a composição da remuneração com todos os itens descritos no campo 8.2(d) do Formulário de Referência, que inclui não apenas a remuneração fixa anual, mas também a remuneração variável, os benefícios pós-emprego, os benefícios motivados pela cessação do exercício do cargo e a remuneração baseada em ações. Para o cálculo da mediana da remuneração individual dos empregados do Brasil, deverá ser desconsiderada a maior remuneração individual.

Apesar das orientações gerais trazidas pela Resolução CVM 59, a ausência de critérios para a avaliação do resultado do cálculo atrapalha a comparação entre as companhias abertas, uma vez que há diversas variáveis que devem ser consideradas na interpretação deste dado, como o setor de atuação, o local em que os funcionários e as operações da companhia estão concentrados, os sindicatos aos quais estão vinculados seus funcionários, as características de sua força de trabalho e sua estrutura organizacional.

Além disso, o modo de divulgação da nova informação sobre a disparidade salarial varia de companhia para companhia, já que algumas somente apontam os números exigidos, enquanto outras fornecem um maior detalhamento dos componentes da remuneração e informações adicionais que auxiliam na análise dos dados apresentados, como explicações sobre as peculiaridades da companhia e de sua área de atuação.

Nesse sentido, a comparação do resultado de disparidade salarial entre todas as companhias abertas de forma ampla e indiscriminada pode gerar distorções relevantes e uma percepção errada do mercado. O piso salarial dos funcionários ou a remuneração dos executivos pode variar de acordo com o setor de atuação e o local em que cada empresa opera. Companhias de determinados segmentos demandam a contratação de um número maior de funcionários em cargos operacionais do que outras, de forma que tendem a ter uma remuneração média mais próxima ao piso salarial da categoria. Além disso, as responsabilidades e competências dos executivos também mudam conforme o setor de atuação ou o porte da empresa. Sendo assim, vale ressaltar a importância de a comparação da disparidade salarial ser realizada de forma criteriosa e se atentando para os fatores mais relevantes de distorção.


– Por que esse indicador é relevante para os investidores?

Gyedre Carneiro de Oliveira, Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: Além de garantir uma maior transparência no mercado, o indicador é considerado um mecanismo de proteção contra eventuais abusos praticados pelas companhias e seus administradores, coibindo a adoção de remunerações excessivas sem justificativa razoável e incentivando a diminuição da desigualdade salarial. É importante, no entanto, que esses dados sejam interpretados de forma cuidadosa e criteriosa, levando em consideração as diferenças mais relevantes entre as companhias objeto de comparação, conforme destacado na resposta à pergunta anterior, a fim de melhor entender esses dados e poder utilizá-los de forma mais eficaz, justa e adequada.


– Qual seria uma disparidade salarial aceitável para o mercado brasileiro, considerando que o país se caracteriza por uma grande desigualdade e concentração de renda? 

Gyedre Carneiro de Oliveira, Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: Uma disparidade salarial aceitável para o mercado brasileiro deve ser analisada levando em consideração diversos elementos socioeconômicos. Esses elementos incluem fatores como nível de educação, experiência profissional, desigualdade de renda, condições de trabalho, acesso a benefícios e oportunidades de crescimento na carreira.

Além disso, é necessário também levar em conta a realidade de cada setor da economia e região do país, que pode variar em termos de demanda por habilidades específicas e disponibilidade de mão de obra. O custo de vida e as oportunidades econômicas podem diferir significativamente entre regiões, influenciando os níveis salariais adequados.

É inegável que a fixação da remuneração dos administradores deve levar em conta suas responsabilidades, o tempo dedicado a suas funções, sua competência e reputação profissional, além do valor dos seus serviços no mercado, devendo ser suficientemente atrativa, haja vista a necessidade de captação e retenção de profissionais aptos e qualificados. Esta é, inclusive, a abordagem prevista no artigo 152 da Lei das Sociedades Anônimas. Nesse sentido, é compreensível que a remuneração de administradores seja maior em relação à de outros funcionários que ocupam cargos com menos responsabilidades e atribuições distintas.

No entanto, garantir uma renda mínima digna a seus funcionários deve ser uma das prioridades da companhia e de seus dirigentes. Essa garantia deve levar em consideração a realidade da companhia, da região em que opera e do setor em que atua, sendo possível encontrar um equilíbrio entre a remuneração dos administradores, que reflete suas responsabilidades e competências, e a garantia de uma renda adequada para todos os funcionários.


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