Como funciona o mercado de negociação de precatórios

Transações continuam aquecidas graças às incertezas e à ampliação das possibilidades de uso

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A negociação de precatórios federais se mantém aquecida desde que a Emenda Constitucional 114/21 modificou os critérios de pagamento dessas requisições de pagamentos. Num primeiro momento, os detentores de precatórios se viram motivados a vender/ceder os créditos a terceiros por conta da maior demora em receber os pagamentos por parte do governo federal. Mais recentemente, os precatórios federais atraíram mais interesse também da parte dos compradores, já que as alternativas de uso vêm sendo ampliadas.

Fernanda Rizzo e Gabriel Eleutério, associados do Vieira Rezende Advogados, citam como exemplos dessas novas alternativas a possibilidade de usar os precatórios para amortizar dívidas tributárias – uma empresa pode adquirir, com deságio, um precatório de terceiro e abater a sua dívida pelo valor integral do crédito atualizado – e a expectativa de regulamentação do uso de precatórios como pagamento de outorgas de concessões, que pode despertar o interesse de concessionárias de serviços públicos na aquisição desses títulos.

Apesar desse recente estímulo aos compradores de precatórios, o deságio (desconto) dos títulos ainda continua alto, refletindo a postergação nos pagamentos, ocorrida após a EC 114/21.  “É possível perceber que a situação de aumento do deságio nas transações com precatórios ainda persiste, seja pelas regras então vigentes da Emenda Constitucional nº 114/2021, como também pelo cenário político atual, de transição de governo, que se soma às atuais discussões acerca da reforma fiscal-tributária e uma maior necessidade de arrecadação e retenção de valores pelos entes federativos”, afirmam Rizzo e Eleutério.

Os advogados consideram que a vantagem de vender um precatório deve ser avaliada caso a caso: “A “venda de precatório” é um negócio particular, e para concluir se a operação pode ser vantajosa, o credor do precatório deve levar em conta as suas prioridades. Não há uma regra.”

Na entrevista abaixo, Rizzo e Eleutério explicam como esse mercado funciona, o que avaliar e quais cuidados tomar na negociação com precatórios.


– Como funciona o mercado de negociação de precatórios federais? Os precatórios negociados costumam envolver grandes somas?

Fernanda Rizzo e Gabriel Eleutério: O precatório federal é uma requisição de pagamento de valor líquido e certo resultante de condenação judicial imposta à União Federal, e cujo valor total seja superior a 60 salários-mínimos por beneficiário. Destaque-se que o pagamento de precatórios não ocorre de maneira imediata, mas, teoricamente, seguem ordem cronológica de apresentação ao tribunal ao qual a ordem judicial de pagamento está vinculada, para então os precatórios serem incluídos na proposta orçamentária do ano seguinte. Ainda, o pagamento de precatórios deve obedecer às prioridades constitucionalmente estabelecidas, tendo preferência os precatórios cujos beneficiários no momento do pagamento tenham 60 anos ou mais, sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, sendo que os créditos de natureza alimentar preterem todos os demais.

Destaque-se que o precatório não é o pagamento do crédito em si, mas o reconhecimento e determinação de que a dívida seja paga ao credor. Ocorre que, na prática, não obstante a ordem cronológica de apresentação para inclusão na proposta orçamentária do ano seguinte, não há uma previsão de data concreta para o seu pagamento. Isso porque, como se sabe, o orçamento anual representa um controle das contas públicas segundo metas, prioridades e limites previamente estabelecidos, de forma a representar equilibradamente as receitas e as despesas públicas projetadas em um período de doze meses, e se não é possível alocar o pagamento do precatório para o ano seguinte à sua apresentação, ele se estende para o(s) ano(s) subsequente(s).

Uma vez que o prazo para receber um precatório pode ser longo, como meio de antecipar os valores a receber, alguns credores optam por fazer a cessão do crédito, popularmente conhecida como “venda de precatórios”, autorizada pelo artigo 100, § 13, da Constituição da República, que prevê a possiblidade de o credor de precatórios ceder, total ou parcialmente, seus créditos a terceiros, independentemente de concordância da União, sendo que tal cessão apenas produz efeitos após a comunicação ao tribunal de origem do precatório e ao ente federativo devedor.

Considerados títulos híbridos – mistura de renda variável com renda fixa – os precatórios têm se mostrado investimento de interesse no mercado. Assim, credores de precatórios, com o objetivo de antecipar o recebimento do crédito, negociam a venda/cessão do seu crédito, com desconto – como impostos, honorários, dívidas do beneficiário, dentre outros –, passando o comprador/investidor a ser credor do ente público, com direito a receber o valor original do crédito com acréscimo dos juros moratórios (a depender da situação) e correção monetária.

Os valores das propostas variam de acordo com as peculiaridades de cada precatório, sendo influenciadas por fatores como natureza do crédito, ente devedor, ano de vencimento, valor total do crédito etc. Superada as primeiras fases da negociação – oferecimento da proposta, análise de documentos – as partes deverão formalizar a transferência dos créditos mediante contrato de cessão de crédito judicial, informar ao tribunal ao qual o precatório é vinculado e ao ente público credor (no caso dos precatórios federais, a União Federal), mediante petição apresentada nos autos, a cessão do crédito, e concluir o pagamento da venda. Lembrando que a cessão do crédito pode ser total ou parcial.


– Para as empresas, quando pode ser interessante vender um precatório federal? Quais fatores ela deve analisar?

Fernanda Rizzo e Gabriel Eleutério: A “venda de precatório” é um negócio particular, e para concluir se a operação pode ser vantajosa, o credor do precatório deve levar em conta as suas prioridades. Não há uma regra. A vantagem ou não na venda de um precatório deve ser avaliada caso a caso. Como toda negociação financeira, a venda de precatório também traz ganhos e perdas. Ao passo em que o vendedor do precatório pode se beneficiar com o recebimento antecipado do crédito e redução na burocracia envolvida, em contrapartida, para tornar a operação mais atrativa ao comprador, a cessão do crédito judicial via de regra está sujeita a um deságio, representado por um desconto no valor original do precatório, de modo que, quem vende o precatório acaba por não receber o valor integral do crédito reconhecido judicialmente.

Ao optar pela venda de um precatório, é importante estar atento a alguns fatores, como o tipo e a natureza do precatório, se o crédito está dentro de alguma das hipóteses de preferência no pagamento, a taxa de juros, a posição que o precatório ocupa na fila de precatórios, a situação política e econômica do País. Uma melhor análise desses fatores pode levar o vendedor do precatório a fazer uma boa negociação, bem como buscar melhores ofertas.

Segundo o Instituto de Estudos Previdenciários, Trabalhistas e Tributários, quanto à natureza do precatório, os precatórios federais costumam ser vistos como ativos financeiros de maior liquidez, uma vez que geralmente são respeitados os prazos para seu pagamento, ao passo que os atrasos costumam ser mais frequentes no pagamento dos precatórios estaduais e municipais. Além disso, é importante que o vendedor do precatório consulte o Projeto de Lei com a proposta da Lei Orçamentária Anual a fim de verificar a inclusão do seu precatório para pagamento no orçamento. Os precatórios que poderão vir a serem pagos em determinado ano podem ser consultados na página eletrônica da Câmara dos Deputados – Orçamento da União.


– Quais cuidados as empresas devem tomar nesse tipo de transação?

Fernanda Rizzo e Gabriel Eleutério: O credor de um precatório que tenha interesse em vendê-lo (ceder o crédito) deve sempre estar atento e tomar alguns cuidados, como pesquisar sobre a reputação do comprador, solicitar/expedir certidões negativas de débito do credor, consultar um advogado para avaliar se a venda do precatório pode ser vantajosa ou não de acordo com suas prioridades, realizar a cotação com mais de um comprador, formalizar um bom contrato público da cessão do crédito, enfim, estar bem assessorado.

Do ponto de vista do comprador, é importante estar bem assessorado, e além dos documentos acima, deve realizar uma boa due diligence do processo de origem, checar se o documento é líquido, certo e exigível, se não contém vícios ou defeitos na sua constituição, verificar a previsão de pagamento e possibilidade de utilização (compensação, aguardar pagamento na fila) etc.


– Após a edição da Emenda Constitucional 114, o deságio nesse tipo de transação aumentou. Essa situação ainda persiste? Como está a atividade desse mercado?

Fernanda Rizzo e Gabriel Eleutério: No final do ano de 2021, a Emenda Constitucional nº 114/2021, popularmente conhecida como “PEC dos Precatórios”, foi aprovada, alterando a sistemática de recebimento de precatórios. Segundo o Governo Federal, propositor do Projeto de Emenda à Constituição (PEC), o motivo seria ampliar os gastos com programas sociais e estabelecer um teto de gastos para o pagamento de precatórios, de modo a compatibilizar as despesas de precatórios com o teto de gastos do governo e evitar o comprometimento das contas públicas. Assim, a Emenda Constitucional nº 114/2021 promoveu significativas alterações na sistemática de pagamento de precatórios, como:

  • um limite para o pagamento de precatórios federais, até o final do ano de 2026, equivalente ao valor da despesa paga no ano de 2016, corrigido pelo IPCA;
  • possibilidade de o credor do precatório optar pelo recebimento do valor do crédito em parcela única até o final do exercício seguinte à sua apresentação, caso concorde em renunciar 40% do valor do precatório;
  • alteração dos índices e correção monetária e juros para a Taxa SELIC;
  • para serem incluídos no orçamento de determinado ano, o precatório deverá ter sido apresentado até 2 de abril do ano anterior, e não mais até 1º de julho do ano anterior, o que aumentou o prazo de pagamento de precatórios, antes de 18 meses, para 21 meses;
  • os precatórios que não forem pagos em determinado ano em razão do limite previsto pela Emenda Constitucional terão preferência para quitação nos anos seguintes, de acordo com a ordem cronológica e as hipóteses de preferência.

Dentre outros aspectos, a aprovação da Emenda Constitucional nº 114/2021 também impactou no aumento do deságio nas vendas e compras de precatórios. O deságio refere-se à depreciação do valor nominal de um título em relação ao seu valor de mercado, o que, no caso dos precatórios, pode ser representado pelos descontos que são aplicados sobre o valor atualizado do precatório, considerando os acréscimos de juros e correção monetária.

Assim, com a vigência da Emenda Constitucional nº 114/2021, e com o receio dos possuidores de precatórios quanto ao recebimento do crédito e o tempo para o seu pagamento, aumentou-se o interesse pela venda de precatórios, o que consequentemente impactou o deságio nesse tipo de transação, tendo em vista a grande oferta dos títulos, garantindo aos potenciais compradores/investidores maior poder de negociação. Ainda, o atraso no pagamento do precatório também impacta no deságio aplicado, sendo certo que os precatórios contemplados na Lei Orçamentária Anual de 2022 em princípio não sofreram tanto deságio comparando-se com aqueles precatórios apesentados a partir de 2023, já sob vigência da Emenda Constitucional nº 114/2021.

Outro impacto é o próprio deságio introduzido pela Emenda Constitucional nº 114/2021 no caso de o credor do precatório optar pelo recebimento do crédito em parcela única até o final do exercício seguinte à sua apresentação, que será de 40% sobre o valor do crédito.

É possível perceber que a situação de aumento do deságio nas transações com precatórios ainda persiste, seja pelas regras então vigentes da Emenda Constitucional nº 114/2021, como também pelo cenário político atual, de transição de governo, que se soma às atuais discussões acerca da reforma fiscal-tributária e uma maior necessidade de arrecadação e retenção de valores pelos entes federativos.

Fato é que, em contrapartida ao “alívio” nas contas públicas, a alteração no regime de pagamento de precatórios exige uma reorganização na lógica dos pagamentos, sem que se descumpra o que está determinado na Constituição da República. As mudanças acabam por movimentar o mercado de precatórios que, antes mais restrito, está mais aquecido, diante das formas alternativas de uso dos precatórios que, em especial, acabam por despertar maior interesse das empresas.

A título de exemplo pode-se citar a previsão de possibilidade de amortização de dívidas tributárias, incluindo juros e multa, mediante precatórios, de modo que uma empresa pode vir a se beneficiar em adquirir precatório de terceiros comprado com deságio, podendo abater sua dívida pelo valor integral do crédito atualizado, o que gera, na prática, um desconto adicional para quitar a dívida com a União. Outra expectativa está na regulamentação e prática de pagamento de outorgas de concessões com precatórios, que pode vir a despertar o interesse de concessionárias de serviços públicos na aquisição desses títulos.


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