O mais recente capítulo da novela dos precatórios

Governo coloca novos empecilhos à utilização para o pagamento de concessões

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A novela do uso de precatórios para o pagamento de outorgas de concessões continua. No mais recente capítulo, surgiram novos obstáculos para que os precatórios sejam usados como moeda: o governo anunciou que não pretende aceitar precatórios para pagar outorgas de contratos de concessão prorrogados antecipadamente. E a Advocacia-Geral da União (AGU) recomendou que não se aceitem mais precatórios até que uma nova portaria sobre o assunto seja publicada – ela suspendeu a Portaria Normativa nº 73/2022, que regulamentava o assunto.

De acordo com a AGU, os motivos para a suspensão foram a defasagem da norma e a necessidade de conferir mais segurança jurídica ao uso dos precatórios. A AGU pontua que a decisão de aceitar ou não os precatórios continua na mão dos órgãos ou entidades federais (como as agências reguladoras), que devem avaliar se isso infringe ou não a igualdade das licitações. No entanto, recomenda que eles aguardem a edição de uma nova portaria – que deve ocorrer em 120 dias.

Já o ministro dos portos e aeroportos, Marcio França, afirmou que o recebimento de precatórios nos contratos de concessão prorrogados antecipadamente poderia gerar questionamentos de empresas que não disputaram leilões no passo – e que o governo só pagaria a aceitar pagamento em dinheiro para as outorgas. A intenção do governo em arrecadar mais, dada a preocupação com o déficit fiscal, vem atrapalhando o cumprimento da Emenda Constitucional 113/21, que permitiu o uso de precatórios para o pagamento de outorgas, dentre outras utilizações.

Maria Virginia Mesquita, sócia do Vieira Rezende Advogados, considera que não se sustenta a argumentação de que a aceitação do precatório como pagamento de outorga levaria a tratamento não isonômico dos licitantes: “Primeiro porque a possibilidade de pagar outorga com precatório pode até representar certa vantagem para quem tem o precatório, mas está longe de ser determinante para que um licitante decida ou não entrar em um grande projeto de infraestrutura. Em segundo lugar, é da natureza do processo licitatório selecionar aquele que obtém mais eficiências (seja um contrato de fornecimento vantajoso de algum insumo, seja a sinergia com outro projeto já em desenvolvimento pelo licitante) e as faz refletir na proposta.”

A advogada considera que tampouco há base legal para recusar os precatórios para o pagamento de outorgas nos contratos de concessão prorrogados antecipadamente: “O governo não tem que pretender ou deixar de pretender observar um dispositivo constitucional”, e lembra que a prorrogação não é um favor do governo, e sim ocorre quando fica demonstrado que isso atende ao interesse público.

Na entrevista abaixo, Mesquita aborda os argumentos que vêm sendo usados contra a aceitação de precatórios por parte do governo.


– A AGU, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e o Ministério da Economia já editaram normas sobre o uso de precatórios para pagamento de concessões. Por que motivos os órgãos que deveriam aceitar os precatórios vêm colocando empecilhos? Quais são os seus temores? 

Maria Virginia Mesquita:  Em tese, o principal temor é quanto à qualidade do precatório. Alguns agentes consideram que esse mercado é permeável a fraudes (qual não é?). O problema é que, nesse caso, é o próprio ente emissor do título representativo de uma dívida se recusando a aceitá-lo. Algo no mínimo estranho. Também escutamos que a aceitação do precatório como pagamento de outorga levaria a tratamento não isonômico dos licitantes. Isso não se sustenta. Primeiro porque a possibilidade de pagar outorga com precatório pode até representar certa vantagem para quem tem o precatório, mas está longe de ser determinante para que um licitante decida ou não entrar em um grande projeto de infraestrutura. Em segundo lugar, é da natureza do processo licitatório selecionar aquele que obtém mais eficiências (seja um contrato de fornecimento vantajoso de algum insumo, seja a sinergia com outro projeto já em desenvolvimento pelo licitante) e as faz refletir na proposta. Isso é diferente, obviamente, do cenário em que um licitante obtém uma vantagem exclusiva e tão grande que impede a competição na licitação.


– O Conselho Nacional de Justiça deve definir diretrizes para o instrumento que garante a validade de precatórios. No que consiste a Certidão do Valor Líquido Disponível (CLVD)? Essas diretrizes devem contribuir para solucionar a questão? 

Maria Virginia Mesquita:  A Certidão de Valor Líquido Disponível é um documento que deve ser expedido pelo tribunal que expediu o precatório, permitindo identificar o beneficiário do crédito e o valor ainda disponível. Além de identificar o crédito, essa certidão criaria o bloqueio do valor até sua utilização. O instrumento é excelente para padronizar os títulos e evitar que os créditos sejam cedidos de forma duplicada. Mas é importante que os tribunais se adaptem para começar a expedir as certidões com celeridade. E também é importante que os órgãos da administração pública se contentem com essa expedição para aceitar os precatórios ofertados em pagamento, ao invés de fazer dela um documento adicional em uma pilha de outros documentos exigidos. O uso do precatório não deveria ser transformado em uma gincana.


– Recentemente, o ministro dos portos e aeroportos disse que o governo não pretende aceitar precatórios para o pagamento de outorgas de aeroportos renovados antecipadamente. Há amparo legal para tanto?  

Maria Virginia Mesquita:  Não, não há. O governo não tem que pretender ou deixar de pretender observar um dispositivo constitucional. Ao que parece, na mesma ocasião teria sido dito que é injusto aceitar o precatório porque a empresa já teria sido beneficiada pela prorrogação. Mas a prorrogação não é acordada como um benefício particular à concessionária. A prorrogação se dá quando fica demonstrado que isso atende ao interesse público! Não se trata de favor. Assim como não se trata de favor dar cumprimento à faculdade constitucional de se utilizar precatório em pagamento de outorga.

 

– O que se recomenda às empresas interessadas em utilizar os precatórios para pagamento de outorgas? 

Maria Virginia Mesquita:  É importante lembrar que no momento a faculdade de oferta de precatórios é aplicável apenas para a União, então as recomendações não valem para Estados e Municípios. Nossa recomendação é reunir a documentação mais sólida possível acerca do crédito. Se não for possível obter a CVLD, deve-se buscar obter a certidão de objeto e pé do processo originário, fazendo constar que não houve transferência do montante do crédito (ou quais ocorreram, se for o caso). Posteriormente, ofertado o precatório, talvez seja necessário buscar uma medida liminar para sustar a exigibilidade da outorga até que seja apreciado o pedido de pagamento com precatório. Já sabemos de uma medida liminar (felizmente) obtida nesse sentido. Mas o importante mesmo é uma coordenação setorial que nos permita chegar a uma regulamentação razoável do tema.

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