Ampliação do uso de precatórios: mais uma armadilha?

Credores do Estado podem ter dificuldade para usar seus créditos, apesar das novas possibilidades

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De um lado, o governo federal realizou uma manobra mais do que questionável para encontrar espaço no orçamento, quando parcelou o pagamento dos precatórios por meio da edição da Emenda Constitucional 114 (originada da PEC do Calote/PEC dos Precatórios). De outro, ele ampliou as possibilidades de uso dos precatórios por parte daqueles que os detêm (por meio da Emenda Constitucional 113). Mas um balanço dos avanços e dos retrocessos poderá pender para estes últimos. 

As medidas que em tese facilitam o uso dos precatórios são um paliativo, considera Virginia Mesquita, sócia do Vieira Rezende: “Essa medida veio na esteira da pedalada dos precatórios, fruto de um acordo iliberal que parece ter sido o primeiro passo do ataque à nossa já frágil governança orçamentária dos últimos meses”.

Dentre as novas possibilidades de uso dos precatórios estão a quitação de débitos parcelados ou inscritos em dívida ativa (inclusive no âmbito da transação tributária), a compra de imóveis públicos e os pagamentos de outorgas de delegações de serviços públicos. No entanto, embora a iniciativa para dar liquidez aos precatórios seja bem-vinda, é possível que na prática os seus detentores encontrem dificuldades para utilizá-los. 

Com relação aos precatórios municipais e estaduais, ainda é necessário regulamentar o uso. Mesquita considera que é de se esperar que essas regulamentações demorem a sair, já que os entes públicos preferem receber em dinheiro, por conta do impacto positivo no caixa. “Imagino que, no limite, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou outros legitimados possam ajuizar uma ação específica, chamada mandado de injunção, utilizada para obrigar o ente público que se omite no dever de expedir uma norma de sua competência regulamentar”, afirma. 

Já com relação aos precatórios federais, há controvérsias sobre a necessidade de regulamentação adicional. “Tendo a achar que não é necessária uma regulamentação do uso dos precatórios no caso da União, pois a emenda foi muito específica ao determinar a autoaplicabilidade”, diz a advogada. Mesmo assim, ela considera que um decreto poderia esclarecer questões operacionais e ainda inspirar a adoção de regulamentações semelhantes pelos Estados e municípios.

Na entrevista abaixo, Mesquita detalha a questão e os empecilhos que podem surgir para a utilização dos precatórios. 


Quais foram as recentes alterações nas legislações que ampliaram as possibilidades de uso de precatórios? Para quais finalidades esses créditos que representam dívidas dos governos podem ser usados?

Virginia Mesquita: A alteração recente se deu pela Emenda Constitucional 113 (de 08/12/21), que permitiu que credores do poder público oferecessem créditos líquidos e certos (e o precatório é um deles) para quitação de débitos parcelados ou inscritos em dívida ativa, compra de imóveis públicos, pagamentos de outorgas de delegações de serviços públicos, aquisição de participação acionária posta à venda pelo ente público e compra de direitos disponibilizados para cessão. 

Enfim, a emenda permitiu que o credor de um ente da federação usasse seus créditos para quitar débitos ou adquirir direitos junto ao poder público, lembrando-se que a possibilidade vale para o mesmo ente credor (ou seja, o titular de um precatório expedido em face da União pode usá-lo para pagamento de outorga de concessão federal, o titular de um precatório do Estado de São Paulo pode utilizá-lo para aquisição de um imóvel posto à venda pelo mesmo Estado etc.). Importante lembrar, também, que as obrigações tributárias ainda não inscritas em dívida ativa ou objeto de parcelamento ficaram de fora dessa possibilidade de uso de créditos junto ao poder público para quitação.


Ainda se faz necessária regulamentação adicional para efetivamente viabilizar a utilização de precatórios para pagamento de outorgas e dívidas tributárias, inclusive no âmbito da transação tributária?

Virginia Mesquita: Essa questão tem gerado controvérsias. A emenda fala que “é facultado ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com autoaplicabilidade para a União” (nova redação do artigo 100, § 11). Fica a questão: é conforme lei futura, ou é autoaplicável? Tendo a achar que não é necessária uma regulamentação do uso dos precatórios no caso da União, pois a emenda foi muito específica ao determinar a autoaplicabilidade. No caso dos Estados e municípios, ela é necessária. Ainda assim, uma regulamentação federal, talvez via decreto, esclarecendo questões operacionais (como a possibilidade ou não de cessão parcial de um título, a possibilidade de pagar parte de uma outorga em precatório e outra em dinheiro etc.) seria muito bem-vinda, pois essa regulamentação ainda poderia inspirar a adoção de regulamentações semelhantes pelos Estados e municípios.


Na prática, espera-se que os detentores de precatórios consigam realmente utilizá-los ou devem ser muitos os empecilhos encontrados?

Virginia Mesquita: No caso dos Estados e municípios há o empecilho da regulamentação. E, claro, como os entes em geral preferem receber em dinheiro, talvez não tenham grande interesse em correr com essa regulamentação. Imagino que, no limite, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou outros legitimados possam ajuizar uma ação específica, chamada mandado de injunção, utilizada para obrigar o ente público que se omite no dever de expedir uma norma de sua competência regulamentar.

Pode ocorrer, também, de alguns editais ou mesmo comissões de licitação se recusarem a receber os precatórios em pagamento. Isso, no âmbito da União, seria desde já inconstitucional a meu ver. A emenda constitucional criou direitos. Não cabe ao poder público limitá-los, o que é diferente de regulamentar a utilização.


As mudanças são positivas ou podem ser vistas apenas como um paliativo, tendo em vista a aprovação da “PEC do Calote”/”PEC dos Precatórios” (Emenda Constitucional 114)?

Virginia Mesquita: As mudanças certamente são um paliativo. O Legislativo e o Executivo, que patrocinou essa mudança legislativa, não acordaram simplesmente um dia e pensaram “como fazer para diminuir a fila dos precatórios, que já é por si só um escândalo, melhorando a imagem de mau pagador?”. Infelizmente, não foi assim… Essa medida veio na esteira da pedalada dos precatórios, fruto de um acordo iliberal que parece ter sido o primeiro passo do ataque à nossa já frágil governança orçamentária que temos visto nos últimos meses.

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