Autorregularização tributária vale para impostos a vencer?
Contribuintes recorrem ao Judiciário para incluir tributos que ainda não venceram em programa de regularidade fiscal
É possível que um tributo que ainda não venceu seja incluído em um programa voltado à autorregularização de impostos que já venceram, mas que não foram pagos? Esta pergunta em breve deverá ser respondida pelo Judiciário, que vem sendo acessado por contribuintes interessados em incluir tributos que ainda não venceram no programa de autorregularização tributária incentivada, desenhado para facilitar o pagamento de impostos que não foram saldados dentro dos prazos.
A questão surgiu porque a Lei 14.740/23, editada no fim de 2023 e que instituiu o programa de autorregularização tributária incentivada, previu que podem ser incluídos no programa tanto os débitos tributários federais não constituídos até a data de publicação da lei (30/11/23), como também aqueles que venham a ser constituídos entre esta data e o termo final do prazo de adesão (01/04/24). Portanto, incluiria os tributos ainda a vencer. Pedro Simão e Rute Souza, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados, dizem que, apesar de ser incomum a denominada “regularização para frente”, a lei deixa brechas para a interpretação de possibilidade de inclusão de débitos constituídos até abril deste ano.
A Receita Federal, por sua vez, manifestou-se de forma contrária à inclusão desses tributos que ainda não venceram, uma vez que esse não é o propósito da lei – mas o fez por meio da seção de perguntas e respostas de seu site. Bruna Luppi e Frederico Bakkum, sócia e associado do Vieira Rezende Advogados, dizem que a interpretação restritiva da Receita carece de base legal porque não encontra amparo nem na legislação federal nem na regulamentação trazida pela própria Receita (Instrução Normativa 2.168/23).
Como a restrição imposta pela Receita no site de perguntas e resposta (que considera aceitável apenas a inclusão dos tributos vencidos até 30/11/23) não tem a mesma força que a lei e a norma, os contribuintes ingressaram na Justiça para incluir também os tributos que vencem até 1º de abril. Na avaliação de Luppi e Bakkum, há bons fundamentos para que o programa possa ser aplicado inclusive em relação a tributos com vencimento até 01/04/2024 porque a lei não restringiu o programa a débitos vencidos até 30/11/2023: “Se assim fosse, deveria estar expressamente previsto, mas essa restrição não foi aprovada no processo legislativo”.
O interesse dos contribuintes de participar do programa decorre das condições vantajosas da autorregularização: se pelo menos 50% do débito for pago à vista, há isenção de multas (de mora e de ofício) e juros de mora. E também existe a possibilidade de o contribuinte pagar esses 50% à vista utilizando precatórios e créditos de prejuízo fiscal de IRPJ e de base negativa de CSLL – e é principalmente nessa possibilidade que estão de olho os contribuintes que buscaram o Judiciário. Os outros 50% podem ser pagos em 48 parcelas corrigidas pela taxa Selic.
O risco de cassação das liminares
Os contribuintes obtiveram liminares favoráveis à inclusão dos tributos ainda a vencer no programa, mas existe o risco de que elas sejam cassadas, avaliam Simão e Souza, já que as razões que levaram ao programa de autorregularização e à Lei 14.740/23 não eram tratar de impostos que ainda não venceram, e sim possibilitar que contribuintes que não quitaram as suas obrigações o fizessem e regularizassem a situação. “Existe sempre a possibilidade de revogação das liminares ou mesmo de reversão de decisões eventualmente favoráveis de mérito nas instâncias superiores”, avaliam. Por isso, os advogados do Freitas Ferraz recomendam que os contribuintes que ajuizaram ações para incluir os créditos tributários constituídos até 01/04/2024 estejam conscientes da possibilidade de reversão das decisões favoráveis, além da já sinalizada discordância pela fiscalização.
Luppi e Bakkum consideram que as liminares deverão ser confirmadas porque a lei autoriza, de forma expressa, a inclusão de tributos ainda não constituídos até 30/11/2023 e de tributos que venham a ser constituídos entre 30/11/2023 e 01/04/2024, mas ressalvam que a confirmação depende de como os tribunais se posicionarão sobre o assunto – o contexto de déficit fiscal pode fazer, eventualmente, com que o lado político acabe influenciando mais do que a análise jurídica da questão.
“Como a Receita Federal tem posicionamento expresso no sentido de limitar a aplicação do programa, ao arrepio da legalidade, entendemos que é recomendado que os contribuintes que pretendam incluir débitos com vencimento posterior a 30/11/2023 no programa de autorregularização adotem medidas judiciais preventivas”, avaliam os advogados do Vieira Rezende.
Na entrevista abaixo, Simão, Souza, Luppi e Bakkum comentam a questão.
– O que dizem a lei e a regulamentação do programa de autorregularização de tributos federais sobre quais dívidas tributárias podem ser incluídas? Tributos que vencem até o término da adesão ao programa (01/04/24) podem ser incluídos? Ou apenas tributos que já venceram e não foram pagos?
Rute Souza e Pedro Simão: A Lei nº 14.740/23 instituiu o programa de autorregularização incentivada que permite a quitação de tributos administrados pela Receita Federal do Brasil (RFB) com o afastamento das multas de mora e de ofício; a possibilidade de afastamento integral dos juros da mora e a possibilidade de utilização de prejuízo fiscal e precatórios para quitação parcial do principal.
Por meio do programa, os contribuintes deverão aderir à autorregularização em até 90 dias após a regulamentação da lei.
Se a lei for interpretada de maneira literal, poderão ser incluídos no programa tanto os débitos tributários federais que não tenham sido constituídos até a data de publicação da lei (30/11/2023), como aqueles que venham a ser constituídos entre a data de publicação da lei e o termo final do prazo de adesão, ou seja, 1° de abril de 2024. Dessa forma, apesar de ser incomum a denominada “regularização para frente”, a lei deixa brechas para a interpretação de possibilidade de inclusão de débitos constituídos até abril.
Bruna Luppi e Frederico Bakkum: De acordo com a Lei 14.740/2023 e com a Instrução Normativa 2.168/2023 da Receita Federal (IN RFB 2.168/2023), que instituiu e regulamentou, respectivamente, o programa de autorregularização tributária, podem ser incluídos no programa tributos que não tenham sido constituídos até 30 de novembro de 2023, inclusive em relação aos quais já tenha sido iniciado procedimento de fiscalização; e tributos constituídos no período entre 30 de novembro de 2023 até 1º de abril de 2024.
Em princípio, a Lei e a própria regulamentação indicam a possibilidade de inclusão de tributos com vencimentos até 01/04/2024, pois eles se enquadram no inciso II, §1º, do artigo 2º, da Lei 14.740/2023 e no inciso II, do artigo 3º da IN RFB 2.168/2023 (“tributos constituídos no período entre 30 de novembro de 2023 até 1º de abril de 2024”).
Entretando, a Receita Federal, por meio do “Perguntas e respostas” relativo ao programa, apresentou posicionamento no sentido de que apenas os tributos com vencimento até o dia 30/11/2023 seriam passíveis de serem incluídos no programa de autorregularização. O entendimento das autoridades fiscais é no sentido de que não há que se falar em autorregularização para o futuro, de modo que a lei deveria ser aplicada com essa limitação, cobrindo apenas débitos com vencimento até 30/11/2023.
Essa interpretação, contudo, carece de base legal, na medida em que não encontra amparo nem na legislação federal nem na própria regulamentação trazida pela própria Receita Federal do Brasil. Alguns contribuintes, inclusive, já vêm ajuizando medidas judiciais para afastar essa restrição imposta pela fiscalização e liminares foram deferidas pelo Poder Judiciário.
– Alguns contribuintes vêm obtendo liminares para incluir tributos ainda não vencidos no programa de autorregularização, visando pagá-los por meio de precatórios e prejuízos fiscais. Há bons fundamentos para esses pedidos dos contribuintes?
Rute Souza e Pedro Simão: Como a limitação temporal relativa aos débitos que poderão ser objeto de inclusão no programa não consta da Lei n° 14.740/23, do ponto de vista legal existe fundamento para os pedidos dos contribuintes. Além disso, importante destacar que apesar da RFB restringir a inclusão apenas de tributos que ainda não tenham sido declarados, cujo vencimento original seja até 30/11/2023, como a limitação ocorreu apenas pelo portal de “Perguntas e Respostas” do site da Receita Federal, os contribuintes também têm questionado que a informação lançada no portal da RFB não tem força de lei.
No entanto, é importante destacar que as razões e a motivação que levaram ao programa de autorregularização não eram essas, sendo possível que os argumentos dos contribuintes que estão ingressando no Judiciário não sejam aceitos.
Bruna Luppi e Frederico Bakkum: Apesar do posicionamento das autoridades fiscais e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de que não faria sentido falar em autorregularização para o futuro, fato é que a Lei não restringe o programa apenas a débitos vencidos até 30/11/2023. Se assim fosse, deveria estar expressamente previsto, mas essa restrição não foi aprovada no processo legislativo.
De fato, o texto final do programa expressamente autoriza a inclusão de “tributos constituídos no período entre 30 de novembro de 2023 até 1º de abril de 2024”, sem delimitar que apenas os tributos com vencimento até 30/11/2023 seriam passíveis de inclusão.
Com efeito, como nem a lei instituidora da autorregularização incentivada e nem mesmo a própria regulamentação da Receita Federal trouxeram essa restrição, entendemos que há bons fundamentos para que o referido programa possa ser aplicado inclusive em relação a tributos com vencimento até 01/04/2024.
– A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) alega que o programa é voltado para tributos vencidos e não pagos, e que não faz sentido aplicá-lo aos que ainda vão vencer. Esse argumento faz sentido?
Rute Souza e Pedro Simão: De fato, é comum que programas de regularização de débitos sejam voltados para tributos vencidos e não pagos. Usualmente, os programas de regularização de tributos federais estabelecem uma data limite de constituição dos débitos abarcados pelo programa anterior.
O principal problema do atual programa previsto na Lei nº 14.740/23 é que a limitação não foi estabelecida por lei, pelo contrário, o programa prevê expressamente que a autorregularização aplica-se a “créditos tributários que venham a ser constituídos entre a data de publicação desta Lei e o termo final do prazo de adesão”.
Pode ser verificado, portanto, sem considerar outros aspectos, que as previsões legais relativas ao programa permitiriam a inclusão de débitos constituídos até abril de 2024.
Bruna Luppi e Frederico Bakkum: A nosso ver, a questão não é propriamente se o argumento faz sentido ou não, a questão é que esse argumento não encontra amparo na lei aprovada pelo Congresso Nacional. Tivesse o Congresso trazido essa restrição, não haveria dúvidas de que a limitação deveria ser observada, mas isso não ocorreu.
O fato de o programa ser de autorregularização não impede que seja realizado no futuro, dentro do período delimitado pelo legislador (30/11/23 a 01/04/2024). A interpretação da PGFN, nesse sentido, parece idealizar um texto legal que difere do que foi aprovado pelo Congresso Nacional. O que vale é o texto da lei que foi aprovada e não o texto idealizado pelas autoridades fiscais.
– A inclusão dos tributos a vencer no programa de autorregularização, determinada por liminar, pode ter vida longa ou essas liminares tendem a ser cassadas? O que se recomenda aos contribuintes: procurar o Judiciário para incluir tributos a vencer ou não?
Rute Souza e Pedro Simão: Existe sempre a possibilidade de revogação das liminares ou mesmo de reversão de decisões eventualmente favoráveis de mérito nas instâncias superiores.
A limitação temporal identificada apenas pelo portal de “Perguntas e Respostas” do site da Receita Federal deveria sim vir prevista em lei para que não houvesse essa lacuna de discussão.
De todo modo, o que precisa ficar claro para os contribuintes que optarem pela estratégia de ajuizamento de ações para permitir a inclusão no programa de créditos tributários constituídos até 01/04/2024 é a possibilidade de reversão da medida e a já sinalizada discordância pela fiscalização.
Bruna Luppi e Frederico Bakkum: Na nossa opinião, as liminares devem ser confirmadas, dado que a lei autoriza, de forma expressa, a inclusão de tributos ainda não constituídos até 30/11/2023 e de tributos que venham a ser constituídos entre 30/11/2023 e 01/04/2024, sem trazer qualquer vedação à inclusão de tributos com vencimento entre 30/11/2023 e 01/04/2024, desde que constituídos no prazo legalmente estabelecido.
A sua confirmação, naturalmente, depende de como os tribunais se posicionarão sobre o assunto, o que ainda não está claro, lembrando que o contexto de déficit fiscal pode fazer, eventualmente, com que o lado político acabe influenciando mais do que propriamente a análise jurídica da questão.
Como a Receita Federal tem posicionamento expresso no sentido de limitar a aplicação do programa, ao arrepio da legalidade, entendemos que é recomendado que os contribuintes que pretendam incluir débitos com vencimento posterior a 30/11/2023 no programa de autorregularização adotem medidas judiciais preventivas.