Como a CVM enxerga as Sociedades Anônimas do Futebol

Parecer de Orientação 41 destaca pontos das SAFs que merecem mais atenção

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As sociedades anônimas do futebol (SAF) ainda são recentes e em pequeno número, mas aos poucos vêm despertando interesse. Recentemente, o Atlético-MG se transformou numa SAF, juntando-se a uma lista que conta com Bahia, Botafogo, Coritiba, Cruzeiro, Cuiabá e Vasco. A expectativa é que o mercado de capitais passe a ser mais amplamente acessado por esses clubes – que podem emitir debêntures, debêntures fut, captar recursos por crowdfunding, certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) ou por meio de fundos de recebíveis (FIDC). Para pavimentar bem a estrada de acesso ao mercado, em agosto a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou o Parecer de Orientação 41.

O parecer traz orientações ao mercado e aos investidores sobre as principais características das SAF – que, apesar de serem sociedades anônimas, contam com peculiaridades na forma de constituição e na governança. Além disso, esclarece sobre a forma de acesso ao mercado de capitais pelas SAF e como a CVM enxerga essas companhias.

“A iniciativa da CVM é muito positiva, uma vez que a expectativa é que a participação da SAF no mercado de capitais seja de grande impacto no setor futebolístico e na economia, pelo potencial de geração de emprego e renda no país”, avaliam Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues, sócia e associada do Carneiro de Oliveira Advogados.

No Parecer de Orientação 41, a CVM trouxe alguns pontos de preocupação relacionados às SAF. Como o futebol desperta grandes paixões, um dos pontos de atenção se refere à linguagem adotada nas ofertas públicas de produtos de investimento que venham a ser feitas pelas SAFs. Devido à atividade fim da SAF e ao possível envolvimento emocional do investidor-alvo da oferta, é de extrema importância que as ofertas públicas tenham em seus esforços de distribuição uma linguagem serena e moderada, sendo utilizada com cautela qualquer linguagem promocional – destacam Celso Contin e Helena Guimarães, sócios do Vieira Rezende Advogados, e os associados Thomaz Veiga, Leonardo Cardoso e Bruno Ett Bícego.

Pontos de atenção do Parecer de Orientação 41 da CVM

Os advogados do Vieira Rezende esclarecem que outros pontos ressaltados no parecer foram o acompanhamento da posição acionária dos investidores da SAF e a  divulgação de informação. A Lei das SAF estabeleceu limites e vedações à participação societária por um mesmo investidor em mais de uma SAF, e a CVM reforçou a importância de a própria companhia ser diligente para verificar o cumprimento desses limites e proibições. Sobre a divulgação de informação, e tendo em vista o enorme desafio que é lidar com a enorme quantidade de notícias e boatos diariamente veiculados sobre futebol e seus clubes, a CVM deixou claro no parecer que não espera que as SAF e seus administradores se manifestem sobre qualquer notícia ou boato – a manifestação será necessária apenas se a informação for considerada relevante, conforme os  parâmetros trazidos pela Resolução 44/2021.

Na entrevista abaixo, as advogadas do Carneiro de Oliveira e os advogados do Vieira Rezende abordam as peculiaridades das SAF e os principais pontos do Parecer de Orientação 41 da CVM.


– Comparando as sociedades anônimas em geral com as sociedades anônimas do futebol (SAF), quais são as principais diferenças entre as duas, do ponto de vista legal?

Celso Contin, Helena Guimarães, Thomaz Veiga, Leonardo Cardoso e Bruno Ett Bícego: A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) nada mais é que um subtipo das Sociedades Anônimas, regidas pela Lei nº 6.404/76 (Lei das S.As). As SAF foram criadas e são regidas pela Lei nº 14.193/21 (Lei das SAF), com aplicação subsidiária da Lei das S.A. Da leitura da Lei das SAF, notam-se três diferenças significativas em relação às S.As, sendo estas: a constituição do capital social da SAF; os limites impostos ao controlador e acionista relevante; e a governança da SAF.

Em relação à constituição, a Lei das SAF determina que uma SAF somente poderá ser constituída nas seguintes hipóteses: transformação do clube ou da pessoa jurídica original em SAF; em razão da cisão do futebol do clube ou da pessoa jurídica original; ou pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento. Sobre os limites impostos ao controlador da SAF, há vedação expressa que este venha a obter participação, mesmo que minoritária, de forma direta ou indireta, em outra SAF. E, no caso do acionista relevante (aquele que detém mais de 10% do capital social da SAF), há vedação a voto caso detenha participação em outra SAF.

Por fim, sobre a governança da SAF, dois tópicos chamam maior atenção. Em primeiro lugar, a existência de classe de ação ordinária privativa ao clube/pessoa jurídica originária que lhe assegura poder de veto, mediante voto afirmativo, em determinadas matérias, tais como a alteração da denominação, alteração de símbolos e marca e a mudança da sede da sociedade para outro município. O segundo tópico diz respeito à composição da administração da SAF, que deve obrigatoriamente ter conselho de administração e conselho fiscal. Além disso, não podem ser membros da administração da companhia:

  • membros da administração de outras SAF;
  • membro de órgão de administração de entidade de administração (a Lei das SAF define como sendo: confederação, federação ou liga, que administra, dirige, regulamenta ou organiza competição profissional de futebol);
  • atletas profissionais com contratos vigentes;
  • treinador de futebol com contrato vigente; e
  • árbitro de futebol em atividade.

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: As Sociedades Anônimas do Futebol (SAF) foram introduzidas pela Lei nº 14.193/21 (Lei da SAF), a qual abordou temas específicos relacionados à constituição, controle acionário, governança corporativa, transparência e meios de financiamento das SAF. De forma geral, a Lei da SAF não dispõe sobre normas gerais já tratadas pela Lei nº 6.404/76 (Lei das S.As), fazendo com que a SAF se revele como uma espécie de sociedade anônima, a qual é regida subsidiariamente pela Lei das S.As.

Dentre as principais diferenças entre as sociedades anônimas em geral e as SAF, destacamos as seguintes:

  • Constituição: As SAF podem ser constituídas mediante: transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; e iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
  • Ações de Emissão da SAF: Enquanto nas companhias abertas em geral é proibida a emissão e manutenção de mais de uma classe de ações ordinárias, com exceção à adoção do voto plural, as SAF devem emitir obrigatoriamente ações ordinárias da classe A para subscrição exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, sendo possível a emissão de outra classe de ações ordinárias para subscrição por outro tipo de acionista.
  • Governança Corporativa: Nas SAF, o conselho de administração e o conselho fiscal são órgãos de existência obrigatória e de funcionamento permanente. Diferente do que prevê a Lei das S.As com relação à composição de tais órgãos, a Lei da SAF não qualifica seus membros, mas estabelece certas vedações.
  • Controle Acionário: Diferentemente do que ocorre em sociedades anônimas em geral, o acionista controlador de uma SAF não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF. Se um acionista detiver mais de 10% das ações votantes de uma SAF e, concomitantemente, for titular de qualquer número de ações de outra SAF, o referido acionista não terá direito a voz ou voto nas assembleias gerais de todas essas sociedades e não poderá atuar em suas administrações.

– O Parecer de Orientação 41 da CVM trouxe esclarecimentos importantes sobre as SAFs? De que forma ele pode ajudar esse mercado a se desenvolver?

Celso Contin, Helena Guimarães, Thomaz Veiga, Leonardo Cardoso e Bruno Ett Bícego: O Parecer de Orientação 41 da CVM teve como objetivo introduzir o conceito e as características de uma SAF e como os meios de financiamento existentes no mercado de capitais podem ser utilizados para o desenvolvimento das SAF. Por meio do Parecer, a autarquia aproveita para reforçar que as SAF que decidirem se registrar como emissoras de valores mobiliários estão sujeitas aos seus atos normativos, em especial às Resoluções CVM nº 80 e CVM nº 160.

Sobre o financiamento das SAF por meio do mercado de capitais, a CVM aborda de forma geral as modalidades de investimento mais comuns à poupança popular para a captação de recursos do emissor. Para tal, cita a emissão de títulos de dívida, em que se destaca a debênture-fut criada especialmente para as SAF ou por meios mais tradicionais, como os investimentos por meio de crowdfunding ou fundos de investimento.

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: O Parecer de Orientação CVM nº 41, de 21 de agosto de 2023 (Parecer de Orientação 41) foi editado com o objetivo de apresentar orientações iniciais ao mercado e aos investidores sobre as principais características da SAF, a forma de acesso ao mercado de capitais pelas SAF, além de estabelecer o entendimento e o papel da CVM com relação à disciplina das SAF que sejam companhias abertas e à interpretação da Lei da SAF sob a visão do mercado de valores mobiliários.

Nesse sentido, o Parecer de Orientação se antecipou com relação ao esperado movimento de acesso de tais sociedades ao mercado de capitais, esclarecendo aspectos relevantes que contribuem para uma maior segurança ao mercado e aos investidores com relação às SAF, incentivando investimentos e criando oportunidades para as novas demandas e ofertas de produtos relacionadas à atividade futebolística. A iniciativa da CVM é muito positiva, uma vez que a expectativa é que a participação da SAF no mercado de capitais seja de grande impacto no setor futebolístico e na economia, pelo potencial de geração de emprego e renda no país.


 – Quais devem ser os principais pontos de atenção da CVM com relação às SAFs que se tornarem companhias abertas?

Celso Contin, Helena Guimarães, Thomaz Veiga, Leonardo Cardoso e Bruno Ett Bícego: A CVM, por meio do Parecer de Orientação 41, aproveitou para apontar ao mercado seus pontos de preocupação com as SAFs que decidam buscar recursos junto à poupança popular, pedindo atenção destas nos seguintes tópicos: acompanhamento da posição acionária de seus investidores, divulgação de informação e linguagem adotada na oferta pública.

Como previamente comentado, a Lei das SAF estabeleceu limites e vedações à participação societária por um mesmo investidor em mais de uma SAF. A CVM aproveita o parecer para reforçar que será importante que a própria companhia seja diligente para verificar se há ou não alguma violação à Lei das SAF nesse sentido.

Sobre a divulgação de informação, a CVM reconhece o desafio que está sendo posto em relação à divulgação de informações relevantes, tendo em vista a cobertura midiática do futebol em nosso país, que diariamente envolve uma quantidade significativa de informações, notícias, relatos e boatos. Por esse motivo, a CVM deixa claro no parecer que não espera que as SAF e seus administradores se manifestem sobre qualquer notícia ou boato que venha a surgir, devendo se manifestar apenas se a informação for considerada relevante utilizando os parâmetros presentes no artigo 2 da Resolução CVM nº 44/2021.

Por fim, a autarquia aponta que, devido à atividade fim da SAF e o possível envolvimento emocional do investidor-alvo da oferta, é de extrema importância que as ofertas públicas tenham em seus esforços de distribuição uma linguagem serena e moderada, sendo utilizada com cautela qualquer linguagem promocional.

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: A CVM destaca dois principais pontos de atenção no Parecer de Orientação 41 com relação às SAF que se tornarem companhias abertas: as publicações obrigatórias e a transparência de informações; e a divulgação de comunicados ao mercado e fatos relevantes.

As SAF que se tornarem companhias abertas devem respeitar as normas específicas previstas na Lei da SAF e as normas gerais previstas na Lei das S.As referentes às publicações legais, além da regulamentação vigente aplicável às companhias abertas. Dessa forma, as obrigações da Lei da SAF, Lei das S.As e da CVM se acumulam, com exceção às normas especificamente direcionadas às SAF que se sobreponham às demais, tal como a possibilidade da SAF com receita bruta anual de até R$ 78 milhões realizar todas as publicações obrigatórias por lei de forma eletrônica.

Além disso, a CVM ressaltou o desafio que deverá ser superado na definição, no âmbito das SAFs, das informações relevantes objeto de divulgação ao mercado. Como regra geral, as SAF que serão companhias abertas estarão sujeitas as normas contidas na Resolução CVM nº 44/2021, que atualmente regulamenta a divulgação de informações sobre ato ou fato relevante e a divulgação de informações sobre a negociação de valores mobiliários pelas companhias abertas.

Entretanto, é importante considerar que a atividade futebolística é acompanhada por jornalistas, influenciadores digitais, torcedores e outras pessoas que geram e compartilham de forma diária uma quantidade relevante de informações sobre o segmento. Observa-se que, em outras jurisdições, companhias abertas que atuam com a atividade de futebol não divulgam todas matérias ou notícias envolvendo seus interesses.

Sendo assim, a CVM não espera que seja divulgada ou comunicada ao mercado qualquer informação objeto de notícia produzida por agentes no âmbito esportivo, mas exigirá que seja realizada uma ponderação na avaliação dos atos e fatos que possam influir: na cotação dos valores mobiliários da SAF; na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; ou na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição titular de valores mobiliários emitidos pela SAF.

Adicionalmente, um tema importante é que os torcedores que querem contribuir com seu time do coração estejam cientes dos riscos envolvidos ao acessar o mercado de capitais, razão pela qual a redação e a forma de apresentação de fatores de risco nos prospectos de ofertas foi indicada no parecer como tema de extrema relevância.


– Há expectativa de que as SAFs acessem o mercado de capitais em um horizonte não muito distante? Quais seriam os empecilhos para tanto? 

Celso Contin, Helena Guimarães, Thomaz Veiga, Leonardo Cardoso e Bruno Ett Bícego: Com base na Lei das SAF e no regime vigente das companhias em geral, as SAFs podem acessar o mercado de capitais de várias formas para o financiamento de suas atividades, como a abertura de capital e a realização de oferta pública de ações.

Conforme já mencionado, as SAF ficam sujeitas às mesmas normas aplicáveis às companhias abertas em geral, além da regulamentação específica aplicável, como a Resolução CVM nº 80 e a Resolução CVM nº 160.

Outrossim, a Lei das SAF permite a emissão das “debêntures-fut”, uma espécie de debêntures cujos recursos captados devem ser alocados no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades típicas da SAF. Vale mencionar que as SAFs podem emitir debêntures tradicionais, não previstas especificamente na Lei da SAF, desde que cumpram os requisitos necessários conforme a regulamentação vigente.

As SAFs também podem captar recursos via plataforma eletrônica de investimento participativo, conhecidas como crowdfunding, nos termos da Resolução CVM nº 88. As ofertas de crowdfunding possibilitam o acesso ao mercado de capitais de forma simplificada e com redução de custos. No entanto, é importante notar que existem limites estipulados para essas ofertas, como um alvo máximo de captação anual de R$ 15 milhões, sendo que as SAF devem ter um teto de receita bruta anual de R$ 40 milhões. Por conta deste limite, e considerando que suas receitas superam esse valor, a grande maioria dos clubes da elite do futebol brasileiro encontrará dificuldades para realizar o financiamento via crowdfunding.

Outra maneira de as SAFs captarem recursos é por meio das operações de securitização, por meio de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), que permitem que as SAF utilizem os recursos captados para a aquisição, construção ou reforma de estádios, alojamentos e outras instalações necessárias, ou ainda para o pagamento de aluguéis futuros ou quitados dentro dos últimos 24 meses.

No âmbito do mercado de capitais, as SAFs podem obter recursos junto a fundos de investimento. Por exemplo, Fundos de Investimento Imobiliário (FII) podem ser um veículo para aquisição de CRI lastreado em ativos da SAF ou, ainda, os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCS) podem participar de operações de cessão de direitos creditórios das SAFs.

Vale notar que a Lei das SAF determina a necessidade de instituição de um Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), para promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol. Nesse sentido, o Parecer destaca que instrumentos nos mercados de capitais utilizados para captar recursos que tenham por fim o financiamento dos referidos PDEs podem ser considerados como investimentos de impacto como “ASG” ou ainda qualquer termo correlato a “finanças sustentáveis”.

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: Atualmente, as atividades futebolísticas têm pouco acesso ao mercado de capitais, o qual é limitado a emissão de instrumentos de antecipação de recebíveis. Com a entrada em vigor da Lei da SAF e a edição do Parecer de Orientação 41, além de todos os estudos e incentivos formulados sobre o tema, a expectativa é que as SAF sejam introduzidas no mercado de capitais em um futuro próximo.

No entanto, apesar da mobilização, trata-se de um assunto muito recente que ainda está sujeito à discussão e evolução. Na medida em que as oportunidades com relação ao assunto forem se desenvolvendo, será inevitável o ingresso e crescimento relevante das SAF no mercado de capitais.


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