Apesar de favorável a contribuintes, Receita gera incerteza

Solução de consulta sobre tributação da importação de softwares abre margem para diferentes entendimentos

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Mesmo que benéfico para o contribuinte, um saldo de incerteza e insegurança jurídica resultou do primeiro esclarecimento da Receita Federal sobre a tributação de softwares importados. A manifestação veio após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou que os softwares devem ser tributados pelo imposto sobre serviços (ISS).

O posicionamento consta da Solução de Consulta nº 75, que orienta a atuação dos fiscais. A Solução prevê que, ao adquirir ou renovar a licença para uso de softwares padronizados (também conhecidos como de prateleira) para uso próprio, será devido 15% de imposto de renda retido na fonte (IRRF). Se a importação for de país com tributação favorecida (paraíso fiscal), a alíquota sobe para 25%. A Receita considerou que o IRRF é devido porque o pagamento a esses softwares é considerado como uma remuneração por direito autoral (royalty) e não de pagamento de serviço.

Em recente decisão (ADI n° 5.659/MG), o STF entendeu que toda contratação de licenças de uso de software será tributada pelo imposto sobre serviços (ISS), e não pelo imposto sobre circulação de mercadorias, o ICMS (o que ocorria quando os softwares eram considerados como mercadorias, ou softwares de prateleira). No julgamento, a Corte entendeu que softwares por encomenda se equiparam aos de prateleira, e que ambos devem pagar o ISS.

Os advogados divergem com relação à Solução de Consulta da Receita. Caio Persici, associado do Vieira Rezende Advogados, explica que a Receita sustentou que os softwares são conteúdos intelectuais, protegidos pelo direito autorial, e que não há venda de software nem mesmo nos casos de renovação de licença de direito de uso a terceiro. “Esse entendimento está alinhado com as decisões do Supremo sobre o assunto, bem como com a lógica constante na Solução de Consulta nº 36/2023, publicada em fevereiro de 2023, que afirma que as atividades de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador padronizados ou customizados em pequena extensão serão consideradas como serviços.”

Já para Thiago Braichi e Anna Laura Lacerda, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados, o posicionamento da Receita diverge daquele do STF, já que a autarquia entendeu que o pagamento ao exterior para aquisição ou renovação de licença de uso de software caracterizam royalties, enquanto a Corte entendeu que a contratação de licenças de uso de software será tributada pelo ISS – por ter a natureza de serviços.

Apesar de considerarem que o entendimento da Receita é mais benéfico para o contribuinte, já que a tributação será superior se for referente a serviço, Baichi e Lacerda apontam para a situação de grande insegurança jurídica criada: “Não apenas quanto ao próprio entendimento da Receita Federal (que vem variando ao longo dos anos), mas também pelo contribuinte ficar sujeito à aplicabilidade de dois entendimentos distintos pelas autoridades judiciária e administrativa, sob a discricionariedade de quem auditar suas atividades, sem modo de se resguardar.” Para eles, é necessário que a Receita reavalie a Solução de Consulta nº 75 para torná-la alinhada ao entendimento do STF.

Para Persici, apesar de a norma ser coerente com a decisão do STF, e considerando que ela não abordou os demais tributos incidentes sobre pagamentos devidos a título de royalties para exterior, outras situações devem ser analisadas de forma criteriosa pelos contribuintes, como as importações envolvendo licenciamento de Software as a Service (“SaaS”) que eram até então tratadas pelas autoridades fiscais como serviços técnicos e não royalties.

Na entrevista abaixo, Persici, Braichi e Lacerda abordam a questão e os diferentes entendimentos da Receita Federal sobre a tributação de softwares.


– O que a Solução de Consulta nº 75 trouxe de novo a respeito da tributação de softwares do exterior?

Caio Persici: A Solução de Consulta nº 75  é a primeira envolvendo licenciamento de uso de software importado após o posicionamento do STF nas ADIsnº 1.945 e ADI nº 5.659 e entende que os valores pagos ou remetidos ao exterior à título de pagamento por licenciamento de software padronizado para uso exclusivo (sem distribuição nacional a terceiros) serão considerados como remuneração por direito autoral (royalty) para fins da incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), submetendo-se, em regra, à alíquota de 15%, salvo quando o beneficiário for residente ou domiciliado em país com tributação favorecida, hipótese em que a alíquota do IRRF será de 25%.

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: A Solução de Consulta nº 75 trouxe novo entendimento da Receita Federal quanto à natureza dos pagamentos remetidos ao exterior pela aquisição ou renovação de licença de uso de softwares e a tributação destes valores.

Seguindo parcialmente o entendimento do STF, no sentido de que não há diferença entre os softwares (padronizado ou personalizado) ou entre os meios de sua entrega, a RFB divergiu ao afirmar que as remessas têm natureza de royalties, e não de pagamentos pela prestação de serviço. Conforme novo entendimento da autarquia, as remessas serão tributadas pelo IR fonte à alíquota de 15%, ou 25% para países com tributação favorecida.

Vamos aguardar o posicionamento da Receita com relação ao posicionamento da Solução de Consulta às previsões da Instrução Normativa n° 2.123, também de 2023, que determina que serão dedutíveis da base de cálculo do IRPJ e da CSLL as despesas com royalties, exceto se pagos a países com regime tributário favorecido ou a parte relacionada, quando resultar em dupla não-tributação.


– De que forma a Receita Federal historicamente encarava a tributação de softwares “importados”?

Caio Persici: A Receita Federal do Brasil (RFB) diferenciava a tributação incidente na importação de softwares a depender da caracterização ou não do pagamento como mercadoria, como remuneração de direito autoral (royalty) ou como serviço.

Assim, nos casos de importação dos softwares de prateleira para uso próprio, a RFB entendia que, por se tratar de importação de mercadoria, o tratamento deveria ser mais benéfico e haveria incidência de imposto de renda retido na fonte (IRRF), entre outros tributos.

Já para os casos envolvendo remessas ao exterior para pagamento por licença para comercialização/ revenda dos softwares, o Fisco entendia que tais remessas, por serem caracterizadas como pagamento de royalty (haja vista a exploração de direito autoral) estariam sujeitas a incidência do IRRF; e, ainda, se o software a ser comercializado fosse um Software as a Service, além do IRRF, haverá a incidência da Cide à alíquota de 10%.

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: O entendimento da Receita Federal quanto a natureza das remessas para o exterior pela aquisição ou renovação da licença de uso de software nunca foi claro. Na própria argumentação da SC n° 75, o contribuinte traz relevantes entendimentos da Receita Federal sobre a tributação dos softwares importados, como a Solução de Consulta DISIT n° 6.014, que determinava que as remessas para o exterior pela aquisição ou renovação de licenças de uso de software, pelo próprio adquirente, e para uso próprio, não eram tributadas pelo IRRF.

A DISIT n° 6.014 está vinculada à Solução de Consulta n° 18 de 2017, que trata dos valores remetidos ao exterior pela aquisição de licença de software para comercialização ou distribuição. No relatório da SC n° 75, o Coordenador Geral explica que a DISIT n° 6.014 não poderia ter previsto a não incidência do IRRF sobre as remessas ao exterior pela aquisição de licença de software para uso próprio por aplicar interpretação contrario sensu à Solução de Consulta anterior, e por isso, não pode ser aplicada no caso analisado.

Além das normas citadas no texto da Solução de Consulta n° 75 de 2023, desde 2009 a Receita Federal tem considerado as remessas ao exterior para aquisição ou renovação de licenças de software, para uso próprio ou para comercialização ou distribuição, como royalties sujeitos à tributação pelo IRRF.


– A Solução de Consulta se alinha à decisão do STF sobre softwares de prateleira e por encomenda?

Caio Persici: Nessa consulta, em que pese o consulente ter buscado equiparar a licença de uso de software de prateleira às operações de compra e venda, a RFB sustentou que os softwares são conteúdos intelectuais, e logo, são protegidos pelo direito autorial, não havendo portanto venda de software nem mesmo nos casos de renovação de licença de direito de uso a terceiro, uma vez que a aquisição da licença de uso não concede ao usuário amplos direitos sobre o produto, sendo seu uso regulado pelos termos da licença do respectivo software.

Esse entendimento está alinhado com as decisões do Supremo sobre o assunto, bem como com a lógica constante na Solução de Consulta nº 36/2023, publicada em fevereiro de 2023, que afirma que as atividades de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador padronizados ou customizados em pequena extensão serão consideradas como serviços.

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: A decisão do STF na ADI n° 5.659/MG foi no sentido de, não somente, determinar a irrelevância da distinção entre software padronizado (“de prateleira”) e personalizado para fins de tributação, mas também para determinar que a contratação de licenças de uso de software será tributada pelo ISS, e não pelo ICMS. Por mais que o software tenha natureza de bem incorpóreo digital, é necessário levar em consideração o esforço humano em seu desenvolvimento, e por isso, deve ser configurada a obrigação de fazer, e não de dar, para fins tributários.

Aplicando o entendimento da Corte, na importação dos serviços seriam devidos o ISS, PIS-Importação, COFINS-Importação, IOF, Cide e IRRF. Quanto ao último (IRRF), importante entender de quem será a competência para cobrar o imposto, na aplicabilidade de determinados Tratados para Evitar a Dupla Tributação firmados pelo Brasil.

A RFB entendeu que os valores pagos ao exterior para fins de aquisição ou renovação de licença de uso de software caracterizam royalties, divergindo do entendimento do STF, e estão sujeitos ao IRRF à alíquota de 15%, ou 25% no caso de países com regimes tributários favorecidos. Além disso, os valores também estão sujeitos à incidência da Cide à alíquota de 10%, e IOF, na conversão de moedas.


– Em sua visão, há pontos na Solução de Consulta nº 75 que podem ser questionados pelos contribuintes? Em caso afirmativo, quais são eles?

Caio Persici: Apesar da Solução de Consulta ser coerente com o atual posicionamento do Supremo sobre a matéria, há reflexos em outras esferas que podem impactar diretamente os contribuintes que realizam essas operações.

A dedutibilidade das despesas com as remessas, por exemplo, considerando as limitações existentes à dedução dos pagamentos a título de royalties, pode ser relevante a depender do avanço da Medida Provisória nº 1.152/23 e sua conversão em Lei.

Além disso, considerando que a Solução de Consulta não abordou os demais tributos incidentes sobre pagamentos devidos a título de royalties para exterior, outras situações devem ser analisadas de forma criteriosa pelos contribuintes como as importações envolvendo licenciamento de Software as a Service (“SaaS”) que eram até então tratadas pelas autoridades fiscais como serviços técnicos e não royalties.

É importante que os contribuintes analisem cuidadosamente os impactos desse novo posicionamento das autoridades fiscais de modo a adequar suas práticas e assim evitar possíveis questionamentos.

Anna Laura Lacerda e Thiago Braichi: Nos parece que o entendimento proferido pela RFB, apesar de ir contra aquele proferido pelo STF, pode ser mais vantajoso para o contribuinte, no que tange ao pagamento de impostos e o valor do recolhimento.

No entanto, configura-se uma situação de grande insegurança jurídica. Não apenas quanto ao próprio entendimento da Receita Federal (que vem variando ao longo dos anos), mas também pelo contribuinte ficar sujeito à aplicabilidade de dois entendimentos distintos pelas autoridades judiciária e administrativa, sob a discricionariedade de quem auditar suas atividades, sem modo de se resguardar.

Entendemos ser necessária a convergência dos entendimentos do Supremo Tribunal Federal e da Receita Federal, mediante reavaliação do conteúdo da Solução de Consulta nº 75 de 2023


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