Teoria do conflito material de interesses ganha força

Colegiado vota pela absolvição de administradores da Smiles

0

Em caso recentemente julgado pelo colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a tese do conflito material saiu fortalecida. A discussão é se acionistas sob conflito de interesse deveriam ser impedidos a priori de votar (tese do conflito formal) ou se poderiam votar nas assembleias, comprovando de que o fizeram no melhor interesse da companhia (tese do conflito material). Foi esta segunda abordagem que prevaleceu no voto do colegiado, que absolveu os acusados de votarem sob conflito de interesse, em violação ao artigo 115 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76).

O caso tratado no Processo Administrativo Sancionador (PAS CVM 19957.008172/2021-93) se refere a votos proferidos sob potencial conflito de interesse durante uma Assembleia Geral Extraordinária (AGE), que foi convocada pela Smiles, sob pressão da gestora Esh Capital, para que os acionistas minoritários decidissem sobre a propositura de uma ação de responsabilidade civil contra os conselheiros de administração da Smiles, por prejuízos causados à companhia.

A gestora de recursos questionava contratos de adiantamento de passagens aéreas, sendo um deles no valor de 1,2 bilhão de reais, no qual a Smiles antecipou recursos para a Gol – que estava fortemente impactada pela pandemia – em condições consideradas pela gestora como fora do mercado. Por conta disso, a Esh liderou um movimento para emplacar a propositura da ação de responsabilidade contra os administradores da Smiles. Constantino de Oliveira Junior, Joaquim Constantino Neto e Ricardo Constantino eram, além de conselheiros de administração da Smiles, controladores da Gol, que controlava a Smiles. Durante a votação da AGE, os controladores votaram, como seria de se esperar, de forma contrária à propositura da ação de responsabilidade contra si mesmos.

O julgamento foi decidido em maio, quando o diretor relator Alexandre Rangel votou pela absolvição dos três – e foi seguido pelos diretores João Acciolly e Otto Lobo, assim como pelo presidente da CVM, João Pedro Nascimento. Mas a diretora Flávia Perlingeiro pediu vistas, interrompendo o julgamento e proferindo o seu voto no início de setembro, de forma favorável à condenação dos Constantino e ao pagamento de multa de 595 mil reais por parte de cada um.

Conflito material x Conflito formal

Em seu voto, Rangel considerou que as hipóteses de conflito de interesses (que constam do artigo 115 da Lei das SAs) devem ser interpretadas de acordo com a tese material, baseando-se no argumento de que a lei “conta com diversos outros dispositivos que confirmam a pertinência do conflito material, não sendo admitido o impedimento prévio de voto em temas tratados na parte final do §1° do art. 115; e (ii) a relevância estrutural do princípio majoritário e da presunção de boa-fé no ordenamento jurídico.” Para o diretor, há razões adicionais que pendem para o conflito material quando se trata de aplicar as ações de responsabilidade previstas no artigo 159 da Lei e cada caso deve ser analisado a posteriori, de acordo com a essência dos votos proferidos e dos interesses envolvidos. No caso em questão, Rangel entendeu que não houve voto contrário ao interesse social da Smiles.

Perlingeiro, por sua vez, lembrou que o artigo 115 da Lei das S.As proíbe o voto do administrador quando se trata de aprovar as suas próprias contas, fundamentando-se no princípio de que ninguém deve ser juiz em causa própria. Embora a lei não proíba expressamente que o controlador ou acionista vote quando se trata de decidir sobre a propositura de ação social de responsabilidade contra si próprio, para a diretora “a exegese que melhor mantém a sistematicidade e a coerência pretendidas pelo legislador é a de que o administrador se encontra, em tal hipótese, impedido de votar” (consulte aqui o voto de Perlingeiro). Isso porque o administrador, nessa situação, tem interesse pessoal na rejeição da matéria e não conta com a isenção necessária para votar no interesse da companhia. “Por certo, não há como o acionista-administrador separar os dois papéis que desempenha, da mesma forma como sucede na hipótese de aprovação das próprias contas, daí decorrendo a proibição apriorística de voto.”

Para ela, o argumento de que os votos deveriam ser permitidos e que os minoritários poderiam posteriormente, caso rejeitado em assembleia, mover a ação social de responsabilidade por conta própria (o que é permitido para aqueles que contam com 5% do capital social) “não se presta como justificativa para afastar a regra geral de impedimento do acionista-administrador para votar na deliberação relativa à ação de responsabilidade a ser proposta contra ele próprio”.

O Projeto de Lei 2.2925/23 propõe baixar o percentual necessário para a propositura de ações sociais de responsabilidade de 5% para 2,5% do capital social ou 50 milhões de reais em ações, o que, em tese, facilitaria que os minoritários movessem as ações – melhorando a tutela dos investidores e aumentando os riscos para os administradores.


Leia também

Mudança na Lei das S.As. prevê maior tutela de investidores

O que muda na Lei das Sociedades Anônimas

A polêmica exoneração de responsabilidades dos administradores

Dissolução de comitê independente da Smiles causa desconforto

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.