STF julga caráter de lista de serviços sujeitos ao ISS

Caso envolvendo instituição financeira e município de Maceió pode alterar cobrança do tributo em todo o País

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O Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando, desde 19 de junho, o recurso extraordinário (RE) 784.439, leading case do tema 296 da repercussão geral. No julgamento, os ministros decidirão se a lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/03 pode ou não ser interpretada de forma extensiva em relação a cada um dos seus itens — e, portanto, se incide imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) sobre eles.

O ISS é um tributo cobrado pelo município onde está o estabelecimento do prestador de serviços, conforme leis municipais, e geralmente é recolhido sob retenção na fonte: o tomador paga o imposto em nome do prestador, repassando a este o valor. As alíquotas podem variar entre 2% e 5% do preço, ficando a cargo de cada município estabelecer a taxa exata que será aplicada a cada serviço prestado em seu território. 

A regra geral do ISS, contudo, é delineada por lei complementar federal. O mecanismo é utilizado para que não haja situações de dupla cobrança ou conflitos de competência, afirma Alexandre Tadeu Navarro, sócio do Navarro Advogados. Segundo ele, o imposto incide sobre todas as prestações de serviços que já não sejam tributadas pelo imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), respeitando-se também a limitação decorrente da lista anexa à Lei Complementar 116/03.

A lista é composta de itens que descrevem naturezas de serviços e subitens que listam os serviços abrangidos por cada uma daquelas naturezas”, explica Tiago Severini, sócio do Vieira Rezende Advogados. O recurso extraordinário que está sendo julgado pelo STF se refere à cobrança de ISS sobre determinados serviços bancários não expressamente previstos na lista anexa à lei complementar. “O município sustenta a possibilidade de adoção de interpretação extensiva dos subitens relativos aos serviços relacionados ao setor bancário. Já a instituição financeira contribuinte alega se tratar de tentativa de tributação por analogia, pois os serviços sobre os quais o município vem exigindo o ISS não estão contidos na lista”, acrescenta.

O tema, entretanto, não se aplica apenas a serviços bancários. De acordo com Enrique Lewandowski, sócio do Amaral Lewandowski Advogados, o assunto é de interesse coletivo e, após julgado, deve ser aplicado a todos os casos correlatos. “O objeto do recurso extraordinário foi ampliado pelo STF, com o escopo de dirimir, em um único julgamento, a controvérsia relacionada à possibilidade da ampliação interpretativa de serviços sujeitos ao ISS”, destaca.

A seguir, Navarro, Severini e Lewandowski, além de Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, e Luis Nankran, sócio do Nankran & Mourão Sociedade de Advogados, comentam os principais pontos do julgamento e as suas possíveis repercussões para a cobrança do ISS.


O ISS está no cerne da discussão em torno do recurso extraordinário (RE) 784.439, em julgamento no STF. Quais os principais pontos desse recurso?

Braichi: O pano de fundo do RE 784.439 é a discussão de um caso relacionado à incidência de ISS sobre a prestação de determinados serviços bancários incluídos por analogia como parte da lista de serviços do Decreto-lei 406/18, legislação em vigor anteriormente à Lei Complementar 116/03. O recurso, porém, foi apontado como leading case — em sede de repercussão geral — para discussão da taxatividade da lista de serviços estabelecida na lei complementar, galgando assim proporções mais amplas.

Navarro: O RE 784.439 é o leading case para o tema de repercussão geral 296, em aberto no STF desde meados de 2013. O principal ponto sob análise e discussão é a taxatividade da lista de serviços a que se refere o inciso III do artigo 156 da Constituição Federal. O recurso extraordinário discute a possibilidade de cobrança do ISS sobre alguns serviços bancários na disputa entre o extinto Banco Sudameris e o município de Maceió. Os serviços não constam expressamente na lista. Do recurso extraordinário decorreu a abertura da repercussão geral sobre a tese da taxatividade, a fim de que o STF estabeleça o critério de interpretação da previsão constitucional não só em relação aos serviços bancários que foram objeto do processo original, mas de um modo geral.


O STF deve decidir se as atividades elencadas na lista anexa de serviços sujeitos ao ISS têm caráter taxativo ou exemplificativo. Na prática, o que isso significa? Quais as principais diferenças entre as duas interpretações?

Lewandowski: Conforme estabelece a Constituição, é a lei complementar que determina os serviços que poderão ser tributados pelos municípios por meio do ISS. A norma, entretanto, é objeto de interpretações díspares e tem termos com considerável grau de indeterminação. Diversos itens do rol de serviços a serem tributados vêm acompanhados, ao final, das expressões “congêneres” e “demais atividades”, o que não confere certeza sobre quais são os serviços que de fato estarão sujeitos ao ISS.

Severini: O STF, em tese, teria três possibilidades: tratar a lista anexa como taxativa, considerá-la exemplificativa ou preservar o entendimento misto que até então vem sendo adotado (taxatividade vertical e exemplificatividade horizontal). Esse entendimento misto oferece segurança jurídica apenas relativa, porque, ao menos com base na taxatividade vertical, veda a cobrança do imposto sobre serviços cuja natureza sequer está prevista nos itens da lista anexa à Lei Complementar 116/03. Mas ele assegura maior proteção para os municípios contra casos de simulação, em que a efetiva natureza de um serviço pode ser “disfarçada” pelo contribuinte por meio de outra nomenclatura ou em formato de cobrança.

Navarro: O STF deverá firmar a posição quanto à necessidade absoluta de inclusão expressa e objetiva de cada serviço na lista, ou estabelecer quais critérios de interpretação possibilitariam uma leitura mais abrangente e extensiva dos serviços potencialmente sujeitos à incidência do ISS, sem a taxatividade dura. A principal diferença, portanto, está relacionada à quanto à rigidez de interpretação: taxativa versus exemplificativa. 

Muito além do espectro dos serviços bancários, a decisão do STF terá brutal impacto sobre os serviços digitais e as novas tecnologias, que criaram numerosas formas de disponibilização de serviços, normalmente sem interferência humana. Eles ainda estão numa zona cinzenta quanto à possibilidade de tributação.

Nankran: Na prática, o caráter taxativo significa que a cobrança do ISS está restrita às hipóteses de serviços expressamente definidos em anexo à lei complementar. O caráter exemplificativo da lista significa que o tributo pode ser cobrado de outros serviços para além daqueles especificados na lista.

Braichi: Estabelecer que a lista de serviços da Lei Complementar 116/03 tem caráter taxativo significa dizer que só poderá haver cobrança de ISS sobre os serviços expressamente previstos na lista, sem margem para interpretações, analogias ou outros tipos de ampliação da hipótese de incidência. Por outro lado, se o STF decidir que a lista de serviços da Lei Complementar 116/03 é exemplificativa, o raciocínio é o oposto: a lista de serviços pode ser utilizada como uma referência para fins de cobrança de ISS, mas as hipóteses de incidência não se esgotam nessa lista. Consequentemente, poderiam ser aplicadas interpretações para ampliação do rol de serviços, tal como a analogia utilizada no caso dos serviços bancários.


A Procuradoria-Geral da República (PGR), entidades (como a Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais) e os próprios contribuintes já se manifestaram sobre o caso. O que têm dito as diferentes categorias?

Nankran: A Procuradoria-Geral da República manifestou parecer a favor da cobrança do ISS sobre serviços não especificados, desde que pertençam a algum gênero de serviço já previsto em lista anexa à lei complementar. As associações e os contribuintes, por outro lado, defendem que a cobrança do ISS não pode ter nenhuma interpretação extensiva nem analógica pelos municípios, por usurpar a competência prescritiva do legislador complementar. Com isso, os municípios devem restringir a cobrança do ISS aos serviços especificamente descritos na lista anexa.

Braichi: A PGR apresentou parecer em defesa do caráter taxativo da lista de serviços da Lei Complementar 116/03. A interpretação proposta pela PGR inclui serviços não expressamente listados, mas cujas características são inerentes às de serviços listados na lei.

Já para a Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais, interessada em defender, é claro, os interesses dos municípios, a lei complementar teria caráter meramente exemplificativo. Ela apenas estabeleceria as regras gerais da tributação pelo ISS, sendo possível conceder ao ente municipal a competência para detalhar os serviços sujeitos à incidência do imposto.

Finalmente, do lado dos contribuintes, argumenta-se que a expansão dos serviços sujeitos à incidência do ISS por meio da legislação dos entes municipais violaria a competência do legislador complementar, em ofensa ao artigo 156, inciso III da Constituição Federal, de modo a tributar fatos geradores não previstos em lei, além de contribuir com um cenário de muita insegurança jurídica.

Severini: As categorias de contribuintes em geral têm defendido o reconhecimento da ampla taxatividade da lista, sem que, portanto, seja admitido caráter exemplificativo aos subitens. Já a PGR pontuou que o reconhecimento da taxatividade da lista não afasta a necessidade de interpretação no caso concreto, de modo a se aferir as efetivas características do serviço prestado, em detrimento da nomenclatura eventualmente utilizada. Dessa forma, reforça que, ainda que a taxatividade pleiteada pelos contribuintes seja reconhecida, ela não será capaz de equacionar ou resolver em favor dos contribuintes todas as discussões de casos concretos envolvendo a interpretação quanto ao enquadramento de serviços prestados nas categorias de serviços previstas na lista anexa à Lei Complementar 116/03.


Qual é a expectativa em relação à decisão do STF? Ela terá caráter definitivo?

Lewandowski: As decisões proferidas pelo STF em sede de repercussão geral têm efeito vinculante — ou seja, se impõem a todo o Poder Judiciário. Dessa forma, ao julgar o RE 784.439, a Suprema Corte sentenciará definitivamente a controvérsia da taxatividade (ou não) do rol de serviços tributáveis constantes na lista anexa à Lei Complementar 116/03, questão de ampla relevância nacional, a qual afetará substancialmente o setor de serviços no País. Ademais, decerto a decisão impactará outras questões de singular importância envolvendo o ISS — como é o caso do RE 688.223 (Tema 590), com repercussão geral reconhecida, que discute a incidência do imposto sobre contratos de licenciamento ou de cessão de programas de computador (softwares) desenvolvidos para clientes de forma personalizada.

Nankran: A expectativa é de que o STF mantenha o posicionamento histórico sobre a questão, no sentido de preservar o caráter taxativo da lista anexa de serviços sujeitos ao ISS. Seja qual for o resultado, a tese que for fixada no julgamento do RE 784.439 terá efeitos vinculantes para todo o Poder Judiciário, tendo em vista sua afetação à sistemática da repercussão geral. A decisão certamente vai impactar outras importantes discussões sobre a cobrança do ISS, como o conflito de competências entre os estados e os municípios.

Severini: A expectativa é de que o STF confirme a taxatividade da lista, mantendo, porém, alguma abertura interpretativa — seja por meio da chamada exemplificatividade horizontal, seja com fundamento no próprio Código Tributário Nacional (CTN), conforme sustenta a PGR em sua manifestação. Entendo que a decisão não terá caráter definitivo, justamente em razão da necessidade de aferição, no caso concreto, da adequação das efetivas características de cada serviço prestado a alguma das naturezas descritas na Lei Complementar 116/03.

Braichi: Por se tratar de tema reconhecido em sede de repercussão geral, a decisão do STF deve transcender os interesses das partes do processo, vinculando todo o Poder Judiciário e terceiros que eventualmente tenham interesse no mesmo tema. A discussão interessa a diferentes setores da economia. Um dos que mais poderá ser afetado pelo eventual desfecho do julgamento é o de tecnologia. Ele cresce exponencialmente tanto em termos de dimensão econômica e financeira quanto de sofisticação dos produtos e serviços oferecidos. Acontece que a legislação brasileira não avança a passos largos como o setor, o que gera uma grande insegurança jurídica para os contribuintes. A esperança é que a decisão do STF se preste a conferir maior segurança jurídica e embasamento para todos os envolvidos. Se de um lado a decisão poderá ser considerada como definitiva após o seu trânsito em julgado, de outro existem ainda diversas pautas no STF envolvendo discussões sobre a incidência de ISS.

Navarro: As decisões do STF sobre os temas definidos para repercussão geral devem — em tese — ter o caráter mais definitivo possível, exatamente para firmar uma posição que afetará todas as demais decisões e processos nas outras instâncias do Judiciário, criando estabilização da jurisprudência e maior segurança jurídica. Porém, a história nos mostra que essa estabilidade não é tão firme assim, podendo oscilar ao sabor de mudanças de composição da Suprema Corte ou de impulsos políticos momentâneos. Esse tema, entretanto, dado o caráter bastante técnico e a longevidade da discussão, tende a ter uma decisão com efeito mais perene, desde que haja clareza em relação a uma ou outra tese. Se a decisão do STF seguir a sugestão da PGR, será de uma inutilidade absoluta, pois não porá fim à discussão. Fim de processo só é fim de discussão quando a decisão assume a responsabilidade de escolher clara e objetivamente entre as soluções possíveis, sem se esconder nos salomonismos e pilatianismos.

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