Decisão do STF apresenta conta de R$ 10 bilhões para empresas

Corte entende que Difal do ICMS é devida desde abril de 2022

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As empresas terão que pagar uma conta estimada em 10 bilhões de reais em decorrência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela se refere ao diferencial de alíquotas do ICMS (Difal do ICMS), cuja cobrança foi autorizada a partir de 5 abril de 2022, afetando os contribuintes que não efetuaram os recolhimentos desde a data. Ainda que advogados considerem possível uma mudança no entendimento da corte, acreditam que ela é pouco provável e recomendam que os contribuintes se preparem para efetuar o pagamento.

A questão surgiu após a publicação da Lei Complementar 190/22 (LC 190/22), ocorrida em 5 de janeiro de 2022, e que regulamentou a cobrança do imposto. O Difal do ICMS se relaciona a operações de compra e venda de mercadorias quando o fornecedor e o consumidor estão em diferentes Estados. Ele é o diferencial entre a alíquota interna do estado de destino da mercadoria e a alíquota interestadual aplicada. Após a publicação da lei, iniciou-se uma discussão sobre quando os Estados poderiam cobrá-lo (o debate girou em torno da chamada anterioridade, que é um princípio que trata da previsibilidade da cobrança de tributos). A LC 190/22 previa as anterioridades anual (a cobrança só poderia ocorrer no ano seguinte à publicação, ou seja, em 2023) e nonagesimal (prazo de 90 dias, após a publicação da lei, para o início de sua cobrança).

Para os Estados, a cobrança poderia vir sem a necessidade da anterioridade. Para os contribuintes, a cobrança seria devida apenas em 2023 porque se trataria de uma nova obrigação tributária, já que, nesse caso, o Difal se aplica àqueles consumidores que não eram contribuintes.

Estes recorreram ao Judiciário para evitar a cobrança imediata do imposto – muitos conseguiram liminares para tanto, mas que foram cassadas pelos tribunais. O julgamento foi iniciado no plenário virtual do STF de forma favorável ao contribuinte, mas depois passou para o plenário físico, onde foi concluído de forma desfavorável. O STF entendeu que o Difal do ICMS não era um tributo novo e que tampouco foi elevado – cenário em que a anterioridade não seria necessária. No entanto, e embora tenha considerado que não era obrigatório, a corte acabou decidindo pela anterioridade nonagesimal (por isso, a cobrança do imposto seria devida após 05/04/2022). O entendimento da corte, no entanto, esteve longe da unanimidade: foram seis votos a favor da cobrança do Difal do ICMS a partir de 5 de abril de 2022, respeitada a anterioridade nonagesimal, e cinco contrários.

O que a Lei Complementar 190/22 prevê

“A decisão não foi a mais acertada. A Constituição prevê que lei complementar disporá sobre normas gerais em matéria tributária, e a Lei Kandir não definia todos os aspectos necessários para a cobrança do Difal, tanto é que o próprio STF fixou tese de que a cobrança do Difal dependeria de lei complementar, e não de convênio. Somente com a LC 190/22 é que esses aspectos passaram a ser expressamente previstos em lei complementar, não havendo que se falar na cobrança com base unicamente em leis estaduais”, avaliam Pedro Simão e Sávio Hubaide, sócio e associado do Freitas Ferraz Advogados. Para eles, as leis estaduais não poderiam ser validadas antes da edição da lei complementar. “Por isso, não reconhecer que a LC 190/22 realmente instituiu nova hipótese de incidência tributária significa o mesmo que ignorar as disposições contidas em seu próprio texto, as quais trouxeram aspectos essenciais à própria incidência do Difal, e, portanto, deveria ser observada a regra da anterioridade anual.”

A visão do Vieira Rezende Advogados é semelhante. “Em nossa avaliação, a decisão ignora a disposição expressa contida na LC 190/22 que previa o cumprimento à anterioridade, tanto a nonagesimal quanto a anual”, consideram as associadas Maria Alice Laranjeira e Fernanda Rizzo. Elas explicam que a LC 190/22 prevê o respeito às anterioridades anual e nonagesimal. “Vale dizer, quando se trata do princípio da anterioridade, a Constituição Federal prevê a aplicação conjunta tanto da anterioridade anual quanto da anterioridade nonagesimal, não sendo possível fragmentar a aplicação do princípio conforme decisão do STF.” Elas lembram ainda que a LC 190/22 de fato autorizou a cobrança do Difal, que estava até então obstada, e que houve a instituição de um tributo que até então não era exigível – e que o respeito à anterioridade é exigido pela Constituição.

As advogadas recomendam que os contribuintes se preparem para o início de procedimentos fiscais e cobranças relativas ao Difal não recolhido durante o ano passado. Apesar de o acórdão ainda não ter sido publicado e de existir a possibilidade de oposição de embargos de declaração pelas partes, ou seja, de em tese poder haver alterações, elas consideram pouco provável que sejam suficientes para conduzir a um cenário mais favorável aos contribuintes.

Simão e Hubaide também recomendam que os contribuintes avaliem a regularização de todo o período posterior a 05/04/2022. Eles consideram que, ainda que as partes envolvidas possam recorrer e que uma mudança de posicionamento não possa ser descartada por conta do placar apertado, a alteração no resultado do julgamento é pouco provável.

Na entrevista abaixo, Rizzo, Laranjeira, Simão e Hubaide explicam a questão e comentam a decisão do STF.


 Por que o STF decidiu que o Difal do ICMS não trata da instituição de um novo tributo e optou pela sua cobrança a partir de abril de 2022, respeitada a noventena?

Sávio Hubaide e Pedro Simão: O principal fundamento da decisão é o de que a LC 190/2022 não instituiu ou majorou tributo, hipóteses que atrairiam a anterioridade, mas tão somente estipulou nova regra de repartição de receitas entre os Estados. Isso porque, com a Emenda Constitucional nº 87/2015, foi alterada a sistemática do Difal nas operações destinadas a consumidores finais não contribuintes, para que o produto da arrecadação fosse repartido entre origem e destino. Assim, a decisão entendeu que não foi modificada a hipótese de incidência do imposto, tampouco sua base de cálculo, mas somente a destinação da arrecadação, o que seria mera técnica fiscal, que não se confunde com instituição ou majoração.

Outro fundamento foi o de que a instituição do Difal se deu com as leis estaduais, que seriam válidas, mas ineficazes até a edição da LC 190/22. Sob esse raciocínio, a anterioridade deveria ser contada a partir de cada lei estadual, e a lei complementar seria mera condição de eficácia, mas não de validade da cobrança do imposto.

De toda forma, ainda que a LC 190/22 não tenha sido interpretada como instituição ou majoração de tributo, foi reconhecida a aplicação da anterioridade nonagesimal, pois, na esteira do voto do ministro Dias Toffoli, seria razoável a estipulação de prazo pelo legislador, a própria observância desse prazo de 90 dias por alguns entes criou legítima expectativa aos contribuintes, e a cobrança desde a edição da lei violaria a irretroatividade.

Nesse sentido, até a última sessão virtual, havia 5 votos favoráveis à aplicação de ambas as anterioridades, de modo que o Difal só poderia ser cobrado em 2023. No entanto, retomado o julgamento após o pedido de destaque, prevaleceu o voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, que aderiu ao voto do  ministro Dias Toffoli para reconhecer somente a aplicação da anterioridade nonagesimal, autorizando a cobrança do Difal a partir de 05/04/2022.

Maria Alice Laranjeira e Fernanda Rizzo: A tese defendida pelos contribuintes era a de que a cobrança do Difal do ICMS não contribuintes, até o advento da Lei Complementar nº 190/22 (LC 190/22), não contava com o suporte legal adequado – o que foi reconhecido pelo STF ao julgar o Tema 1.093 – razão pela qual, considerando a publicação da Lei Complementar apenas em 2022, a cobrança somente poderia se tornar efetiva a partir de 2023, em respeito aos princípios da anterioridade nonagesimal e anual.

Por outro lado, os Estados defendiam que a LC 190/22 não criaria nem majorara tributos, razão pela qual a cobrança não teria de observar o princípio da anterioridade anual ou nonagesimal, previsto pelo artigo 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal.

O posicionamento dos Fiscos estaduais foi acompanhado em parte pelo ministro relator, Alexandre de Moraes, definindo que a anterioridade nonagesimal ou anual não seriam imperiosas ao caso. Entretanto, houve a opção do legislador em aplicar a noventena, sendo válida a adoção de tal prazo. Portanto, a alteração da legislação seria válida a partir de noventa dias da publicação.

Para embasar seu entendimento, o ministro destacou, ainda, que a qualificação da incidência do Difal nas operações interestaduais como nova relação tributária entre o contribuinte e as Fazendas dos Estados de destino não afasta a constatação de que a Emenda Constitucional 87/15 e a LC 190/22 não interferiram na esfera jurídica dos contribuintes (no sentido de pagar um novo tributo ou um tributo majorado) havendo, portanto, apenas uma alteração em relação ao ente arrecadador.

E assim, por maioria dos votos, prevaleceu o entendimento de que a cobrança passou a ser válida noventa dias após a publicação da LC 190/22, mais precisamente a partir do dia 5 de abril de 2022.


Como você avalia a decisão?

Sávio Hubaide e Pedro Simão: A decisão não foi a mais acertada. A Constituição prevê que lei complementar disporá sobre normas gerais em matéria tributária, e a Lei Kandir não definia todos os aspectos necessários para a cobrança do Difal, tanto é que o próprio STF fixou tese de que a cobrança do Difal dependeria de lei complementar, e não de convênio.

Somente com a LC 190/22 é que esses aspectos passaram a ser expressamente previstos em lei complementar, não havendo que se falar na cobrança com base unicamente em leis estaduais.

É com o conjunto de competência prevista na Constituição, lei complementar com normas gerais e lei estadual ordinária que a cobrança poderia passar a ser realizada, isto é, as leis estaduais não poderiam ser validadas antes da edição da lei complementar.

Por isso, não reconhecer que a LC 190/22 realmente instituiu nova hipótese de incidência tributária significa o mesmo que ignorar as disposições contidas em seu próprio texto, as quais trouxeram aspectos essenciais à própria incidência do Difal, e, portanto, deveria ser observada a regra da anterioridade anual.

Maria Alice Laranjeira e Fernanda Rizzo: Em nossa avaliação, a decisão ignora a disposição expressa contida na LC 190/22 que previa o cumprimento à anterioridade, tanto a nonagesimal quanto a anual. Isso porque o artigo 3ª da LC 190/22 determinava a observância do artigo 150, III, alínea “c”, da Constituição, que trata da noventena. E essa alínea, por sua vez, prevê o respeito à anterioridade anual quando faz referência expressa ao artigo 150, inciso III, alínea “b”, da Constituição. A interpretação é sistemática: aplica-se a alínea “b” (anterioridade anual) e, na sequência, a alínea “c” (anterioridade nonagesimal). Não é possível ignorar a análise da alínea anterior para aplicação direta da alínea “c”.

Vale dizer, quando se trata do princípio da anterioridade, a Constituição Federal prevê a aplicação conjunta tanto da anterioridade anual quanto da anterioridade nonagesimal, não sendo possível fragmentar a aplicação do princípio conforme decisão do STF.

Além disso, a Lei Complementar de fato autorizou a cobrança do Difal, que estava até então obstada, e, nesse sentido, deveria respeitar a Constituição Federal, que exige o cumprimento do prazo, pois está instituindo o tributo que até então não era exigível.


– Qual deve ser o impacto da cobrança do Difal do ICMS sobre as empresas?

Sávio Hubaide e Pedro Simão: Os Estados forneceram estimativa de perda de arrecadação próxima a R$ 10 bilhões caso o Difal fosse cobrado somente em 2023.

Com o reconhecimento da anterioridade nonagesimal e da cobrança a partir de 05/04/2022, as empresas que deixaram de recolher valores em 2022 deverão regularizar esses períodos, inclusive aquelas que estavam resguardadas por decisões liminares. De 2023 em diante, não haverá impacto no sentido de onerar a carga tributária já recolhida atualmente.

Maria Alice Laranjeira e Fernanda Rizzo: Na prática, a decisão causará um impacto financeiro considerável aos contribuintes – mais especialmente em relação àqueles que deixaram de recolher o Difal durante o exercício de 2022, em virtude da possibilidade de aplicação de penalidades relacionadas ao não recolhimento. Aquelas empresas que estavam beneficiadas com liminares deverão regularizar os valores, com grande impacto de caixa.

Evidentemente, o impacto será, ao menos em um primeiro momento, mais sentido em relação aos contribuintes que deixaram de efetuar o recolhimento do Difal durante o ano de 2022, especialmente porque os Estados passarão a atuar para formalizar a cobrança dos valores não pagos, com aplicação de penalidades.

Em relação aos contribuintes que, de maneira conservadora, vinham recolhendo o tributo desde 2022, o impacto será no reconhecimento do direito à restituição, que ficará prejudicado com a aplicação do entendimento exarado pelo STF.

De qualquer forma, a decisão traz grande ônus financeiro, desestimulando investimentos e afetando sobremaneira o caixa das empresas.


A questão está totalmente decidida de forma contrária ao contribuinte ou ainda pode haver mudanças? O que se recomenda aos contribuintes?

Sávio Hubaide e Pedro Simão: O acórdão ainda não foi publicado, e as partes envolvidas poderão recorrer. Como a decisão foi de 6 votos a 5, e não se sabe sequer qual será a composição da corte no julgamento desses recursos, não se pode descartar totalmente alguma mudança de posicionamento e, por consequência, do resultado em caso de recurso com efeitos modificativos.

Ainda assim, como essa alteração no resultado do julgamento é menos provável, recomenda-se que os contribuintes avaliem a regularização de todo o período posterior a 05/04/2022.

Outro ponto de atenção é que as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) julgadas examinaram tão somente a incidência do Difal nas aquisições por consumidores finais não contribuintes, e não o regime de aquisição por consumidores finais contribuintes do ICMS, outro caminho que pode suscitar alguma alteração no posicionamento ora formado, considerando o placar tão apertado de 6 votos a 5.

Maria Alice Laranjeira e Fernanda Rizzo: É necessário aguardar a disponibilização do acórdão, porque ainda existe a possibilidade de oposição de embargos de declaração pelas partes, a depender de seu teor. Portanto, em tese, ainda pode haver alterações, mas é pouco provável que sejam suficientes para conduzir a um cenário mais favorável aos contribuintes.

A recomendação para o momento é a de que os contribuintes se preparem para o início de procedimentos fiscais e cobranças relativas ao Difal não recolhido durante o ano passado.

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