“Tese do século” continua a render discussões

Modulação de efeitos, “teses filhotes” e novo entendimento da Receita Federal garantem vida longa ao assunto

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A chamada “tese do século” continua gerando desdobramentos mesmo após a conclusão do julgamento por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), em maio deste ano. A tese tratou da exclusão do imposto sobre circulação de mercadorias (ICMS) da base de cálculo do programa de integração social (PIS) e da contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins). 

Em sua decisão, o tribunal entendeu que o ICMS não pode ser considerado como receita bruta e deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins. Também decidiu pela modulação dos efeitos: contribuintes que moveram processos antes de março de 2017 terão direito à restituição dos valores que pagaram a mais durante os cinco anos anteriores ao ajuizamento da demanda. Para aqueles que moveram ações depois da decisão do STF, só será possível reaver os valores posteriores a março de 2017. O julgamento esclareceu ainda que o valor do ICMS a ser excluído da base de cálculo das contribuições é aquele destacado na nota fiscal de saída (venda dos produtos).

Apesar dessas definições, a advogada Júlia Barreto, associada do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, considera que a “tese do século” ainda está longe de ser encerrada. Primeiro, porque ela gerou “teses filhote”, que ainda estão pendentes de julgamento. Segundo, porque a modulação dos efeitos deixou de fora contribuintes que já haviam habilitado os créditos dos valores recolhidos a mais, mas que, por conta da data limite de março de 2017, não poderiam reaver esses valores. 

Recentemente, a Receita Federal também jogou lenha na fogueira, ao tentar aplicar a mesma lógica da “tese do século” às notas fiscais de entrada (quando a empresa adquire algum bem ou serviço para usar como insumo ou revendê-lo), conforme noticiado pelo jornal Valor Econômico. O fisco alegou que, se o ICMS não entra na base de cálculo do PIS e da Cofins nas notas de saída, também não deveria estar presente nas notas de entrada. Isso teria como efeito o aumento dos impostos a pagar.

Na visão de Barreto, não há base legal que sustente o entendimento da Receita. “É importante deixar claro que o julgamento do STF, ao consignar que o ICMS deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins, não o fez como uma benesse fiscal — como tenta sustentar a Receita Federal, ao aplicar a suposta igualdade na entrada e na saída do produto”, afirma. “A decisão do STF foi pautada no conceito de receita bruta, que é a base de cálculo constitucional do PIS e da Cofins”, frisa a advogada.

A seguir, Barreto aborda as principais repercussões da “tese do século” e por que ela deve continuar gerando discussões.


O que foi a “tese do século” e qual o entendimento do STF?

Júlia Barreto: A tese do século está vinculada ao RE 574.706/PR, julgado em sede de repercussão geral e finalizado com a tese de que o “ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins” (Tema 69). Na oportunidade, ficou decidido que o imposto sobre circulação de mercadorias (ICMS), por ser um tributo estadual, apenas transita pela contabilidade do contribuinte, não podendo ser considerado receita bruta e, portanto, devendo ser excluído da base de cálculo do programa de integração social (PIS) e da contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins).

Apesar do julgamento de mérito ter ocorrido em março de 2017, foram opostos embargos de declaração para que o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestasse acerca de alguns pontos que restaram em aberto na decisão inicial.

Os embargos de declaração foram julgados em maio de 2021, situação em que o STF concluiu pela modulação dos efeitos da decisão de mérito, ou seja, apenas os contribuintes com processos em curso em março de 2017 poderiam ser restituídos dos valores recolhidos a maior referente aos cinco anos anteriores ao ajuizamento da demanda. Para aqueles contribuintes que ajuizaram suas ações posteriormente à decisão do STF, só seria possível reaver os valores posteriores a março de 2017.

Além disso, no julgamento dos embargos de declaração, ficou decidido que o valor do ICMS a ser excluído da base de cálculo das contribuições é aquele destacado na nota fiscal.


Pode-se dizer que a “tese do século” foi encerrada? Ou ela ainda deve ter outros desdobramentos?

Júlia Barreto: A meu ver, está longe de ser encerrada.

Como a decisão de mérito ocorreu em março de 2017 e a modulação de efeitos apenas quatro anos depois, muitas decisões sobre o assunto transitaram em julgado nas instâncias inferiores, permitindo que os contribuintes habilitassem o crédito dos valores recolhidos a maior ou pleiteassem a restituição. Esses contribuintes estavam resguardados pela estabilização da decisão, que acontece com o trânsito em julgado, e agora estarão à mercê de uma ação rescisória, que afeta não só a segurança jurídica, como o fluxo de caixa da empresa, que já contava com a restituição dos valores recolhidos a maior.

No mesmo sentido, as chamadas “teses filhotes”, aquelas que ganharam força após a decisão do Tema 69, como a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins e a exclusão do PIS e da Cofins das próprias bases de cálculo, ainda estão pendentes de julgamento. Apesar de não se tratar da mesma controvérsia, as razões pelo qual o STF decidiu pela exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins devem ser consideradas para definição das tese-reflexo.


Qual é o tratamento tributário dado pelas leis do PIS e da Cofins a respeito das notas fiscais de entrada e de saída?

Júlia Barreto: O tratamento das notas fiscais relativas às entradas está vinculado à tomada de créditos pelos contribuintes. Na sistemática não-cumulativa de recolhimento do PIS e da Cofins, o contribuinte suporta uma alíquota mais alta, que combinada chega a 9,25%, mas também tem a possibilidade de tomada de crédito dos bens adquiridos sob a mesma proporção (de 9,25%). Explico: um contribuinte varejista adquire mercadorias diretamente da indústria para revenda posterior. Sob o valor de aquisição dessas mercadorias, aplica-se o percentual de 9,25% para definição do montante passível de tomada de créditos. Já sob o valor da receita de venda dessas mercadorias, aplica-se os mesmos 9,25% para definição dos débitos de PIS e Cofins. O contribuinte recolhe, efetivamente, a diferença entre os débitos e os créditos apurados.

O regramento da tomada de créditos de PIS e Cofins está previsto nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, em que se lê em um dos incisos do artigo 3º, “do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a bens adquiridos para revenda”. Ou seja, o dispositivo autoriza a tomada de créditos pela aquisição de bens que sejam empregados na atividade do contribuinte, como no caso da revenda — utilizada no exemplo acima e no dispositivo replicado. Assim, pelos custos assumidos pelo contribuinte para manutenção de sua atividade, será possível tomar crédito de PIS e Cofins na sistemática não-cumulativa.

Já o tratamento dispensado às notas fiscais de saída é mais simples. Trata-se de aplicação da alíquota do PIS e da Cofins sobre o valor da receita bruta apurada pelo contribuinte, realizando as deduções permitidas em lei para obter a receita bruta a ser utilizada como base de cálculo. Reiterando que o valor recolhido será aquele apurado de acordo com as notas fiscais de saída e abatido dos créditos acumulados pelas entradas de bens e/ou serviços.


Há base legal para sustentar a alegação da Receita Federal de que o critério aplicado às notas de entrada e saída deve ser o mesmo, ou seja, que em ambas deverá ocorrer a exclusão do ICMS?

Júlia Barreto: Entendo que não. Os dispositivos, tanto da Lei 10.637/2002 quanto da Lei 10.833/2003, que permitem ao contribuinte a tomada de crédito vinculam esse creditamento ao bem e/ou ao serviço que está sendo adquirido, seja para revenda ou como insumo. Assim, o crédito deverá ser tomado sob o valor do bem/serviço adquirido e não sob o valor desse bem/serviço deduzido de algumas importâncias.

É importante deixar claro que o julgamento do STF, ao consignar que o ICMS deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins, não o fez como uma benesse fiscal — como tenta sustentar a Receita Federal, ao aplicar a suposta igualdade na entrada e na saída do produto. A decisão do STF foi pautada no conceito de receita bruta, que é a base de cálculo constitucional do PIS e da Cofins, e que o ICMS não compõe a receita bruta do contribuinte, tratando-se de valor que não corresponde à receita de vendas, mas tão somente tributo incidente sobre a operação.

Assim, a suposta analogia defendida pela Receita Federal não tem respaldo legal, uma vez que não se trata de aplicar o mesmo entendimento nas duas partes da operação, mas tão somente aplicar os conceitos corretamente: enquanto a base de cálculo do PIS e da Cofins é a receita bruta, sendo composta pelos valores que efetivamente aumentam o patrimônio do contribuinte, a tomada de créditos de PIS e Cofins está atrelada ao valor dos bens e serviços necessários para a atividade do contribuinte, não existindo qualquer limitador legal do valor desses bens e serviços.

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