Receita Federal fecha mais uma porta para os “super ricos”

Tributação de transferência de cotas fundos fechados requer cautela e pode ser questionada na Justiça

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A Receita Federal recentemente fechou mais uma porta que permitia que os chamados “super ricos” pagassem menos impostos em fundos de investimento. A porta é a possibilidade que esses aplicadores tinham de transferir cotas de fundos fechados pelo valor declarado no Imposto de Renda (IR), o que deixou de ser permitido. Na prática, isso significava que o pagamento do imposto era postergado até o momento de amortização das cotas. No entanto, tributaristas acreditam que esse posicionamento da Receita Federal pode ser questionado.

A nova visão da Receita consta da Solução de Consulta nº 21/24 da  Coordenação Geral de Tributação (Cosit), voltada para os fiscais. “Em síntese, a Receita Federal concluiu que o Imposto de Renda será devido na transferência das cotas dos fundos fechados, seja por herança, doação ou legado, em razão da existência de ganho de capital (diferença entre o custo de aquisição informado pelo transmitente/doador e o valor de mercado das cotas)”, explicam Thiago Braichi e Júlia Barreto, sócio e associada do Freitas Ferraz Advogados.

Trata-se de uma mudança de entendimento da Receita, afirmam os advogados. Antes, as cotas podiam ser registradas pelos herdeiros ou pessoas que receberam a doação pelo custo de aquisição – e, portanto, não havia ganho de capital e, consequentemente, nem tributação pelo IR.

Questionamento da Solução de Consulta nº 21/24 da Cosit 

“O entendimento atualizado da Receita Federal deve ser analisado com muita cautela, tanto pelos advogados quanto pelas famílias que desejam realizar um planejamento sucessório. Dizemos isso porque, apesar de se tratar de solução de consulta emitida pela Cosit e, portanto, aplicável para os servidores da Receita Federal de forma obrigatória, entendemos que esse posicionamento tem margem para ser questionado”, avaliam Braichi e Barreto.

Eles lembram que o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do ARE 1.387.761 AgR/ES, em fevereiro de 2023, concluiu pela impossibilidade de tributar a doação (como antecipação da legítima) pelo IR e pelo ITCMD. “Isso porque o STF já tem entendimento que essa operação não resulta em acréscimo patrimonial disponível e, portanto, não há fato gerador do Imposto de Renda e pela impossibilidade de cumular Imposto de Renda e ITCMD numa mesma operação, sob pena de bitributação.” Embora o precedente do STF não trate especificamente da doação de fundos fechados (como a Solução de Consulta Cosit nº 21/24), eles entendem que a conclusão do STF se aplica à Solução de Consulta.

“Portanto, por mais que esse posicionamento da Receita Federal possa (e deva) trazer cautela por parte nos contribuintes na doação de cotas de fundos fechados, o prognóstico da discussão pode ser favorável no Judiciário, revertendo eventual cobrança de Imposto de Renda”, consideram Braichi e Barreto.

A equiparação de tratamento fiscal dada aos fundos fechados e fundos abertos  vem sendo buscada pelo atual governo para elevar a arrecadação e igualar, ao menos do ponto de vista tributário, os “super ricos” aos demais investidores. Nesse contexto, estão medidas como a tributação pelo come-cotas dos fundos fechados e das offshores. Em novembro de 2023, a Receita havia publicado também a Solução de Consulta nº 245/23, que causou polêmica ao considerar que a transferência das cotas de fundos de investimentos fechados em razão de sucessão causa mortis deve ser equiparada a uma operação de alienação.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz abordam a Solução de Consulta Cosit nº 21/24.


Júlia Barreto e Thiago Braichi: A Solução de Consulta Cosit nº 21/24 trata sobre a exigência de Imposto de Renda (IR) no caso de doação de fundos de investimento fechados (seja com aplicações em renda fixa ou em ações titularizadas).

Em síntese, a Receita Federal concluiu que o Imposto de Renda será devido na transferência das cotas dos fundos fechados, seja por herança, doação ou legado, em razão da existência de ganho de capital (diferença entre o custo de aquisição informado pelo transmitente/doador e o valor de mercado das cotas). Além disso, restou definido que a responsabilidade pela retenção desse IR é dos administradores dos fundos de investimento ou da instituição que intermediar os recursos, em linha com a interpretação dada à Instrução Normativa RFB nº 1.585/2015.


A Solução de Consulta Cosit nº 21 sinaliza uma mudança de entendimento da Receita Federal?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: Sim. A Receita Federal já havia proferido a Solução de Consulta Cosit nº 383/2014, em que afastou a possibilidade de avaliar as cotas do fundo fechado recebidas em transmissão causa mortis pelo valor de mercado, portanto, ante à impossibilidade de registro do bem em valor superior ao custo de aquisição, não haveria ganho de capital e, consequentemente, exigência de IR.

Mais recentemente, foi proferida a Solução de Consulta Cosit nº 98/2021, em que a Receita Federal concluiu que não poderia ser exigido o Imposto de Renda na doação de cotas de fundo de investimento fechado, pois a transferência (realizada pelo contribuinte) foi feita pelo custo de aquisição do doador. Logo, inexistiria ganho na operação, afastando o Imposto de Renda. Ambas as discussões tinham o artigo 23 da Lei nº 9.532/1997 como base legal a ser considerada.

Na Solução de Consulta Cosit nº 21/24, a Receita Federal revisitou esses posicionamentos e concluiu de forma diversa, determinando que o Imposto de Renda deve ser exigido na doação de cotas dos fundos fechados. Nessa decisão, a controvérsia sobre o ganho de capital na doação com o recebimento do bem a valor de mercado (discussões anteriores) é substituída pelo entendimento que a doação e a transferência causa mortis são consideradas como alienações, afastando o mencionado artigo 23. Além disso, a Receita Federal concluiu que as cotas recebidas seriam registradas a valor de mercado, resultando em Imposto de Renda em razão do ganho de capital decorrente da alienação.


Nas transferências de cotas de fundos fechados (por doação ou causa mortis), também há a incidência de ITCMD? Em caso afirmativo, qual valor das cotas é levado em consideração para o cálculo do imposto?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: Sim, por se tratar de uma transferência gratuita (doação ou causa mortis), há exigência de ITCMD sobre o “valor corrente de mercado do bem, título, crédito ou direito, na data da transmissão ou do ato translativo”, nos termos da legislação de ITMCD do Estado de São Paulo.

Ou seja, será devido o imposto estadual com base no valor atualizado de mercado das cotas do fundo de investimento que é objeto da transferência gratuita.


Qual deve ser o impacto do entendimento da Receita Federal? Ele reduz a atratividade dos fundos fechados e altera muito o planejamento sucessório de famílias de alta renda?

Júlia Barreto e Thiago Braichi: O entendimento atualizado da Receita Federal deve ser analisado com muita cautela, tanto pelos advogados quanto pelas famílias que desejam realizar um planejamento sucessório.

Dizemos isso porque, apesar de se tratar de solução de consulta emitida pela Cosit e, portanto, aplicável para os servidores da Receita Federal de forma obrigatória, entendemos que esse posicionamento tem margem para ser questionado. O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do ARE 1.387.761 AgR/ES, em fevereiro de 2023, concluiu pela impossibilidade de tributar a doação (como antecipação da legítima) pelo Imposto de Renda e pelo ITCMD. Isso porque o STF já tem entendimento que essa operação não resulta em acréscimo patrimonial disponível e, portanto, não há fato gerador do Imposto de Renda e pela impossibilidade de cumular Imposto de Renda e ITCMD numa mesma operação, sob pena de bitributação.

Assim, por mais que o precedente do STF não trate especificamente da doação de fundos fechados (como a Solução de Consulta Cosit nº 21/24), entendemos que as conclusões desse julgado se aplicam diretamente à situação analisada pela Solução de Consulta.

Portanto, por mais que esse posicionamento da Receita Federal possa (e deva) trazer cautela por parte nos contribuintes na doação de cotas de fundos fechados, o prognóstico da discussão pode ser favorável no Judiciário, revertendo eventual cobrança de Imposto de Renda.


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