Tributação de cotas recebidas em herança pode ir para a Justiça

Advogados questionam Solução de Consulta da Receita Federal que orienta pela incidência do IRPF

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Quando um herdeiro recebe cotas de fundos de investimento fechados, deve pagar Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) mesmo que não resgate ou amortize essas cotas? Para a Receita Federal, sim – e a orientação veio na Solução de Consulta Cosit nº 245/23, que orienta os auditores fiscais.

Na regra, a Receita entende que há a incidência do IRPF quando houver ganho de capital, ou seja, se o valor que o herdeiro recebeu superar o valor das cotas declarado pelo investidor original (de cujus). O entendimento é que a transferência das cotas de fundos de investimentos fechados em razão de sucessão causa mortis deve ser equiparada a uma operação de alienação.

O entendimento do Fisco difere do que pensam advogados tributaristas. “Considerando que a legislação permite que a transmissão dos bens e direitos na sucessão causa mortis seja realizada pelo montante original (isto é, pelo valor constante da declaração de IRPF) e a existência de ao menos um precedente judicial favorável, recomenda-se a avaliação de ingressar com uma medida judicial a fim de obter decisão favorável ao não recolhimento do tributo. Ainda não se pode dizer que há uma jurisprudência consolidada sobre o tema, mas existem bons argumentos de defesa”, avaliam Michel Siqueira Batista e Giovana Milana, associados do Vieira Rezende Advogados.

Isso porque a Lei nº 9.532/1997 permite que a transferência seja avaliada pelo valor constante da declaração de bens do de cujus, ou seja, permite que o herdeiro opte, quando for receber a propriedade por sucessão, pela avaliação dos bens e direitos a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de IRPF do de cujus (custo de aquisição). “Desse modo, apenas na hipótese em que o herdeiro opta em utilizar o valor de mercado que ele deverá antecipar o IRPF incidente sobre eventual ganho de capital”, explicam Batista e Milana.

Associadas do Freitas Ferraz Advogados, Júlia Barreto e Ligia Merlo têm a mesma avaliação. Elas consideram que a interpretação da Receita Federal na Solução de Consulta Cosit nº 245/23 está em sentido contrário ao princípio da legalidade, pois a Lei nº 9.532/1997 não apresenta qualquer ressalva relacionada à transmissão de fundos fechados. Outro ponto, lembram, é que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou no sentido de que a exigência de IRPF na doação ou transmissão causa mortis, em que já há cobrança de ITCD, é caso de bitributação, vedada pela Constituição. “Logo, a tributação da doação e da sucessão está restrita ao ITCD, não podendo ser exigido também IRPF.”

“Por esses pontos, entendemos que há bons argumentos para os contribuintes que desejam discutir a questão”, afirmam Barreto e Merlo. Elas consideram que a melhor alternativa é discutir a exigência do IRPF judicialmente, evitando afetar a relação do cotista com o administrador do fundo (já que este é o responsável pelo recolhimento do IRPF decorrente da transmissão das cotas).

Tributação de fundos fechados

Batista e Milana lembram que, mesmo que antes da Solução de Consulta Cosit nº 245/23, os administradores de fundos de investimento se baseavam na  Instrução Normativa nº 1.585/2015 e exigiam que os herdeiros pagassem o IRPF – e que há casos em que os herdeiros acionam a Justiça para invalidar a cobrança.

Quanto ao precedente favorável ao contribuinte, os advogados do Vieira Rezende citam decisão recente proferida pela 4ª Turma do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF 3) no processo nº 5012411-08.2017.4.03.6100, em São Paulo. O tribunal decidiu que a transferência dos investimentos em razão da sucessão causa mortis não pode ser equiparada ao resgate dos rendimentos financeiros – portanto, foi contra a exigência de recolhimento do IRPF. Mas a Fazenda Nacional interpôs recurso contra essa decisão do TRF 3 e ainda se aguarda a manifestação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema.

Enquanto isso, caminha no Congresso Nacional a Medida Provisória 1.184/23, que dispõe sobre a tributação semestral dos fundos fechados, também conhecidos como fundos dos super ricos.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende abordam a Solução de Consulta Cosit nº 245/23.


– O que a Solução de Consulta nº 245/23 da Cosit traz de novo com relação à tributação pelo Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF)? Antes, havia a necessidade de recolher o imposto quando houvesse a transmissão de cotas de fundos fechados para herdeiros? 

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: De acordo com a recente Solução de Consulta Cosit nº 245/23, a transferência de cotas de fundos de investimentos fechados em razão de sucessão causa mortis deve ser equiparada a uma operação de alienação e, portanto, está sujeita à apuração de eventual ganho de capital por meio da diferença entre o custo de aquisição do fundo de investimento que vinha sendo declarado pelo de cujus e o valor de mercado das cotas quando do seu falecimento e transferência aos herdeiros. A diferença positiva, de acordo com este entendimento da Receita Federal do Brasil (RFB), estará sujeita à tributação pelo IRPF.

Desse modo, a RFB afasta a aplicação do artigo 23 da Lei nº 9.532/1997, que permite que a transferência seja avaliada pelo valor contante da declaração de bens do de cujus, e afirma, inclusive, que os fundos em questão possuem em seu ativo instrumentos financeiros dotados de liquidez para fazer frente ao valor do imposto devido. Além disso, de acordo com a decisão, a responsabilidade pela retenção e recolhimento do imposto é do administrador do fundo de investimento ou da instituição que intermedia recursos por conta e ordem de seus respectivos clientes.

Dentre as críticas a essa decisão, está o fato de que os herdeiros acabam se sujeitando a dois impostos: o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), na esfera estadual, que já incide normalmente, e o IRPF, na esfera federal, em razão de um mesmo fato gerador.

Fato é que antes mesmo dessa decisão da RFB na Solução de Consulta em comento, já havia, por parte dos administradores dos fundos de investimentos, a exigência do tributo dos herdeiros, muitas vezes baseada no que dispõe a Instrução Normativa nº 1.585/2015 que, cumpre ressaltar, trata de hipótese de ganhos auferidos na alienação das cotas de fundos de investimento, o que não é o caso. Há casos em que os herdeiros acionam a Justiça com o intuito de obter decisão invalidando a cobrança.

Júlia Barreto e Ligia Merlo: A controvérsia envolvendo a Solução de Consulta Cosit nº 245/23 em relação à tributação do IRPF gira em torno da tributação do “ganho de capital” na transferência de cotas de fundos fechados para herdeiros em razão de falecimento e consequente sucessão.

De acordo com o entendimento da Solução de Consulta, as cotas do fundo recebidas pelos herdeiros deveriam ser tributadas pela diferença positiva entre o valor de mercado das cotas e o valor informado na Declaração de Imposto de Renda do falecido.

Até a publicação da Solução de Consulta, a prática aplicada pelos herdeiros era reconhecer as cotas recebidas em razão da sucessão pelo mesmo valor da Declaração de Imposto de Renda do falecido. Em razão disso, não haveria a necessidade de recolhimento de Imposto de Renda pelo ganho de capital, uma vez que não haveria ganho na transferência das cotas.


– A regra referente ao recolhimento de IRPF quando herdeiros recebem bens e direitos em herança é diferente das normas aplicáveis a herdeiros que recebem cotas de fundos fechados? Ou seja, há alguma espécie de benefício para herdeiros que recebem essas cotas? Em caso afirmativo, o que embasa essa diferença? 

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: A regra geral para o tratamento a ser aplicado no caso de recebimento de bens e direitos em herança está contida no já mencionado artigo 23 da Lei nº 9.532/1997, que dá uma opção ao herdeiro de, na transferência de direito de propriedade por sucessão, os bens e direitos serem avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de IRPF do de cujus (custo de aquisição). Desse modo, apenas na hipótese em que o herdeiro opta em utilizar o valor de mercado, que ele deverá antecipar o IRPF incidente sobre eventual ganho de capital.

Não existe, portanto, nenhuma norma específica para os casos de transferência de cotas de fundos de investimento fechados que determine a avaliação a valor de mercado. De acordo com a Solução de Consulta em questão, porém, a RFB aplicou o artigo 16, inciso II, art. 17, incisos I e II e art. 46, §2º da Instrução Normativa nº 1.585/2015 que dispõe sobre a alienação das cotas de fundos exclusivos fechados, equiparando a transferência causa mortis à uma alienação. 

Júlia Barreto e Ligia Merlo: Os fundos fechados, em comparação a outros fundos de investimento, destacam-se devido a uma vantagem tributária significativa: o IRPF só é exigido no momento do resgate ou amortização das cotas, ou seja, quando o investidor acessa parte do capital investido e seus rendimentos.

Assim, a manutenção de cotas de fundos de investimento fechados é mais benéfica tributariamente do que muitos outros investimentos. Contudo, o recebimento dessas cotas, em razão da sucessão, não deveria ser diferente do que acontece com o recebimento de outros bens e direitos.

Como colocado pelo contribuinte no âmbito da Solução de Consulta Cosit nº 245/23, o artigo 23º é claro ao determinar que “os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador”. Ou seja, qualquer interpretação fora dessa disposição, feita em lei, deveria estar amparada em outra lei mais específica, destinada aos fundos de investimento, que não é o caso.

Apesar disso, a Receita Federal entendeu que o referido dispositivo não se aplicaria a essas hipóteses. Segundo o entendimento da Receita, a redação do dispositivo refletia a “intenção” do legislador de evitar que os herdeiros precisassem alienar outros bens não transferidos para cumprir com o pagamento do imposto. Esse raciocínio, por consequência, não se aplicaria na transferência de cotas de fundos que possuem instrumentos financeiros com liquidez suficiente para serem alienados e o tributo pago sem maiores esforços.

Assim, mesmo sem disposição expressa em lei, a Receita Federal concluiu por um tratamento diferenciado para os contribuintes que recebem cotas de fundos de investimento.


– Com relação à tributação pelo IRPF no caso previsto pela Solução de Consulta Cosit 245/23, há embasamento jurídico para o seu questionamento por parte dos contribuintes? Quais são as chances de sucesso?  

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Sim, há embasamento jurídico para o questionamento da cobrança de IRPF nesses casos. Conforme mencionado acima, o artigo 23 da Lei nº 9.532/1997 permite que os herdeiros atribuam o valor da declaração de IRPF do de cujus na transferência dos bens e direitos detidos por eles quando de sua sucessão. Além disso, não pode a RFB equiparar a transferência dos ativos em questão a uma alienação, visto que não há qualquer realização destes ativos pelos herdeiros (seja por meio de evento de alienação propriamente dito ou até mesmo por meio de um resgate dos rendimentos financeiros) que justifique a cobrança de IRPF, independentemente da liquidez detida pelos ativos que compõem o fundo de investimento fechado.

Já existe um precedente recente na Justiça Federal a favor dessa tese, que foi proferido pela 4ª Turma do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF 3) – processo nº 5012411-08.2017.4.03.6100 – em São Paulo. A decisão foi contra a exigência do IRPF entendendo que a transferência dos investimentos em razão da sucessão causa mortis não pode ser equiparada a um evento de resgate dos rendimentos financeiros. A Fazenda Nacional interpôs recurso contra essa decisão do TRF 3 e, portanto, aguarda-se ainda a manifestação do STJ sobre o tema.

Júlia Barreto e Ligia Merlo: Entendemos que a interpretação da Receita Federal na Solução de Consulta Cosit nº 245/2023 está em sentido contrário ao princípio da legalidade (artigo 150, I da Constituição Federal de 1988 e os artigos 97 e 104 do Código Tributário Nacional). Como adiantado, a Lei nº 9.532/1997 não apresenta qualquer ressalva relacionada à transmissão de fundos fechados.

Apesar de não haver uma extensa jurisprudência específica sobre a transferência de cotas de fundos fechados, observa-se um julgado favorável aos contribuintes no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). Esse precedente reconhece a aplicabilidade do artigo 23 da Lei nº 9.532/1997.

Além disso, o STF já se manifestou no sentido de que a exigência de IRPF na doação ou transmissão causa mortis, em que já há cobrança de ITCD, é caso de bitributação (ARE 1387761 AgR, Relator Ministro Roberto Barroso, 01-03-2023), o que é vedado pela Constituição. Logo, a tributação da doação e da sucessão está restrita ao ITCD, não podendo ser exigido também IRPF.

Por esses pontos, entendemos que há bons argumentos para os contribuintes que desejam discutir a questão. Mas, como toda controvérsia em matéria tributária, é importante verificar os novos posicionamentos do Judiciário e da Receita Federal.


– O que se recomenda aos contribuintes potencialmente afetados?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Considerando que a legislação permite que a transmissão dos bens e direitos na sucessão causa mortis seja realizada pelo montante original (isto é, pelo valor constante da declaração de IRPF) e a existência de ao menos um precedente judicial favorável, recomenda-se a avaliação de ingressar com uma medida judicial a fim de obter decisão favorável ao não recolhimento do tributo. Ainda não se pode dizer que há uma jurisprudência consolidada sobre o tema, mas existem bons argumentos de defesa.

Júlia Barreto e Ligia Merlo: Como o administrador ou a instituição financeira que administrar os recursos do fundo de investimento são, na visão da Receita Federal, os responsáveis pela retenção do Imposto de Renda decorrente da transmissão das cotas dos fundos de investimento, os contribuintes se encontram em situação mais desafiadora para não recolher o imposto, mesmo que indevido.

Por isso, entendemos que a melhor alternativa, a princípio, seja discutir a exigência do IRPF judicialmente. Isso permite que se tenha uma segurança perante a legalidade do recolhimento sem impactar a relação com a administração do fundo de investimento.


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