Os super ricos irão à Justiça?

Tributação de estoque de fundos exclusivos, conforme prevista pela MP 1.184/23, pode gerar questionamentos

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A mudança na sistemática de tributação dos fundos de investimento exclusivos (com apenas um ou poucos cotistas) – que ficaram conhecidos como dos super ricos – tem grandes chances de ser questionada na Justiça por alcançar também os rendimentos acumulados antes deste ano.

Publicada no fim de agosto, a Medida Provisória 1.184/23 igualou a sistemática de recolhimento do imposto de renda (IR) sobre os rendimentos obtidos pelos cotistas. Os fundos de investimento fechados – que frequentemente são fundos exclusivos – passarão a ser tributados duas vezes por ano, como já são há muito tempo os fundos voltados para os pequenos investidores. O mecanismo, conhecido como come-cotas, é criticado porque na prática o contribuinte paga um imposto sobre um ganho que ainda não embolsou – o que de fato ocorre apenas quando ele resgata o investimento.

“Ao prever a tributação do estoque, o texto da nova MP certamente será questionado pelos contribuintes. Tal previsão fere de maneira direta o princípio constitucional da irretroatividade, que veda a instituição de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes da vigência da lei que os houver instituído ou majorado”, avaliam Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana, associados do Vieira Rezende Advogados. Eles também lembram que o come-cotas, por ser um mecanismo que estabelece a tributação de ganhos ainda não realizados, deveria ser aplicado com cautela, sob pena de desrespeitar o próprio conceito de renda: “Ao pretender alcançar o estoque acumulado ao longo de vários anos, nos parece que o dispositivo poderia ser questionado também sob essa ótica”.

A MP prevê que o estoque poderá ser tributado à alíquota de 15% – e o pagamento do imposto pode ser feito em até 24 vezes a partir de maio de 2024 (acrescidos da taxa  Selic). Outra opção que os cotistas têm é de pagar uma alíquota inferior, de 10%, mas em apenas quatro parcelas (entre 29 de dezembro de 2023 e 29 de março de 2024).

Havia a expectativa de que a tributação dos fundos exclusivos pudesse levar a resgates e transferência de capital para o exterior, mas, em outra frente, o governo pretende tributar os rendimentos de aplicações financeiras e de lucros e dividendos das offshores (conforme o PL das offshores).

A MP 1.184/23 ainda precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional. Na entrevista abaixo, Batista e Milana abordam a questão.


O que a MP 1.184/23 prevê com relação à tributação dos fundos fechados? Todos os fundos do tipo passarão a ter o come-cotas ou há exceções?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: A MP 1.184/23 igualou a tributação dos fundos de investimento exclusivos (sejam eles abertos ou fechados) à dos fundos de investimentos comuns (não exclusivos). Os fundos de investimento exclusivos são diferentes dos não exclusivos, em sua essência, pelo fato de que possuem apenas um único cotista ou um grupo restrito deles (permitidos pela regulamentação, como indivíduos da mesma família), o que faz com que sejam voltados principalmente para investidores de alta renda.

Desse modo, com a publicação da MP 1.184/23, os fundos exclusivos também passarão a ser tributados pelo regime de come-cotas (tributação antecipada pelo Imposto de Renda que incide duas vezes por ano sobre os rendimentos obtidos com as aplicações).

Os seguintes fundos foram excluídos das novas regras previstas pela MP (ou seja, não ficam a princípio sujeitos ao regime de come-cotas):

(i) os Fundos de Investimento em Participações (FIPs);

(ii) os Fundos de Investimento em Ações (FIAs);

(iii) os Fundos de Investimento em Índice de Mercado (ETFs) – exceto os ETFs de Renda Fixa;

(iv) Fundos de Investimento Imobiliário (FII);

(v) Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro);

(vi) os investimentos de residentes ou domiciliados no exterior em fundos de investimento em títulos públicos de que trata o artigo 1º da Lei 11.312/06;

(vii) os investimentos de residentes ou domiciliados no exterior em FIPs e Fundos de Investimento em Empresas Emergentes (FIEE) de que trata o artigo 3º da Lei 11.312/06;

(viii) os Fundos de Investimento em Participações em Infraestrutura (FIP-IE) e os Fundos de Investimento em Participação na Produção Econômica Intensiva em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (FIP-PD&I) de que trata a Lei 11.478/07;

(ix) os  Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) e demais de que trata a Lei 12.431/11;

(x) os fundos de investimentos com cotistas exclusivamente residentes ou domiciliados no exterior, nos termos do disposto no art. 97 da Lei 12.973/14; e

(xi) os ETFs de Renda Fixa de que trata o artigo 2º da Lei 13.043/14.

Note-se que a exclusão para os fundos de itens (i) a (iii) ocorre apenas quando estiverem enquadrados no conceito de “entidades de investimento”, que será melhor abordado adiante.

Com relação especificamente ao Fiagro (item “v” acima), a MP 1.184/23 manteve a isenção prevista na Lei nº 11.033/04 para os rendimentos distribuídos pelo Fiagro, mas tornou os requisitos para enquadramento nessa regra mais rigorosos.

De acordo com o artigo 24 da MP 1.184/23, para que o Fiagro seja isento, é exigido que: além de ser admitido à negociação, seja efetivamente negociado em bolsas de valores ou no mercado de balcão organizado; e detenha, no mínimo, 500 cotistas (e não mais 50, conforme previsto anteriormente).


A MP trouxe a figura da “entidade de investimento”, que será determinada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Há alguma indicação de que tipo de instituições podem ser assim consideradas? 

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Conforme relatado anteriormente, o artigo  3º da MP 1.184/23 indica que os FIPs, FIAs e ETFs (com exceção dos de renda fixa), “quando forem enquadrados como entidades de investimento” ficarão sujeitos a um regime de tributação específico, não sendo enquadrados na tributação periódica do come-cotas.

De acordo com a redação da MP em questão (artigo 7º), entende-se por “entidade de investimento” as instituições que tenham uma estrutura de gestão discricionária/profissional, em que o gestor tenha liberdade e poderes na movimentação dos ativos da carteira (investimento e desinvestimento), com o propósito de obter retorno por meio de apreciação do capital investido, renda ou ambos, de forma a ser regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Em outras palavras, apenas os fundos em que o gestor tenha o mínimo de autonomia é que manterão o tratamento sem o come-cota. Aqueles fundos que funcionarem como estrutura para manter ativos sob total ingerência do cotista passarão a ficar sujeitos ao come-cotas sobre o resultado gerado na realização de operações.

Os resultados não realizados apurados na contabilidade dos fundos decorrentes na mera flutuação do preço dos ativos (como ajustes a valor justo, valor presente, equivalência patrimonial etc.) a princípio não serão tributados, desde que evidenciados e controlados em subcontas específicas.


Quais serão os efeitos da tributação dos fundos fechados? Eles serão iguais para todas as classes de fundos? 

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Como regra geral, a MP prevê que os rendimentos dos fundos exclusivos serão tributados a uma alíquota de 15%. Excepcionalmente, os fundos de curto prazo (de 180 a 360 dias) terão alíquota de 20%. Já o contribuinte que optar por antecipar o recolhimento do imposto para 2023 será tributado a uma alíquota de 10%.

A MP também prevê que eventuais perdas apuradas no momento da amortização, resgate ou alienação de cotas poderão ser compensadas, exclusivamente, com ganhos apurados na distribuição de rendimentos, amortização, resgate ou alienação de cotas do mesmo fundo de investimento ou em outro fundo de investimento administrado pela mesma pessoa jurídica (desde que ele esteja sujeito à mesma regra de tributação).

Uma das principais controvérsias já debatidas e que foi incluída na MP é a previsão da tributação do estoque dos rendimentos existentes antes da sua entrada em vigor (isto é, a sujeição à tributação também dos rendimentos acumulados em anos anteriores ao ano-calendário de 2023).

De acordo com a redação da nova MP, a tributação do estoque será à alíquota de 15% e poderá ser paga em até 24 parcelas a partir de maio de 2024 (acrescidas de juros Selic). Alternativamente, será possível adotar a alíquota de 10% para tributar o estoque, com recolhimento em 4 parcelas entre 29 de dezembro de 2023 e 29 de março de 2024.

Ao prever a tributação do estoque, o texto da nova MP certamente será questionado pelos contribuintes. Tal previsão fere de maneira direta o princípio constitucional da irretroatividade, que veda a instituição de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes da vigência da lei que os houver instituído ou majorado.

Além disso, o come-cotas, por ser um mecanismo que estabelece a tributação de ganhos ainda não realizados do cotista deve ser aplicado com cautela, sob pena de desrespeitar o próprio conceito de renda. Ao pretender alcançar o estoque acumulado ao longo de vários anos, nos parece que o dispositivo poderia ser questionado também sob essa ótica.

Por fim, em relação aos fundos cujos regulamentos prevejam diferentes classes de cotas, com direitos e obrigações distintos e patrimônio segregado para cada classe, o artigo. 21 da MP 1.184/23 determina que, observada a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), cada uma dessas classes de cotas será considerada um fundo de investimento à parte, para fins de aplicação das determinações previstas na MP.


O governo pretende tributar os fundos fechados exclusivos com o come-cotas. Além disso, também pretende tributar os rendimentos de aplicações financeiras e de lucros e dividendos das offshores (conforme o PL das offshores). Essas medidas estão interligadas? Com isso, reduz-se a possibilidade de haver transferência significativa de recursos de fundos locais para o exterior?

Michel Siqueira Batista e Giovanna Milana: Embora tecnicamente se tratem de situações diferentes, certamente as duas alterações fazem parte de um mesmo contexto, que é a de se tentar criar maior justiça fiscal (eliminando situações que no limite viabilizam o diferimento eterno da tributação sobre investimentos). Além disso, como sabido, ambas as medidas atendem aos anseios arrecadatórios com vistas a contribuir com a meta de zerar o déficit primário, bem como compensar aumentos de gastos.

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