TIT decide ignorar regulamento e seguir tribunais superiores
Segunda instância dos processos administrativos tributários no estado surpreende com a decisão incomum
Em um julgamento recente, o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT) decidiu abrir mão da própria jurisprudência para seguir entendimentos de tribunais superiores em um processo relativo à cobrança de ICMS sobre operações entre empresas de um mesmo grupo.
Como explica Tatiana Del Giudice Cappa Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados, o TIT é um tribunal administrativo em que são julgadas as causas fiscais em segunda instância no Estado de São Paulo. “Quando um tributo não é recolhido ou quando há a identificação de uma infração à legislação fiscal estadual, é lavrado um auto de infração no qual é exigido do contribuinte o tributo não recolhido, mais multa e juros de mora, ou multa por descumprimento de obrigação acessória. O contribuinte pode recorrer em primeira instância ao delegado da Delegacia Regional de Julgamento e, depois, é cabível a interposição de recurso ordinário pelo contribuinte ou recurso de ofício pela autoridade fiscal por força de lei, os quais são julgados por uma das câmaras julgadoras do TIT”, detalha.
“Além de ser responsável pelo julgamento de processos administrativos, o TIT consolida as normas, com intuito de manter controle de qualidade dos lançamentos tributários para garantir ao contribuinte a contestação aos lançamentos pela via administrativa”, completa Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.
O caso concreto foi julgado por uma câmara par do TIT em segunda instância. O tema em discussão refere-se à incidência do ICMS na transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte — matéria mais do que conhecida no âmbito judicial, havendo jurisprudência consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
“A direção do TIT foi correta, sem dúvida alguma — até veio tarde. Quando os órgãos administrativos proferem decisões contrariando a jurisprudência pacificada nos tribunais contraria-se a lógica e é agredida a eficiência. Isso resulta em uma judicialização desnecessária, que aumenta os já elevados níveis de beligerância entre fisco e contribuinte e sobrecarrega as vias judiciais”, opina Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados.
A seguir, Chiaradia, Coimbra e Braichi avaliam outros aspectos do episódio e explicam o funcionamento das discussões fiscais no Estado de São Paulo.
Em linhas gerais, como funciona o TIT? Quais são suas atribuições?
Antes de explicar como funciona o TIT, é preciso ter uma visão de como funciona a discussão de questões fiscais no Estado de São Paulo.
Quando um tributo não é recolhido ou quando há a identificação de uma infração à legislação fiscal estadual, é lavrado um auto de infração no qual é exigido do contribuinte o tributo não recolhido, mais multa e juros de mora, ou multa por descumprimento de obrigação acessória. Em face desse auto de infração, é cabível a apresentação de defesa pelo contribuinte, que será julgada por uma autoridade singular em primeira instância (delegado da Delegacia Regional de Julgamento). Da decisão dessa autoridade, é cabível a interposição de recurso ordinário pelo contribuinte ou recurso de ofício pela autoridade fiscal por força de lei, os quais são julgados por uma das câmaras julgadoras do TIT, na qualidade de tribunal administrativo que julga as causas fiscais em segunda instância no Estado de São Paulo. Dessa decisão colegiada, ainda é cabível recurso especial, quando houver dissídio entre o decidido e outros julgados, que será apreciado pela Câmara Superior do TIT, na qualidade de instância especial.
As câmaras julgadoras do TIT são formadas por dois juízes representantes fiscais e dois juízes representantes dos contribuintes. Nas câmaras ímpares, o presidente é representante do fisco, enquanto nas pares o presidente é um representante dos contribuintes. Em caso de decisão empatada, prevalece o voto de qualidade do presidente da respectiva câmara.
De acordo com a Lei 13.457/09, que regulamenta o processo administrativo estadual, os órgãos de julgamento não podem afastar a aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, ressalvada as hipóteses em que tal inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em ação direta de inconstitucionalidade, decisão definitiva do STF, quando o Senado tenha suspendido a execução da lei ou em enunciado de súmula vinculante (artigo 28).
O TIT é o Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo. É o nome que se atribui ao Conselho de Contribuintes no estado. É um órgão administrativo competente para revisar os atos de cobrança de tributos (atos usualmente intitulados de lançamento), materializados mediante a lavratura de auto de infração. As decisões são colegiadas, em turmas com representação paritária, de forma que representantes do fisco e dos contribuintes tenham direito de voto. O TIT exerce, assim, o controle interno de legalidade dos atos de cobranças de tributos (bem como seus acréscimos, como juros e multas) e correlatas penalidades pelo Estado de São Paulo. Sempre que um contribuinte não concordar com um auto de infração recebido, poderá apresentar sua defesa (impugnação), iniciando assim um processo administrativo tributário.
O TIT é o órgão responsável pelo julgamento de processos tributários administrativos do Estado de São Paulo. O órgão é composto por câmaras julgadoras que analisam as demandas decorrentes do contencioso tributário estadual. As câmaras têm composição mista entre juízes representantes da Fazenda Pública, que são servidores públicos, e juízes representantes dos contribuintes, que são escolhidos dentre os indicados por entidades de classe.
Além de ser responsável pelo julgamento de processos administrativos, o TIT consolida as normas, com intuito de manter controle de qualidade dos lançamentos tributários para garantir ao contribuinte a contestação aos lançamentos pela via administrativa.
No caso concreto, o que estava em questão? Qual foi a alegação do TIT para ignorar a própria jurisprudência?
O caso concreto foi julgado por uma câmara par do TIT em segunda instância. O tema em discussão refere-se à incidência do ICMS na transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. Essa matéria é mais do que conhecida no âmbito judicial, havendo jurisprudência consolidada no âmbito do STJ, objeto de recurso repetitivo (Tema 259 – REsp nº 1.125.133, que confirmou a Súmula STJ nº 166) e do próprio STF (Tema 1.099 – ARE nº 1.255.885).
Entretanto, em que pese o ganho certo no âmbito judicial, a definição no âmbito administrativo não segue o mesmo sentido. Considerando que a lei estadual prevê a incidência do ICMS em qualquer saída do estabelecimento do contribuinte, independentemente de se tratar de transferência entre estabelecimentos, as autoridades fiscais têm ordem de proceder com a exigência fiscal, de tal sorte que os julgadores administrativos em primeira e segunda instâncias são vedados de afastar a aplicação da lei, que não foi ainda declarada inconstitucional pelo STF nas hipóteses previstas na Lei 13.457/09.
No caso concreto, o voto vencedor prevaleceu com base na posição firmada pelo presidente da Sexta Câmara, representante do contribuinte, que afirmou que a PGE (advogado do Estado de São Paulo nos processos judiciais) deixou de interpor recursos no âmbito judicial, reconhecendo a validade da Súmula STJ 166 por meio da Orientação Normativa SubG-CTF 2/2016.
De acordo com o presidente, o CPC, que pode ser aplicado subsidiariamente aos processos administrativos (artigo 15), determina que sejam observados os enunciados de súmula do STF/STJ, as decisões proferidas em sede de recursos repetitivos e incidentes de resolução de demandas repetitivas e assunção de competência (artigo 332). Assim, considerando a uniformidade de decisões no âmbito dos tribunais superiores, contrária à exigência do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, não faria sentido manter a cobrança no âmbito administrativo, que ocasionaria uma demanda desnecessária no judicial para afastar sua cobrança.
O caso cuida da exigência de ICMS nas operações de transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. É muito antigo o entendimento do STJ, cristalizado em sua (já antiga) súmula 166, de que o mero descolamento físico de mercadoria entre estabelecimentos de um mesmo titular, sem a transferência da titularidade da mercadoria, não está sujeito ao ICMS. O TIT, finalmente, deu o braço a torcer e se curvou aos entendimentos tribunais superiores. Sua filiação a esse entendimento veio tarde.
O caso em questão discute a incidência de ICMS em operação de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. O contribuinte autuado apontou a jurisprudência consolidada sobre o assunto, que determina que não constitui fato gerador do ICMS o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. Contudo, o posicionamento do TIT é contrário à jurisprudência dos tribunais superiores, tendo reiteradamente decidido pela incidência do ICMS. Para mudar esse posicionalmente, mesmo que parcialmente, o voto vencedor acatou argumento do contribuinte e acompanhou a jurisprudência pacífica do STJ.
O juiz ressaltou o fato de que a própria Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo não está mais apresentando recursos para tentar manter a cobrança em discussões judiciais, e que “é pacífico, sólido e imutável tanto do STJ quanto do STF acerca da não incidência do ICMS sobre transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa”.
Essa mudança de conduta é comum no caso do TIT? Ou o episódio surpreendeu?
Não, essa mudança de conduta não é comum no TIT e, por esse motivo, surpreendeu. As decisões no TIT são muito conservadoras quanto à necessidade de observação da Lei 13.457/09, que veda ao julgador afastar a aplicação de lei vigente com fundamento em sua inconstitucionalidade. Um exemplo semelhante à exigência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte é a manutenção dos juros de mora exigidos pelo Estado de São Paulo até 2017 com taxas superiores à Selic. Apesar de também se tratar de matéria já julgada pelo STF em sede de repercussão geral, por força de Súmula da Câmara Superior do TIT (artigo 52 Lei 13.457/09), tal exigência é mantida no âmbito administrativo e sempre acaba em nova discussão judicial.
Deveria ser bem mais comum. É de se esperar que os órgãos administrativos se curvem e acatem o entendimento que esteja pacificado nos tribunais.
A decisão é inovadora por ter afastado a jurisprudência do TIT e adotar o entendimento do STJ. Inclusive, o voto vencedor faz referência a posicionamentos alinhados com a jurisprudência do STJ que restaram vencidos no TIT. Isso porque os órgãos julgadores, no âmbito administrativo, não podem afastar aplicação de lei sob fundamento de inconstitucionalidade, exceto em caso de orientação expressa, como em Súmulas Vinculantes. Com base nisso, o Tribunal costuma decidir com base na legislação vigente ou em posicionamentos anteriores do próprio TIT, ainda que contrárias ao STJ e STF. Assim, o voto proferido nesse caso representa uma mudança significativa da postura do Tribunal, pois o julgador se submeteu ao entendimento da jurisprudência dos tribunais superiores.
Na sua avaliação, foi correta a direção escolhida? Por quê?
Na minha avaliação, a decisão foi correta por observar os princípios da economia processual e da eficiência da administração pública. Se o tema em discussão já foi debatido — por anos — e se encontra decidido no âmbito dos tribunais superiores em sede de recurso repetitivo, não faz nenhum sentido manter a cobrança no âmbito administrativo, abrindo mais uma causa a ser discutida judicialmente, provocando desnecessariamente o âmbito judicial e acarretando sucumbência desnecessário ao Estado.
De qualquer forma, o decidido afronta o artigo 28 da Lei 13.457/09 e, provavelmente, abrirá uma grande discussão na Câmara Superior do TIT sobre o assunto. Discussão que é muito esperada desde a decisão do STF no ano passado (Tema 1.099). Acredito que, além da mudança no artigo 18 da Lei 13.457/09, outras normas estaduais deveriam ser revistas pela administração paulista, para se adequarem aos precedentes dos tribunais superiores a fim de evitar mais litígios. Todavia, acredito que esse debate ainda demandará tempo, pois sei que o número de contribuintes (não tenho informações oficiais) que questionam administrativa e judicialmente essas questões é pequeno frente àqueles que aceitam e pagam a cobrança, o que permite a manutenção das cobranças a fim de fazer frente à arrecadação estadual.
Com certeza. Sem dúvida alguma, até veio tarde. Quando os órgãos administrativos proferem decisões contrariando a jurisprudência pacificada nos tribunais, contraria-se a lógica e é a agredida a eficiência, resultando em judicialização desnecessária, aumentando os já elevados níveis de beligerância entre fisco e contribuinte, além de sobrecarregar as já assoberbadas vias judiciais.
Na minha opinião, o TIT acertou na decisão. O direcionamento adotado foi positivo e eficaz para o contribuinte, pois obteve, na esfera administrativa, resultado que teria ao recorrer ao Judiciário. Ainda, indica-se que o TIT, ao solucionar a questão adotando precedentes judiciais, desestimula o contribuinte a recorrer ao Judiciário, pois o desfecho será o mesmo. Dessa forma, ao alinhar os julgados administrativos aos precedentes dos tribunais superiores, o Estado deixa de empregar dinheiro público em teses já pacificadas na jurisprudência.