Sociedade Anônima do Futebol: o que é preciso saber?

SAF: tudo sobre o diploma que mudou a cara — e as oportunidades — da atividade futebolística no Brasil

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A Lei nº 14.193/2021, conhecida como Lei da Sociedade Anônima do Futebol (Lei da SAF), possibilitou a transformação de clubes de futebol brasileiros em sociedades anônimas do futebol, estabelecendo normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico, cujos principais aspectos serão abordados ao longo dessa série de artigos. A atividade futebolística no Brasil, que movimenta valores astronômicos no mercado local e mundial, era regulamentada por leis que, juntamente com a má gestão de diversos clubes, foram ineficazes em incentivar novos investimentos e a reestruturação de clubes de futebol endividados.

A maioria dos clubes de futebol brasileiros é constituída sob a forma de associações sem fins lucrativos, regidas pelo Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/02). Entretanto, a estrutura de associação veda a realização de distribuições de lucros para os associados, o que afasta investidores que se empenham em nomear uma gestão eficiente para os clubes de futebol. Em tese, em uma associação, qualquer resultado positivo obtido pelo clube deve ser reinvestido em suas atividades, não podendo ser distribuído; porém, na prática, o que se viu durante muito tempo é que essa falta de incentivo para uma gestão mais eficiente acabou gerando fraudes e desvios de recursos, distanciando investidores sérios, que buscam retornos financeiros por meio do recebimento dos resultados gerados pelo clube e/ou por meio da valorização da própria instituição.

No passado, houve uma tentativa de estruturar modelos societários que atraíssem investidores para clubes de futebol, estrutura conhecida como “clube-empresa”, instituída pela Lei Zico, em 1993, e reformulada pela Lei Pelé, em 1998. Essa iniciativa permitia que um clube de futebol fosse constituído como sociedade empresária. Entretanto, diversos fatores –  como a inexistência de um regime tributário simplificado (erro que não foi repetido na Lei da SAF) – contribuíram para o fracasso da implementação desse modelo societário no Brasil. Nesse cenário, a criação da Lei da SAF teve como principal objetivo permitir a reorganização societária dos clubes de futebol brasileiros, incentivando investimentos e viabilizando também a recuperação de grandes clubes que se encontram em difícil situação financeira e operacional.

Constituição da Sociedade Anônima do Futebol

A Sociedade Anônima de Futebol (SAF) poderá ser constituída de três formas: pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade de futebol; ou pela iniciativa de pessoa natural, jurídica ou fundo de investimento. A Lei da SAF define a “pessoa jurídica original” como a sociedade dedicada ao fomento e à prática do futebol.

Na hipótese de constituição da SAF por transformação ou cisão de clube ou pessoa jurídica original, com intuito de não prejudicar qualquer relação já estabelecida internamente ou com terceiros, a Lei da SAF prevê expressamente que a SAF sucederá o clube ou pessoa jurídica original nos direitos e obrigações perante as entidades de administração (confederação, federação ou liga), bem como nas relações contratuais com atletas profissionais do futebol e nos direitos de participação em campeonatos.

Obrigações e isenções da SAF

No tocante às demais obrigações, a Lei da SAF determinou que a SAF não responderá pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social – que podem ser diversas, como as atividades relacionadas à prática do futebol, exploração de direitos de imagem, exploração econômica de ativos imobiliários, dentre outras, respondendo pelas obrigações que lhe forem transferidas em observância às diretrizes da Lei da SAF.

A responsabilidade pelo pagamento de obrigações anteriores à constituição da SAF que não lhe tenham sido transferidas será do clube ou da pessoa jurídica original. De todo modo, para que a SAF seja um veículo de auxílio para os clubes endividados, a Lei da SAF possibilita que o pagamento aos credores seja feito por meio de receitas próprias do clube, bem como pelas seguintes receitas que lhes serão transferidas pela SAF, quando constituída exclusivamente: por destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF, conforme plano aprovado pelos credores; por destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.

Quanto à forma de pagamento dessas obrigações, a Lei da SAF estabelece que os clubes ou pessoas jurídicas originais poderão efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério: pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções, cujo procedimento é previsto na própria Lei da SAF; ou por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

Aspectos de governança

Sobre as normas de governança, controle e transparência, a Lei da SAF se preocupou em criar vedações para evitar conflitos entre acionistas participantes de outras SAF. As regras estão previstas no artigo 4º e proíbem, de forma taxativa, a participação do acionista controlador em mais de uma SAF. Além disso, o parágrafo único do memo artigo prevê que o acionista titular de pelo menos 10% das ações de uma SAF e titular de qualquer número de ações de outra SAF é proibido (em relação a ambas as SAF) de: votar nas assembleias gerais; participar da administração; e indicar membros da administração. O artigo 6º da Lei da SAF determina que a pessoa jurídica titular de pelo menos 5% das ações de uma SAF é obrigada a informar a pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o seu controle ou que seja a beneficiária final, como forma de promover maior controle e transparência na SAF.

Por fim, com intuito de contribuir para a retomada financeira dos clubes ou pessoas jurídicas originais endividados, bem como viabilizar o financiamento e a expansão das atividades futebolísticas, a Lei da SAF estabelece que as SAF poderão emitir debêntures, denominadas “debêntures-fut”, que deverão observar determinados critérios quanto ao prazo, remuneração e registro.

Esses são somente alguns dos diversos aspectos de alteração trazidos pela Lei da SAF, mas que já evidenciam a capacidade que o modelo da Sociedade Anônima de Futebol tem para transformar as atividades futebolísticas no país, incentivando a alocação de recursos financeiros no setor e viabilizando a reorganização das dívidas dos clubes de futebol. Os benefícios são relevantes e já geram grande movimentação nos times brasileiros – até a data de elaboração deste artigo, já são mais de 29 times que constituíram uma SAF.

É interessante ressaltar que o conceito da atividade futebolística a ser explorado por sociedades empresariais é bem comum em outros países, especialmente na Europa, onde se concentram os maiores times do mundo, como a Sociedade Anônima Desportiva (SAD), em Portugal. O resultado positivo não é por acaso, uma vez que a estrutura empresarial exige uma gestão mais formal, mais eficiente, com o desenvolvimento de estratégias de expansão dos negócios, além de reforçar o compromisso de gerar valor para os sócios e viabilizar o financiamento das atividades por terceiros.


Colaboraram com o texto os associados Rodolfo Pereira Prates, Isabela Ardaya e Rodrigo Amaral e Souza do Freitas Ferraz Advogados.

1 comentário
  1. Juarez Torino Belli Diz

    Artigo excelente. Se possível nos próximos conceituar, com exemplos, as três formas de constituição

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