Governança corporativa nas Sociedades Anônimas do Futebol
Como tratado inicialmente na presente série de artigos, a Lei 14.193/2021, conhecida como Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (Lei das SAFs), foi criada para possibilitar que os clubes de futebol brasileiros, historicamente constituídos sob a forma de associações sem fins lucrativos, passassem a adotar a forma de sociedades anônimas. O objeto do presente artigo é tratar de alguns aspectos das novas diretrizes trazidas pela Lei das SAFs acerca das regras de governança corporativa dos clubes de futebol constituídos como Sociedades Anônimas do Futebol (SAF).
A criação das SAFs em nosso ordenamento jurídico teve como principal objetivo o incentivo à organização mais profissional dos clubes de futebol. Esse fato isoladamente é positivo, contudo, o legislador preocupou-se com possíveis conflitos de interesses que venham a existir entre os acionistas, diretores, torcedores e a comunidade em geral. Assim, ao mesmo tempo em que a Lei das SAFs objetivou incentivar a maior profissionalização do futebol brasileiro, foram criadas regras de proteção de aspectos culturais e sociais do futebol, dentre eles os de identificação do clube de futebol perante a torcida e de preservação da competitividade entre os clubes.
Nesse sentido, o artigo 2º, inciso VII, §3º, da Lei das SAFs prevê que, enquanto o clube original (ou pessoa jurídica original que a constituiu) detiver pelo menos 10% do capital social votante ou do capital social total da SAF, seu voto favorável será condição indispensável acerca de deliberações sobre questões fundamentais ao clube, como:
- alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pessoa jurídica original para formação do capital social;
- qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse;
- dissolução, liquidação e extinção; e
- participação em competições desportivas.
Da mesma forma, o §4º do dispositivo mencionado acima determina que, enquanto o clube original (ou pessoa jurídica original que a constituiu) detiver qualquer participação social na SAF (ou seja, independentemente do número de ações que detiver), seu voto será condição indispensável para a aprovação de deliberações sobre:
- alteração da denominação;
- modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e
- mudança da sede para outro município.
Tais direitos vêm sendo observados em negociações recentes, como aquelas que envolveram a alienação do controle do Cruzeiro, Vasco, Bahia e Botafogo, nas quais o percentual de alienação foi limitado a 90% das ações da SAF, de modo que fosse mantido o poder de veto sobre os pontos elencados acima pelo clube original.
Ademais, a Lei das SAFs traz diversas proibições aplicáveis aos acionistas e membros da administração com o fim de mitigar conflitos de interesse. É o caso do artigo 4º, que proíbe o acionista controlador (individual ou integrante de acordo de controle) de deter participação, direta ou indireta, em outra SAF. Por sua vez, o parágrafo único do referido dispositivo ainda prevê que um acionista que detenha participação igual ou superior a 10%, sem exercer o controle sobre a SAF, e que detenha qualquer participação em outra SAF, não terá direito a voz nem a voto nas assembleias gerais e nem poderá participar da administração dessas companhias, diretamente ou por pessoa por ele indicada. O objetivo principal de tais vedações e/ou restrições é o de evitar que o interesses individuais dos investidores possam afetar negativamente a competitividade de clubes de futebol em competições que venham a participar.
Outro aspecto relevante de governança corporativa está previsto no artigo 5º da Lei das SAFs, que determina a existência obrigatória e funcionamento permanente do conselho de administração e do conselho fiscal. Desse modo, a partir da constituição da SAF, é mandatória a existência de tais órgãos colegiados, visando conferir uma melhor supervisão e fiscalização das decisões e atividades das SAFs.
Inclusive, o artigo 5º traz diversas limitações aplicáveis aos membros da administração das SAFs. Segundo tal dispositivo, não poderão ser integrantes do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria da SAF:
- membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de outra Sociedade Anônima do Futebol;
- membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de clube ou pessoa jurídica original, salvo daquele que deu origem ou constituiu a respectiva SAF;
- membro de órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de entidade de administração;
- atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente;
- treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube, pessoa jurídica original ou SAF; e
- árbitro de futebol em atividade.
Outro aspecto relevante com relação aos diretores está previsto no §5º do referido dispositivo, que estabelece a obrigatoriedade de dedicação exclusiva desses profissionais à administração da SAF, observados os critérios eventualmente estabelecidos no Estatuto Social. Tal regra visa conferir uma gestão mais profissional às SAFs.
De outro lado, para conferir maior transparência às SAFs, o §6º do referido artigo 5º estabelece que a entidade com participação igual ou superior a 5% no capital social da SAF deverá informar todos os dados pessoais da pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o seu controle ou que seja a sua beneficiária final. Vale destacar, ainda, que o não cumprimento dessa obrigação poderá acarretar a suspensão dos direitos políticos e retenção dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra forma de remuneração declarados que beneficiariam tal entidade, sendo que a suspensão irá perdurar até o cumprimento da obrigação de revelação dessas informações.
Ainda com relação ao dever de informar, por força do artigo 8º da referida lei, a SAF deverá manter e atualizar em seu sítio eletrônico:
- o seu estatuto social e as atas das assembleias gerais;
- a composição e a biografia dos membros do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria; e
- o relatório da administração sobre os negócios sociais, incluído o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, e os principais fatos administrativos.
Como se vê, do ponto de vista da governança corporativa, é possível perceber que a Lei das SAFs se preocupou em estabelecer diversas normas que visam a transparência das atividades das SAFs, a preservação das características dos clubes originais em respeito à sua história e relação com o torcedor, bem como a mitigação do risco de as competições serem afetadas por interesses econômicos e individuais dos investidores. Portanto, objetivou a norma criar melhores instrumentos para o desenvolvimento do futebol brasileiro, mantendo os aspectos de identidade perante a torcida e competividade dos clubes de futebol brasileiros.
Coautoria de Rodrigo Amaral e Souza, Rodolfo Pereira Prates e Fernando Rodrigues Vasconcelos, associados do Freitas Ferraz Advogados
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