O polêmico projeto para regular a monetização de dados pessoais

PLP 234/23 prevê a criação da Lei Geral de Empoderamento de Dados e de ecossistema para a venda de dados pessoais

0

Na era da informação, frequentemente se diz que os dados pessoais valem ouro – e vários modelos de negócio se baseiam na monetização desses dados. Todas as condições que envolvem esse mercado deveriam, para alguns, ser reguladas por lei. É o que propõe o Projeto de Lei Complementar (PLP) 234/23, em tramitação sob regime de prioridade na Câmara dos Deputados. As discussões sobre o projeto devem ser extensas, já que a matéria tem tudo para ser polêmica.

A principal novidade do PLP 234/23, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), é a criação do Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados – que seria um sistema que centralizaria as decisões dos titulares acerca do uso e comercialização dos próprios dados pessoais. “O que na prática já acontece por meio da anuência a políticas de privacidade seria institucionalizado a partir de uma plataforma nacional que permite a celebração de contratos entre titulares e plataformas, tendo por base legal o livre consentimento, que pode ser revogado a qualquer momento”, explicam Érica Antunes e Flavia Meleras, associada e consultora do Vieira Rezende Advogados.

A monetização dos dados seria tributada, de acordo com o PLP 234/23 – a receita auferida por pessoa jurídica que coleta, processa, trata ou compartilha dados pessoais de 50 mil ou mais titulares seria taxada a uma alíquota de Cofins entre 10% e 12% sobre as receitas geradas pelas transações de dados pessoas. “Não se trata apenas de garantir o tratamento de dados pessoais em conformidade com determinadas regras, como faz a LGPD, mas sim de permitir que os próprios titulares transacionem seus dados e se insiram na dinâmica de monetização”, afirmam Antunes e Meleras.

Jenne Silva, sócia do Vieira da Rocha, Machado Alves Advogados, diz que a proposta vai no sentido de conferir papel ativo à sociedade na venda de seus dados pessoais: “O objetivo da proposta é conferir uma espécie de “bônus” ao titular dos dados nos resultados econômicos decorrentes do uso de suas informações.”

Polêmica à vista: o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados

Para alguns especialistas em privacidade e proteção de dados, a Lei Geral de Empoderamento de Dados seria, conforme o projeto, conflitante com o sistema de proteção estabelecido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), uma vez que o novo ecossistema de comércio de dados poderia gerar um sistema de “vale tudo” no tratamento de dados em troca de pagamento – especialmente em um país em desenvolvimento e com grandes desigualdades sociais como o Brasil. “Tais especialistas defendem que o PLP 234/23 não apenas se distancia das diretrizes da LGPD, como também caminha em direção contrária às normas de proteção de dados ao redor do mundo, que pretendem dissociar os dados pessoais de um ativo comercializável”.

Para Silva, o tema é delicado e merece cautela por se tratar de valoração de dados e, por sua vez, de possíveis ganhos econômicos decorrentes da monetização das informações: “Aspectos como direito à privacidade e sigilo, além dos concorrenciais, não podem ficar de fora da análise desse contexto regulatório. Por isso, e diante dos efeitos diretos para o titular e para o ecossistema de dados, é importante que esse assunto seja exaustivamente debatido.”

Eugênio Corassa, associado do Freitas Ferraz Advogados, considera que a necessidade de uma lei para tratar da comercialização de dados pessoais precisará ser debatida, além de cotejada com a evolução da aplicação da LGPD: “A própria aplicação da LGPD tem encontrado obstáculos e impasses, tanto no setor público quanto no setor privado, de forma que a promulgação de uma lei que trate do comércio de dados pessoais pode representar um definhamento do ecossistema de proteção de dados pessoais. Em essência, os próprios indivíduos ainda não estão totalmente cientes dos seus direitos garantidos pela LGPD, de forma que uma lei para o comércio de dados pode intensificar a exploração desenfreada dos titulares dos dados sem que haja contrapesos legais nesse sistema.”

Para Corassa, a desigualdade socioeconômica brasileira também deve ser levada em conta, sob o risco de criação de um sistema disfuncional, com duas camadas de indivíduos: aqueles que negociam seus dados em busca de vantagens econômicas e aqueles que valorizam a proteção de sua privacidade.

Outro ponto que merece cuidado, considera Guilherme Guidi, associado do Freitas Ferraz, é que o sistema pode resultar em burocratização da exploração econômica de dados pessoais, além de depender da criação de sistemas para a centralização de dados pessoais, sob pena de obrigar o titular a se vincular a plataformas que talvez não estejam alinhadas aos seus interesses.

Guidi nota ainda que a iniciativa não decorre de um movimento orgânico do mercado e tampouco é encabeçada por uma autoridade reguladora. E, ainda, que pouco menciona a atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), cuja missão é assegurar a ampla e correta observância da LGPD e que deveria ter uma presença significativa no ecossistema de empoderamento/monetização de dados.

“Assim, o PLP 234/23, apesar de representar alguns pontos interessantes, inclusive na compreensão do fenômeno da exploração econômica de dados pessoais, pode significar, na prática, um retrocesso no ecossistema digital brasileiro”, considera Guidi.

Na entrevista abaixo, Antunes, Corassa, Guidi, Meleras e Silva abordam os principais pontos do PLP 234/23.


– Muito se fala sobre a monetização de dados. Do ponto de vista jurídico, existe alguma conceituação do que é a monetização e o que ela engloba?

Érica Antunes e Flavia Meleras: Até o momento, não há no Brasil uma definição legal de monetização de dados. O Projeto de Lei Complementar nº 234/2023 pretende preencher essa lacuna, definindo a monetização de dados como sendo “a coleta, análise, agrupamento, processamento e comercialização de dados obtidos por uma instituição detentora de conta de dados ou receptora de dados mediante livre consentimento de uma pessoa física ou jurídica para a geração de receita ou benefício econômico de terceiros, por meio de plataformas eletrônicas online, aplicações de internet, marketplaces ou ecossistemas de dados”.

De forma geral, a redação proposta no projeto está alinhada com o que hoje se entende por monetização de dados, ou seja, o tratamento e a manipulação de dados pessoais visando um fim econômico. Vale dizer que, embora não haja definição normativa expressa, o conceito de monetização de dados não é novo e já vem sido discutido a nível global há mais de uma década: em 2011, o Fórum Econômico Mundial já previu que os dados pessoais se tornariam um ativo importante do século XXI, uma vez que ensejam a criação de valor econômico e, em 2018, a Revista Forbes reconheceu a monetização de dados pessoais como o modelo de negócios mais rentável da atualidade.

Nesse sentido, o texto do PL 234/23 prevê um Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados, ao qual quem coletar e usar dados online precisa necessariamente aderir formalmente. A proposta visa assegurar “a participação do titular dos dados nos resultados econômicos decorrentes” do uso de seus dados.

Jenne Silva: A monetização de dados pessoais engloba o fato de que as empresas buscam potencializar sua receita e explorar os dados coletados por sua própria experiência ou com foco na geração de receita. Ou seja, se baseia na utilização de dados pessoais e informações para gerar renda de vários modos.

Eugênio Corassa: No senso comum, monetizar está normalmente associado ao ato de transformar algo em dinheiro ou tornar algo rentável, como bens e/ou serviços. No universo jurídico, não é incomum vislumbrarmos o termo ser utilizado da mesma maneira. Com o PLP 234/23, no entanto, a monetização de dados passa a contar com uma definição legal.

Em essência, o projeto, que visa estabelecer um ecossistema brasileiro de monetização de dados, conceitua a monetização de dados como operações que envolvam dados obtidos por um determinado ente que os tenha recebido de uma pessoa física ou jurídica mediante livre consentimento para geração de receita ou benefício econômico de terceiros. Em suma, a monetização de dados é a operação necessária para torná-los rentáveis.


– Há necessidade de uma lei que trate do comércio de dados pessoais ou a LGPD já responde a essa questão?

Érica Antunes e Flavia Meleras: Podemos dizer que a LGPD estabelece bases legais para o tratamento de dados pessoais, sendo uma delas o consentimento do titular.  O que está se propondo como “Lei Geral do Empoderamento de Dados Pessoais”, alcunha com que ficou conhecido o PL 234/23, visa garantir que este consentimento seja viabilizado para a monetização de dados. Ou seja, muito do que o Projeto de Lei traz só é viável diante da maturação de conceitos introduzidos pela LGPD e pela difusão da importância dos princípios trazidos pela LGPD e que devem ser respeitados na hora do tratamento dos dados pessoais, entre eles a integridade dos dados. Porém, a LGPD não trata especificamente sobre comercio de dados pessoais.

Entendemos que o PLP 234/23 vai além da LGPD ao almejar criar o “Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados”, um sistema centralizado em que o titular poderá controlar com o seu consentimento como é realizado o tratamento de seus dados pessoais. Ou seja, o que se faz é criar um mercado de venda de dados pessoais e, ao mesmo tempo, se estabelece uma taxação federal sobre empresas que funcionam na internet, seja para comunicação, compra e venda, aplicações ou sites em geral.

Não se trata apenas de garantir o tratamento de dados pessoais em conformidade com determinadas regras, como faz a LGPD, mas sim de permitir que os próprios titulares transacionem seus dados e se insiram na dinâmica de monetização.

Por outro lado, existem alguns especialistas em privacidade e proteção de dados que opinam que o PL 234/23 é conflitante com o sistema de proteção de dados estabelecida pela LGPD uma vez que geraria um sistema de “vale tudo” no tratamento de dados em troca de pagamento. Em um país em desenvolvimento e com grandes desigualdades sociais, pode ser perigoso tentar por um lado empoderar e conscientizar os titulares de dados pessoais referente a seus direitos e, por outro, colocar a possibilidade de utilizar esses dados pessoais como método de pagamento. Tais especialistas defendem que o PLP 234/23 não apenas se distancia das diretrizes da LGPD, como também caminha em direção contrária às normas de proteção de dados ao redor do mundo, que pretendem dissociar os dados pessoais de um ativo comercializável.

Jenne Silva: A LGPD regula o tratamento de dados pessoais e sensíveis, prevendo regras, obrigações, deveres, bem como, responsabilidades dos agentes de tratamento de dados. A LGPD elenca os requisitos para tratamento dos dados pessoais, bem como as suas finalidades e as respectivas bases legais. Assim, é obrigatória a observância às previsões da LGPD caso a atividade econômica envolva a comercialização de dados pessoais, em especial quando o tratamento dos dados é para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiros.

Eugênio Corassa: Esse ponto em específico é debatível. Em suma, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) visa proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, estipulando parâmetros legais e principiológicos para a exploração dos dados pessoais. Nesse sentido, a LGPD tem como objetivo principal garantir a autodeterminação informativa do cidadão, ou seja, garantir o direito que cada indivíduo tem de controlar e proteger seus dados pessoais.

Isso quer dizer que a LGPD não lida especificamente com o comércio de dados pessoais. No dia a dia, esses dados, apesar de serem de titularidade do indivíduo, estão em posse de empresas que os utilizam para a geração de lucro. No caso de redes sociais, por exemplo, o indivíduo acessa um determinado serviço utilizando os seus dados como moeda de troca.

O projeto da Lei Geral de Empoderamento de Dados tem como fundamento, dessa maneira, permitir uma postura ativa do indivíduo em vender os seus dados e receber uma participação efetiva nos lucros auferidos dessa exploração. Mais do que isso, o projeto de lei tem o objetivo de instituir e regulamentar um ecossistema para a comercialização e exploração desses dados.

Finalmente, a própria aplicação da LGPD tem encontrado obstáculos e impasses, tanto no setor público quanto no setor privado, de forma que a promulgação de uma lei que trate do comércio de dados pessoais pode representar um definhamento do ecossistema de proteção de dados pessoais. Em essência, os próprios indivíduos ainda não estão totalmente cientes dos seus direitos garantidos pela LGPD, de forma que uma lei para o comércio de dados pode intensificar a exploração desenfreada dos titulares dos dados sem que haja contrapesos legais nesse sistema.


– Quais são os principais pontos do PLP 234/23? Ele oferece um encaminhamento adequado para a regulação do comércio de dados pessoais?

Érica Antunes e Flavia Meleras: A principal novidade do PLP 234/23 com certeza é a criação do Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados, sistema que centralizaria as decisões dos titulares acerca do uso de seus dados, permitindo que os titulares comercializem seus próprios dados pessoais. O que na prática já acontece por meio da anuência a políticas de privacidade seria institucionalizado a partir de uma plataforma nacional que permite a celebração de contratos entre titulares e plataformas, tendo por base legal o livre consentimento, que pode ser revogado a qualquer momento.

Outra inovação é a taxação da receita auferida por pessoa jurídica que coleta, processa, trata ou compartilha dados pessoais de 50 mil ou mais titulares. A redação do PLP 234/23 prevê a aplicação de uma alíquota Cofins que poderá oscilar entre 10% e 12% sobre as receitas geradas pelas transações de dados pessoais. Caso aprovado o texto proposto, está prevista uma arrecadação anual entre R$ 2,3 bilhões a R$ 4,2 bilhões.

Destaca-se também o conceito de “agregação de dados”, consolidando os mesmos em grupos, sem identidades individuais, e a “custódia de dados”, atinente à gestão e à segurança da informação.

Outra novidade do projeto é que abrange não apenas indivíduos, mas também proprietários de dispositivos conectados, como dispositivos M2M e internet das coisas.

Por fim, o PLP 234/23 inclui dispositivos na LGPD para tratar de monetização de dados pessoais e incluir a livre iniciativa e a livre concorrência como fundamentos da legislação protetiva de dados pessoais.

Em definitiva, a proposta do PLP 234/23 prevê uma mudança nos modelos de negócios das grandes empresas de tecnologia, que precisarão se reestruturar para continuar disponibilizando o acesso aos dados gerados pelos titulares.

Jenne Silva: O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 234/2023, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia, propõe a regulamentação do comércio de informações pessoais e sensíveis, além de prever uma taxação federal para empresas que operam na internet. Ou seja, a proposta é no sentido de que a sociedade possua papel ativo na venda de seus dados pessoais por meio de uma tributação para empresas online.

O objetivo da proposta é conferir uma espécie de “bônus” ao titular dos dados nos resultados econômicos decorrentes do uso de suas informações. Além disso, o projeto estabelece uma tributação específica para a internet, propondo uma alíquota inicial de 10% de Cofins, podendo chegar a 12%.

Observa-se que o escopo do projeto abrange indivíduos, proprietários de dispositivos conectados, como dispositivos M2M e internet das coisas.

Eugênio Corassa: O principal ponto do PLP 234/23 é a própria criação do ecossistema brasileiro de monetização de dados, o que envolve também a organização de um sistema que permita às empresas interagirem com os titulares desses dados, que vão poder ou não permitir o compartilhamento desses dados com as empresas, mediante recebimento de contraprestação financeira.

Assim, o ponto central do Projeto de Lei é um maior foco na aferição de renda por parte do titular que tem os seus dados explorados, com uma maior centralização da gestão dos dados no titular através de um sistema centralizado que utiliza uma identidade digital única para consolidar informações de diversos usuários e disponibilizá-las para empresas interessadas em comprá-las.

Um último ponto que merece destaque é a mudança de tributação referente à apuração e pagamento das contribuições para o Pis/Pasep e da Cofins para essas empresas integrantes do ecossistema. No caso, a proposta impõe uma alíquota de 10% à receita bruta auferida pela pessoa jurídica que, sozinha e/ou em combinação com outra pessoa jurídica, realize operações de exploração econômica dos dados envolvendo mais de cinquenta mil titulares.

A alíquota também só será aplicável às empresas que aufiram mais de vinte e cinco milhões de dólares por serviços prestados globalmente ou mais de dez milhões de reais para serviços prestados no Brasil. Para o autor da proposta, o foco é que a receita obtida a partir dessa tributação seja vinculada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, criado pela Emenda Constitucional nº 31, de 2001.

Guilherme Guidi: O encaminhamento dado pela lei para o tema da regulação do comércio de dados pessoais demanda alguma cautela. Tal como sugerido, o sistema pode acabar levando a uma maior burocratização da exploração econômica de dados pessoais, além de depender da criação de sistemas para a centralização de dados pessoais, sob pena de obrigar o titular a se vincular a plataformas que talvez não estejam alinhadas aos seus interesses.

No mais, é essencial notar que a iniciativa não decorre de um movimento orgânico do mercado nem de um projeto encabeçado por uma autoridade

reguladora, ao contrário de projetos como o Pix e o Drex, encabeçados pelo Banco Central, por exemplo. Ainda, o projeto pouco menciona a atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), cuja missão institucional é assegurar a mais ampla e correta observância da LGPD no Brasil e, por corolário lógico, deveria ter uma presença significativa no ecossistema de empoderamento/monetização de dados.

Assim, o PLP 234/23, apesar de representar alguns pontos interessantes, inclusive na compreensão do fenômeno da exploração econômica de dados pessoais, pode significar, na prática, um retrocesso no ecossistema digital brasileiro.


– A discussão referente à regulamentação da monetização de dados merece ser ampliada? E quanto à discussão sobre o PLP 234/23?

Érica Antunes e Flavia Meleras: O PLP 234/23 foi apresentado à Câmara dos Deputados em novembro de 2023 e ainda aguarda parecer da Comissão de Defesa do Consumidor. É certo que, embora esteja em regime de tramitação de urgência, o texto legal ainda passará por diversas discussões no âmbito legislativo, até porque se trata de inovação legislativa sem precedentes a nível mundial e que enfrenta oposição de alguns estudiosos dos direitos da privacidade. Para fins de comparação, a LGPD foi originalmente proposta em 2012 e, desde 2016, o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, fonte de inspiração da nossa lei, já havia sido aprovado.

Quanto ao modelo proposto pelo projeto de lei, há pontos cruciais que ainda não foram avaliados, como o nível do potencial adesão da sociedade civil, a operacionalização do sistema em um ambiente globalizado e como garantir a conformidade das empresas com as normas. Vale lembrar que, por exemplo, o projeto enfatiza a obtenção do consentimento claro e direto dos titulares, assegurando que a comercialização de informações seja autorizada apenas para os fins específicos consentidos – e no caso de revogação do consentimento, devem contar com as ferramentas apropriadas para efetivar a eliminação desses dados do sistema.

Por fim, em relação à abrangência do projeto de lei apresentado, a problemática da monetização dos dados pessoais vai muito além do estabelecimento de um mercado formal, perpassando questões jurídicas cíveis, criminais e até mesmo socioeconômicas que ainda não foram devidamente discutidas com a sociedade civil.

Jenne Silva: É um tema delicado, que merece cautela por se tratar de valoração de dados e, por sua vez, de possíveis ganhos econômicos decorrentes da monetização das informações. Aspectos como direito à privacidade e sigilo, além dos concorrenciais, não podem ficar de fora da análise desse contexto regulatório. Por isso, e diante dos efeitos diretos para o titular e para o ecossistema de dados, é importante que esse assunto seja exaustivamente debatido.

Eugênio Corassa: Sim, é preciso um amplo debate com relação à regulamentação da monetização de dados. Antes de tudo, vê-se que o Brasil tem trabalhado para a criação de um ecossistema legal relativo ao processamento de dados, desde o Marco Civil da Internet, a Lei do Cadastro Positivo e a própria LGPD.

Apesar disso, ainda se observa na população em geral um desconhecimento com relação ao tema, bem como uma falta de maturidade em parte da sociedade brasileira em relação a como lidar com os seus dados pessoais. Nesse sentido, para garantir a efetividade de qualquer proposta de lei que vise lidar com o tema, é necessário um debate extenso que leve em conta, de um lado, as necessidades das empresas e, de outro a proteção dos direitos individuais e a privacidade dos cidadãos.

Também é preciso discutir a proposta de lei (PLP 234/23), pois a criação de um ecossistema de monetização e comércio de dados é capaz de gerar impactos extremamente significativos na sociedade brasileira.

Um ponto controverso da proposta, por exemplo, é a exigência de que o titular consinta com a exploração econômica dos seus dados. De um lado, o consentimento precisa ser obtido de forma livre e de acordo com parâmetros legais oriundos da LGPD, o que pode significar uma burocracia imensa para empresas. De outro lado, tem de se levar em conta que o titular, ainda que tome a decisão de consentir com liberdade, pode não compreender plenamente o escopo e o impacto de sua decisão.

Finalmente, a propositura de uma lei como essa deve levar em conta o problema de ampliação das desigualdades sociais no Brasil. No caso, pode-se criar um sistema disfuncional que abre espaço para que indivíduos em situações econômicas desfavoráveis sejam incentivados a vender seus dados em troca de benefícios financeiros, enquanto aqueles mais opulentos optem por manter a sua privacidade intacta.

Corre-se o risco, portanto, da criação, na prática, de uma sociedade dividida em duas camadas distintas: aqueles que negociam seus dados em busca de vantagens econômicas e aqueles que valorizam a proteção de sua privacidade.

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.