Empresas buscam o Judiciário para acessar o Perse

Receita Federal impõe restrições não previstas por lei que criou programa para auxiliar o setor de eventos

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A judicialização vem sendo a saída encontrada por várias empresas para usufruir dos benefícios fiscais e outras vantagens oferecidas pelo Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), criado pela Lei 14.148⁄21 para tentar recuperar os setores da economia mais afetados pela pandemia do covid-19, com ênfase em eventos e turismo. Primeiro, uma portaria do Ministério da Economia restringiu o alcance desses benefícios. Mais recentemente, foi a Instrução Normativa 2.114/22 (IN 2.114/22) da Receita Federal que dificultou o acesso das empresas ao Perse e aos seus relevantes benefícios.   

“Há embasamento para o questionamento das restrições trazidas tanto pela Portaria nº 7.163 de 23 de junho de 2021, do Ministério da Economia, que já estavam sendo objeto de ações judiciais, quanto pela IN 2.114/22, que confirma as ilegalidades da portaria e amplia as condições que jamais foram previstas em lei”, avalia a advogada Fernanda Rizzo Paes de Almeida, associada do Vieira Rezende Advogados.

A Lei 14.148⁄21 definiu quais atividades integram o setor de eventos, mas também dispôs que o Ministério da Economia especificaria quais códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) se enquadrariam na definição do setor de eventos. No ano passado, o Ministério da Economia editou a Portaria nº 7.163, especificando esses códigos. No entanto, criaram-se duas situações: algumas companhias seriam consideradas do setor de eventos independentemente de terem realizado qualquer cadastro (no caso dos códigos que constam do Anexo I da portaria), enquanto outras (Anexo II), para ter acesso aos benefícios do Perse, precisavam estar regularmente inscritas no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur) até o dia 18 de março de 2022, data introduzida pela IN 2114/22. No Anexo II, estão, por exemplo, restaurantes e bares – que não integram o setor de eventos, mas que podem prestar serviços turísticos.

Além de determinar a inscrição no Cadastur para as atividades do Anexo II, a instrução normativa excluiu as companhias do Simples da possibilidade de fazerem jus aos benefícios fiscais do Perse e deixou de fora as receitas e os resultados oriundos de atividades econômicas não relacionadas aos setores de eventos e turismo ou classificadas como receitas financeiras ou receitas e resultados não operacionais. Esta última determinação significa que as empresas do setor precisam segregar as suas receitas vinculadas às atividades listadas na portaria do Ministério de Economia daquelas eventualmente não relacionadas ao setor, que não estariam abrangidas pelo benefício.

Paes de Almeida diz que todas essas restrições não estão previstas pela Lei 14.148⁄21 – com destaque para a vedação às empresas do Simples. Ela considera que, embora que a Lei Complementar 123/06 (relativa às micro e pequenas empresas) determine que os optantes do regime não poderão utilizar ou destinar qualquer valor a título de incentivo fiscal, o assunto deve ser interpretado com cuidado porque o programa foi criado para mitigar os prejuízos da pandemia. “Restringir-se o benefício em prejuízo dos contribuintes do Simples é permitir um tratamento desigual às empresas do setor, beneficiando aquelas que faturam mais em detrimento das pequenas empresas, justamente as mais afetadas pela pandemia, a quem efetivamente o benefício deve ser destinado”, avalia.

A advogada do Vieira Rezende ressalta que já há decisões do Judiciário favoráveis aos contribuintes – elas abarcam, dentre outras, a dispensa do registro no Cadastur e dão acesso ao benefício às empresas do Simples, e que outras decisões devem vir nos próximos meses.

Na entrevista abaixo, Paes de Almeida detalha as restrições impostas pela regulamentação para o usufruto dos benefícios do Perse e o embasamento jurídico que pode fundamentar as ações das empresas na Justiça. 


Quais foram as condições estabelecidas pela Lei 14.148⁄21, que criou o Perse, com relação aos benefícios fiscais das empresas do setor de eventos? Como a lei e a regulamentação posterior definiram as empresas do setor?

Fernanda Rizzo Paes de Almeida:  O Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) foi instituído pela Lei nº 14.148 de 03 de maio de 2021 com o objetivo de promover a recuperação dos principais setores da economia afetados pela crise econômica decorrente da pandemia do covid-19, com ênfase no setor de eventos e turismo.  

A fim de mitigar a perda financeira experimentada pelo setor e possibilitar o capital de giro necessário à retomada econômica, o programa prevê a redução a 0% das alíquotas de Pis, Cofins, IRPJ e CSLL pelo prazo de 60 meses, contado do início da produção de efeitos da lei, e a possibilidade de renegociação de dívidas tributárias e não-tributárias inscritas em dívida ativa até 31/10/2022 com desconto de até 100% do valor dos juros, das multas e dos encargos legais, limitado a 70% do valor total de cada débito, e prazo de 145 meses para adimplemento. 

Para fins do benefício da alíquota zero, não é necessário procedimento prévio de adesão, observado o prazo para fruição de 60 meses a partir da produção de efeitos da lei (março de 2022). Por outro lado, quanto à transação tributária no escopo do Perse, deve ser realizado procedimento de adesão até 30/12/2022 às 19h (com desistência de outras modalidades formalizada até 30/11/2022).

O Perse é destinado às pessoas jurídicas (inclusive entidades sem fins lucrativos) que exercem, direta ou indiretamente, atividade econômica ligada ao setor de eventos. Nos termos do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei nº 14.148/21, integram o setor de eventos as seguintes atividades: 

  • realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos; 
  • hotelaria em geral;
  • administração de salas de exibição cinematográfica; e
  • prestação de serviços turísticos, conforme o artigo 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.

Adicionalmente, o parágrafo 2º do mesmo artigo dispõe que os códigos Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se enquadram na definição de setor de eventos deveriam ser especificados pelo Ministério da Economia, criando, assim, uma presunção de que as atividades vinculadas a estes CNAEs seriam consideradas como pertencentes ao setor de eventos.

Nesse sentido, o Ministério da Economia editou a Portaria nº 7.163 de 23 de junho de 2021, especificando os códigos CNAE que integram a definição de setor de eventos e equiparados. Nos termos da portaria, o Anexo I do ato legal contém a lista dos códigos CNAE pertencentes ao setor de eventos independente de qualquer cadastro, enquanto o Anexo II traz a relação dos códigos CNAE que serão considerados como pertencentes ao setor de eventos desde que a empresa estivesse regularmente inscrita no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur) até o dia 18 de março de 2022, data introduzida pela Instrução Normativa RFB nº 2114 (IN 2.144/22), de 31 de outubro de 2022.

 

– As empresas vêm conseguindo fazer jus aos benefícios fiscais criados pelo programa?

 

Fernanda Rizzo Paes de Almeida:    Em linhas gerais, as empresas têm se beneficiado do Perse. Contudo, pairam diversas dúvidas sobre o alcance e restrições do programa. Vale lembrar que não estão aproveitando o benefício as empresas do Simples e aquelas cujos CNAEs estejam vinculados ao prévio cadastro no Ministério do Turismo e que não tenham providenciado o referido cadastro até o dia 18 de março de 2022. Além disso, com a regulamentação trazida pela IN 2.144/22, as empresas terão de segregar as suas receitas vinculadas às atividades listadas em ato expedido pelo Ministério de Economia daquelas eventualmente não relacionadas ao setor, que não estariam abrangidas pelo benefício.


Quais são as principais condições estabelecidas pela Instrução Normativa 2.114 da Receita Federal para que as empresas tenham acesso aos benefícios do Perse? Essas condições estão em linha com a Lei 14.148 ⁄21?

Fernanda Rizzo Paes de Almeida:    Conforme dispõe a IN 2.114/22, o benefício fiscal previsto no programa não valeria para empresas no Simples Nacional e só poderia ser usufruído por contribuintes com atividades ligadas diretamente a esses setores que estivessem praticando as atividades em 18/03/22 e, para aquelas enquadradas no Anexo II da Portaria do Ministério da Economia, que tivessem Cadastur nessa data. 

A IN 2.114/22 também restringe o benefício fiscal quanto às receitas e os resultados oriundos de atividades econômicas não relacionadas aos setores de eventos e turismo ou que sejam classificadas como receitas financeiras ou receitas e resultados não operacionais.

O referido ato, ainda, explica que o benefício não é aplicável quanto ao Pis e à Cofins-importação.

As condições trazidas pela IN 2.114/22 ao benefício do Perse não estão em linha com as previsões da Lei 14.148/21, representando restrições ao arrepio da lei e extrapolando a competência do ato infralegal.


Há embasamento jurídico para que as empresas questionem pontos da Instrução Normativa 2.114? Quais pontos podem ser questionados e como o Judiciário vem acolhendo as demandas dos contribuintes?

Fernanda Rizzo Paes de Almeida: Há embasamento para o questionamento das restrições trazidas tanto pela Portaria nº 7.163 de 23 de junho de 2021, do Ministério da Economia, que já estavam sendo objeto de ações judiciais, quanto pela IN 2.114/22, que confirma as ilegalidades da portaria e amplia as condições que jamais foram previstas em lei.

O primeiro ponto diz respeito à exigência de que para fruição da alíquota zero as receitas decorrentes estejam diretamente relacionadas às atividades elencadas no artigo 2º da IN: realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos; hotelaria; administração de salas de exibição cinematográfica; e prestação de serviços turísticos.

Isso porque a lei determina que as empresa enquadradas nos CNAEs definidos pela portaria do Ministério da Economia fariam jus ao benefício. Assim, haveria uma presunção de que as empresas com atividades relacionadas aos CNAEs listados estariam incluídas no benefício, não cabendo à Receita Federal interpretação ou exigir comprovação destas atividades.

Da mesma forma, a incabível restrição do benefício às receitas e aos resultados oriundos de atividades econômicas não relacionadas a essas atividades ou que sejam classificadas como receitas financeiras ou receitas e resultados não operacionais. Não há previsão na lei acerca de tal restrição, uma vez que o benefício é destinado às empresas do setor e não às receitas ou aos resultados das atividades incentivadas.

Outro ponto questionável é a obrigatoriedade de que as empresas estivessem exercendo as atividades previstas no Anexo I da Portaria 7163/21 em 18 de março de 2022 e detivessem inscrição regular no Cadastur para as atividades previstas no Anexo II da mesma portaria nesta data. No mesmo sentido dos pontos anteriores, essas condições não estão previstas na Lei 14.148/21, não sendo possível ato infralegal trazê-las.

Ainda, a mais relevante restrição questionável é a vedação do benefício às empresas enquadradas no Simples Nacional. Ainda que a Lei Complementar 123/06 determine que os optantes do regime não poderão utilizar ou destinar qualquer valor a título de incentivo fiscal, ou se valer de alteração em base de cálculo, alíquotas, percentuais ou outros fatores que alterem o valor dos tributos apurados na forma da referida lei, o assunto deve ser interpretado com o devido cuidado.

Isso porque o Perse foi instituído para mitigar os prejuízos decorrentes de evento bastante peculiar, a pandemia. Restringir-se o benefício em prejuízo dos contribuintes do Simples é permitir um tratamento desigual às empresas do setor, beneficiando aquelas que faturam mais em detrimento das pequenas empresas, justamente as mais afetadas pela pandemia, a quem efetivamente o benefício deve ser destinado.

Vale lembrar que o benefício se estende às empresas do lucro presumido, de maneira que a Lei nº 14.390/22 dispensou expressamente a obrigatoriedade do regime do lucro real para a fruição de alíquota zero prevista no inciso IV do caput do artigo. 14 da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998. Deveria o legislador se preocupar não somente com as empresas do lucro presumido, mas também com as empresas do Simples.

A restrição às empresas do Simples não faz qualquer sentido, pois equivaleria a tratar de maneira desfavorável justamente setor beneficiado com tributação simplificada pela Constituição no artigo 146, impedindo a recuperação do setor e violando o princípio da livre concorrência.

E mais, a regulamentação tardia da Lei 14.148/21certamente trará prejuízos aos contribuintes que passaram a usufruir do benefício sem observar tais restrições a partir da vigência da lei, em verdadeira armadilha fiscal.

Felizmente, o Poder Judiciário não tem fechado os olhos para tais ilegalidades, já sendo possível observar decisões favoráveis aos contribuintes, desde decisões que possibilitaram a rápida inscrição em dívida ativa para inclusão na transação, como decisões que dispensaram o prévio cadastro no Ministério do Turismo ou possibilitaram a fruição do benefício por empresas do Simples, a maioria delas antes mesmo da vigência da IN 2.114/22. Com as novas restrições confirmadas pelo dispositivo infralegal, certo é que outros tantos precedentes devem emergir nos próximos meses, inclusive a discussão sobre a necessidade de segregação das receitas objeto das atividades incentivadas, que ainda não havia sido levada ao Poder Judiciário.

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