Mudança da CVM demanda cuidados das companhias

Novo entendimento sobre conflito de interesses vai requerer mais atenção em votos dos acionistas

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A mudança de entendimento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre o conflito de interesses vai exigir das companhias uma maior atenção. Os acionistas não deverão ser impedidos de votar a priori em matérias nas quais pode haver conflito de interesse, mas precisarão exercer os votos de forma mais fundamentada. 

O mercado aguarda para o ano que vem a publicação de um parecer de orientação da CVM esclarecendo a questão. “O parecer de orientação exigirá uma atuação cautelosa do acionista ao exercer o direito de voto em situações de conflito de interesses, demonstrando que a decisão foi ponderada e tomada em conformidade com o melhor interesse da companhia”, consideram as advogadas Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues, associadas do Carneiro de Oliveira Advogados.

Elas esperam que o parecer traga maior clareza para a atuação de acionistas em situações de potencial conflito de interesses, descrevendo possíveis procedimentos de mitigação que poderão ser adotados e facilitando a análise e fundamentação dos casos levados a julgamento. 

A visão da CVM sobre conflito de interesse mudou após dois julgamentos recentes, um envolvendo a Saraiva e outro a Springer. Após esses julgamentos, a autarquia voltou a adotar uma visão que já havia abandonado, a interpretação material, pela qual admite-se o voto do acionista em situação de conflito e depois se analisa se esse voto ocorreu ou não no melhor interesse da companhia (com potencial para anulação). Anteriormente, a autarquia adotava a interpretação formal, que impedia o voto do acionista em situação de conflito. Como agora a tendência é de se permitir os votos do acionista em situação de conflito, as advogadas acreditam que eles terão que tomar precauções para demonstrar, caso questionados, que o voto ocorreu no melhor interesse da companhia e não em proveito próprio. 

Na entrevista abaixo, Krieck e Rodrigues relembram como a autarquia já tratou o tema e abordam a mudança de entendimento. 


O que diz a Lei das Sociedades Anônimas sobre o conflito de interesses e como a CVM historicamente encarou os casos envolvendo a questão?

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: Os artigos 115 e 156 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, conforme alterada (Lei das S.A.) dispõem sobre a atuação dos acionistas e administradores em caso de conflitos de interesses com a companhia.

De acordo com o artigo 115, é considerado abusivo o voto exercido por um acionista com o objetivo de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas. O parágrafo 1º desse artigo estabelece as situações em que o acionista deve abster-se de exercer seu direito de voto: aprovação do laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social; aprovação de suas próprias contas como administrador; deliberações que possam beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia.

Há, portanto, uma previsão expressa na Lei das S.A. de vedação absoluta do exercício do direito de voto nas duas primeiras situações apresentadas no parágrafo 1º do artigo 115 acima, quais sejam: a aprovação do laudo de avaliação de bens em aumento de capital e a aprovação de suas próprias contas como administrador.

Já o artigo 156 da Lei das S.A. veda a intervenção do administrador em operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os outros administradores. Cumpre ressaltar, ainda, que o administrador em situação de conflito de interesses deverá avisar os demais administradores de seu impedimento e fazer consignar na ata da reunião a natureza e extensão do seu interesse.

Historicamente, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já defendeu a interpretação material do conflito de interesses, pela qual faz-se necessária a análise do mérito da deliberação tomada por acionista ou administrador que possui interesses conflitantes com a sociedade para determinar se o voto em questão deveria ser anulado, não podendo ser impedido de votar antes de tal verificação.

Entretanto, ao longo da última década, a interpretação predominante da CVM vinha sendo a do conflito de interesses formal, ou seja, há uma vedação absoluta à deliberação tomada por acionista ou administrador em situação de conflito de interesses com a companhia.

Com o julgamento de dois processos recentes envolvendo conflito de interesses (PAS CVM nº 19957.004392/2020-67 e o PAS CVM nº 19957.003175/2020-50), a CVM, por maioria, alterou novamente seu posicionamento predominante ao decidir pela aplicação da interpretação material do conflito de interesses.


O que a autarquia decidiu no julgamento de dois casos recentes envolvendo conflito de interesse (Saraiva e Springer)?

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: A CVM julgou recentemente dois processos de relatoria do diretor Alexandre Rangel envolvendo conflito de interesses: PAS CVM nº 19957.004392/2020-67 e o PAS CVM nº 19957.003175/2020-50. O primeiro analisou a regularidade do procedimento de alienação de companhias controladas pela Springer aos seus acionistas controladores, enquanto o segundo processo analisou a regularidade dos votos exercidos pelos acionistas controladores da Saraiva em deliberação referente ao aumento do capital social da companhia.

No que tange ao PAS CVM nº 19957.004392/2020-67, os acusados, controladores da Springer, foram condenados, sendo que a principal discussão envolveu a adoção do critério material ao invés do critério formal para a análise da situação de conflito de interesses, com fundamento na interpretação sistemática da Lei das S.A. e na presunção de boa-fé, que prevaleceu entre a maioria dos membros do colegiado. Sendo assim, a decisão envolveu uma avaliação da vantagem auferida pelos acionistas em situação de conflito de interesses e de tais interesses conflitantes com a companhia, de forma a analisar a regularidade do direito de voto exercido, ou seja, após o exercício do referido voto.

Com relação ao PAS CVM nº 19957.003175/2020-50, a maioria dos diretores votou pela absolvição dos acionistas controladores da Saraiva mediante adoção do critério material para a análise do conflito de interesse em questão, com base nos mesmos fundamentos utilizados no outro processo julgado já mencionado, sendo que nesse caso a acusação não teve êxito para comprovar a situação do conflito de interesses.

Adicionalmente, nesse caso também foi avaliado o eventual descumprimento do artigo 156 da Lei das S.A. e, nessa situação também, por maioria, o colegiado entendeu que se aplica a interpretação do conflito de interesses material, sendo que a avaliação dos interesses da companhia e do administrador só são possíveis a posteriori.

Vale mencionar que em ambos os processos a diretoria Flávia Perlingeiro apresentou divergência quanto à adoção da teoria do conflito material, mencionando em sua manifestação que ambas as teorias (do conflito formal e material) “evidenciam insuficiências e inadequações que impedem uma clareza quanto ao tratamento jurídico da matéria no Brasil e, assim, corroem a segurança jurídica”.


Em futuro parecer de orientação da CVM, quais pontos ela deverá esclarecer?

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: O parecer de orientação tratará sobre o voto do acionista controlador em caso de potencial conflito de interesses. A ideia é que o parecer de orientação não determine se as situações de conflito de interesse devem ser interpretadas de acordo com a natureza material ou formal, mas deverá esclarecer se o acionista em potencial conflito de interesses poderá votar, caso entenda que esteja preparado e apresente as devidas justificativas.

O parecer de orientação exigirá uma atuação cautelosa do acionista ao exercer o direito de voto em situações de conflito de interesses, demonstrando que a decisão foi ponderada e tomada em conformidade com o melhor interesse da companhia.


As mudanças de entendimento geram insegurança jurídica? O parecer da CVM será suficiente para conferir maior segurança jurídica aos casos envolvendo conflito de interesses ou seria necessária alguma mudança na Lei das S.As?

Gabriela Saad Krieck e Ana Carolina Haddad Anselmo Rodrigues: Tendo em vista a complexidade e as diversas interpretações sobre o tema, as alterações de posicionamento da CVM, embora sejam intrínsecas às regras de composição do órgão, geram certa insegurança jurídica ao mercado.

Espera-se que o parecer de orientação da CVM traga maior clareza para a atuação de acionistas em situações de potencial conflito de interesses na medida em que descreva possíveis procedimentos de mitigação que poderão ser adotados e facilite a análise e fundamentação dos casos levados a julgamento, embora o objetivo do parecer não seja tratar sobre a natureza da interpretação do conflito de interesses.

Tendo em vista que este tema sofreu divergência de interpretação ao longo dos anos, inclusive no âmbito doutrinário, uma forma de garantir previsibilidade a longo prazo e até modernizar a redação dos artigos aqui citados da Lei das S.A. seria via mudança legislativa, embora existam opiniões contrárias caso a ideia seja estabelecer em lei a interpretação correta do conflito de interesses.

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