Desconsideração de personalidade na RJ encontra barreiras

Instituto que visa cobrar sócios e administradores de empresas em recuperação judicial esbarra em desafios práticos

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O rombo contábil da Americanas S.A. e a consequente recuperação judicial (RJ) da empresa trouxe à tona a desconsideração de personalidade jurídica — que ocorre quando a autonomia patrimonial da empresa é rompida para que os sócios ou administradores respondam, com seus bens pessoais, pelas dívidas. Esse foi o pleito, por exemplo, de vários sindicatos que entraram com ação civil pública pedindo o bloqueio das contas dos três acionistas de referência da empresa, conforme noticiado pelo Valor Econômico. Vários bancos credores também tentaram usar o instrumento.

A utilização do instrumento em empresas em RJ é possível, mas ela traz alguns desafios. “Claro que, do ponto de vista prático, a depender da situação, se o pedido de recuperação judicial envolve diversas empresas do mesmo grupo econômico e o resultado de eventual decisão implicar na extensão dos efeitos da desconsideração para outra empresa do mesmo grupo econômico, também em recuperação judicial, o efeito é praticamente nulo”, afirma Renato Tavares, sócio do FTA Advogados. Além disso, Tavares explica que não seria “juridicamente possível” fazer o pedido de desconsideração após o deferimento do processamento da RJ, uma vez que o crédito objeto do pedido estaria com a exigibilidade suspensa (pela RJ). Nesse caso, não haveria uma obrigação que demandasse a responsabilização do sócio.

Érika Aguiar Carvalho Fleck e Guilherme França, sócia e parceiro do Carneiro de Oliveira Advogados, explicam que recente alteração da Lei de Falências (artigo 6º-C, Lei 11.101/2005) vedou a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações da empresa em RJ — o que já embasa alguns julgados da Justiça do Trabalho negando a desconsideração da personalidade jurídica. Eles lembram que há decisões que consideram que a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa em RJ deve ser realizada apenas pelo juiz que conduz a recuperação. “Em casos envolvendo empresa em recuperação judicial, é preciso que o Judiciário tenha especial cautela, pois a medida poderá afetar o processo de soerguimento da empresa e o pagamento dos credores”, avaliam.

Há ainda o questionamento sobre eventual excesso no uso da desconsideração da personalidade jurídica. “O instituto passou a ser utilizado de forma ampla e irrestrita, inclusive em razão de precedente do Superior Tribunal de Justiça que entendeu inexistir condenação em verbas sucumbenciais por se tratar de incidente, e não ação própria, reduzindo o risco do insucesso das ações, situação diversa daquela que o credor enfrentaria se ingressasse com ação fundada em fraude contra credores”, diz Tavares.

Fleck e França também dizem que a medida é bastante comum, mas que deveria ser excepcional: A desconsideração da personalidade jurídica, quando realizada em desacordo com os preceitos legais, gera insegurança jurídica, aumento dos custos de transação e maior percepção de risco entre empreendedores e investidores no país”. Eles lembram que alterações na Lei da Liberdade Econômica demonstram a intenção do legislador em uma utilização mais parcimoniosa do instituto. “É preciso que a vontade do legislador seja observada pelos tribunais”, consideram.

Na entrevista abaixo, Tavares, Fleck e França abordam o instituto e a sua utilização nas empresas em RJ.


– No que consiste a desconsideração da personalidade jurídica e quando ela pode ser utilizada?

Renato Tavares: A desconsideração da personalidade jurídica é o instrumento legal utilizado pelos credores (e pelo Ministério Público) para romper a autonomia patrimonial da sociedade visando responsabilizar os sócios e administradores, nos casos de abuso da personalidade jurídica.

Érika Aguiar Carvalho Fleck e Guilherme França: Trata-se de uma medida legal pela qual a personalidade jurídica é afastada para que o patrimônio de terceiros seja alcançado para responder por obrigações da empresa. Admite-se também a desconsideração inversa, pela qual é possível responsabilizar a empresa por obrigações contraídas pelo sócio.

A regra geral, denominada “teoria maior”, objetiva a preservação da autonomia patrimonial e a utilização da desconsideração da personalidade jurídica em casos excepcionais, quando comprovado o desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50, Código Civil). Em recente alteração, o Código Civil passou a definir expressamente que desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos.

A confusão patrimonial é definida como a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por cumprimento reiterado pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa, transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, excetuados os de valor proporcionalmente insignificante e outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Existe ainda a denominada “teoria menor”, prevista no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, que admite a desconsideração da personalidade quando ela for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor. Nesse caso, não se exige a prova dos requisitos do Código Civil, como fraude ou abuso de direito, bastando a demonstração do estado de insolvência que representa obstáculo aos prejuízos do consumidor. A mesma “teoria menor” é utilizada para casos de ressarcimento de prejuízos causados ao meio ambiente (artigo 4º, Lei 9.605), bem como no direito do trabalho.


– A quem a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada? Além dos acionistas ou sócios, também aos administradores das empresas?

Renato Tavares: A desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada tanto aos sócios quanto aos administradores da sociedade. Importante destacar que a desconsideração da personalidade jurídica disciplinada pelo Código Civil (com as modificações realizadas pela Lei De Liberdade Econômica) estende os efeitos de certas e determinadas relações e obrigações da sociedade para os sócios ou administradores no caso de abuso da personalidade, e que tenham sido beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Érika Aguiar Carvalho Fleck e Guilherme França: Segundo o artigo 50 do Código Civil, a desconsideração pode ser aplicada aos administradores ou aos sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Já no caso da teoria menor prevista no Código de Defesa do Consumidor, o entendimento predominante do Superior Tribunal de Justiça é que a “teoria menor” pode ser utilizada apenas para alcançar bens dos sócios, mas não de administradores não sócios.


– Ela pode ser aplicada a empresas em recuperação judicial (RJ)? Nesse caso, depende de alguma forma da aprovação do plano de RJ ou as duas coisas não estão relacionadas?

Renato Tavares: A recuperação judicial não impede a instauração de eventual incidente de desconsideração da personalidade jurídica ou implica na necessidade de autorização dos credores, uma vez que o objetivo é atingir bens dos sócios ou administradores que não estão – em tese – protegidos pelos efeitos da recuperação judicial.

Claro que, do ponto de vista prático, a depender da situação, se o pedido de recuperação judicial envolve diversas empresas do mesmo grupo econômico e o resultado de eventual decisão implicar na extensão dos efeitos da desconsideração para outra empresa do mesmo grupo econômico, também em recuperação judicial, o efeito é praticamente nulo.

Adicionalmente, pode-se argumentar que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica feito após o deferimento do processamento da recuperação judicial não seria “juridicamente possível”, uma vez que o crédito objeto do pedido estaria com a exigibilidade suspensa em razão do deferimento do processamento da recuperação judicial e, portanto, inexistiria obrigação apta a ensejar a responsabilização do sócio. Além disso, se a desconsideração da personalidade jurídica estiver fundamentada apenas no pedido de recuperação judicial, a Lei de Recuperação veda expressamente a responsabilização de terceiros, como decorrência do mero inadimplemento (artigo 6-C).

Érika Aguiar Carvalho Fleck e Guilherme França: Em recente alteração, a Lei de Falências passou a vedar a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações da empresa em recuperação judicial (artigo 6º-C, Lei 11.101/2005). Já existem julgados da Justiça do Trabalho entendendo pelo não cabimento da desconsideração da personalidade jurídica em razão do novo dispositivo legal previsto na Lei de Falências.

Ademais, existem decisões no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa em recuperação judicial deve ser realizada apenas pelo juiz que conduz a recuperação judicial. Em casos envolvendo empresa em recuperação judicial é preciso que o Judiciário tenha especial cautela, pois a medida poderá afetar o processo de soerguimento da empresa e o pagamento dos credores.


– Como o Judiciário tem acolhido os pedidos de desconsideração da personalidade jurídica? Na prática, esse instrumento tem sido bastante utilizado para proteger os credores? 

Renato Tavares: A regulação do instituto pelo Código de Processo Civil de 2015 trouxe melhoras no sistema, uma vez que criou procedimento específico inexistente até então. Da mesma forma, a alteração no artigo 50 do Código Civil (promovida pela Lei De Liberdade Econômica) visou delimitar de forma expressa as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, descrevendo os atos que caracterizariam desvio da personalidade e a confusão patrimonial apta a permitir a desconsideração da personalidade jurídica.

Apesar da referida modificação, as decisões judiciais ainda são variadas e, em muitos casos, não se atentam para os requisitos legais, ou ainda, têm como fundamento atos de fraude à execução ou fraude contra credores que possuem regramento próprio e efeitos jurídicos diversos daqueles decorrentes da desconsideração da personalidade jurídica.

O instituto passou a ser utilizado de forma ampla e irrestrita, inclusive em razão de precedente do Superior Tribunal de Justiça que entendeu inexistir condenação em verbas sucumbenciais por se tratar de incidente, e não ação própria, reduzindo o risco do insucesso das ações, situação diversa daquela que o credor enfrentaria se ingressasse com ação fundada em fraude contra credores.

Érika Aguiar Carvalho Fleck e Guilherme França: É uma medida legal bastante comum, quando na realidade deveria ser, em regra, excepcional. A desconsideração da personalidade jurídica, quando realizada em desacordo com os preceitos legais, gera insegurança jurídica, aumento dos custos de transação e aumento da percepção de risco de empreendedores e investidores no país.

As recentes alterações legais, em especial aquelas promovidas pela Lei da Liberdade Econômica, demonstram a intenção do legislador em uma utilização mais parcimoniosa da desconsideração da personalidade jurídica. É preciso que a vontade do legislador seja observada pelos tribunais.

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