Alterações no Código Civil garantem mais segurança e melhores opções para empreendedor

Recém-sancionada, Lei da Liberdade Econômica esclarece temas como desconsideração de personalidade jurídica e confusão patrimonial

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A fim de criar garantias para o livre exercício do empreendedorismo, a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) estabeleceu diretrizes que têm impacto direto sobre o Direito societário no País. A lei, alinhada com a inclinação do governo Jair Bolsonaro à limitação da atuação do Estado na economia, altera alguns pontos do Código Civil brasileiro (Lei 10.406/02). A Lei da Liberdade Econômica, por exemplo, editou o artigo 50 do código, para deixar mais claros e rígidos os requisitos para desconsideração de personalidade jurídica — com isso, sócios de uma empresa agora podem ser responsabilizados por uso indevido dessa ferramenta legal.

Também há mudanças relacionadas a uma eventual confusão entre o patrimônio da sociedade e o patrimônio particular do sócios, questão endereçada com a inclusão do artigo 149-A ao Código Civil. Mais uma novidade da Lei 13.874/19 é a criação da figura da sociedade unipessoal, com responsabilidade limitada a um único sócio. A nova opção societária não exige um capital mínimo ou máximo, segundo termos do novo artigo 1.052 do Código Civil. Trata-se de uma alternativa às sociedades limitadas (Ltda.) e às empresas individuais de responsabilidade limitada (Eireli). No caso específico dessa segunda modalidade, a nova lei favorece a iniciativa privada principalmente porque antes havia a exigência de capital social mínimo de 100 salários mínimos no ato de sua constituição, o que criava uma barreira para os pequenos negócios, que representam quase 99% dos empreendimentos no País.

A seguir, advogados afiliados ao Legislação & Mercados comentam as implicações, para o Direito societário, da Lei da Liberdade Econômica.


Garantia da livre iniciativa

A Lei 13.874/19 estabelece uma série de medidas para garantir a livre iniciativa, tema caro ao Ministério da Economia. Qual a relevância da nova legislação para a atividade econômica do País?

Ao instituir a “Declaração de Direitos e Liberdade Econômica”, a Lei 13.874/19 positivou normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, bem como normas de limitação da atuação do Estado como agente normativo e regulador, em um imprescindível reforço ao princípio constitucional da liberdade econômica.

Com fundamento na liberdade no exercício de atividades econômicas, na presunção de boa-fé do particular perante o Estado, na intervenção mínima e excepcional do Estado sobre as atividades econômicas e no reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado, a Lei 13.874/19 projetou um mercado mais seguro e livre para os empreendedores e instituiu uma série de medidas necessárias para flexibilizar, simplificar e desburocratizar procedimentos legais. Trata-se de um claro esforço para se reduzir os custos do desenvolvimento de atividades econômicas no País.

A despeito das críticas, assentadas na “obviedade” das regras dispostas na legislação, a positivação das garantias de livre mercado e a atualização de procedimentos legais são de suma importância para o crescimento do empreendedorismo no Brasil, uma vez que a insegurança jurídica, o alto grau de intervencionismo judicial que se tem visto atualmente e os elevados encargos que permeiam o setor empresarial constituem um entrave relevante ao desenvolvimento de atividades econômicas no País.

Vale ressaltar que a Lei 13.874/19 instituiu regras que reduzem significativamente os impasses ao desenvolvimento de produtos e serviços relacionados à novas tecnologias, o que tende a implicar modernização de setores da economia.

Paula Chaves/Coimbra & Chaves: A nova lei visa incentivar a realização de negócios, revogando normas meramente burocráticas e inflexíveis. Nesse sentido, nota-se o estabelecimento de diretrizes que resgatam princípios constitucionais vinculados à atividade econômica, com destaque para a livre concorrência, o tratamento favorecido para empresas de pequeno porte e a função social da atividade empresária e da propriedade privada.

Dessa forma, as normas introduzidas pela lei proporcionam uma mudança significativa no cenário da economia brasileira, por meio da definição de condições concretas capazes de incentivar o empreendedorismo e a exploração das atividades empresarias, com isso, o crescimento econômico.

A nova legislação tem importantes novidades e diretrizes — especialmente na linha de desburocratização, simplificação e consolidação de conceitos anteriormente vagos — que muito contribuirão para o desenvolvimento das atividades empresariais e para o fortalecimento econômico brasileiro.

Mais do que reafirmar o óbvio e colocar alguns pingos nos “is”, a Lei da Liberdade Econômica envolve alterações contundentes na tônica de assunção e atribuição de responsabilidades para as partes contratantes, favorece a segurança jurídica, reduz entraves pontuais, constitui novas formas de organização comercial e societária, cujas iniciativas deverão impulsionar a realização de investimentos e constituição de novos negócios.

 


Confusão patrimonial e desconsideração de personalidade jurídica

A nova lei mudou o artigo 50 do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/02), que estabelece o mecanismo da desconsideração da personalidade jurídica. Além da nova redação do artigo, detalhando o que é desvio de finalidade, foi adicionado o artigo 149-A, que trata de confusão patrimonial. Como as duas alterações no Código Civil podem influenciar o empreendedorismo no Brasil?

A desconsideração da personalidade jurídica, prevista no Código Civil, é uma medida que permite que os sócios sejam responsabilizados por obrigações da sociedade, em casos de utilização indevida da pessoa jurídica, por meio da desconstituição da separação patrimonial existente o sócio e sociedade.

É amplamente sabido, entretanto, que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica vinha sendo indevidamente aplicado pelo Poder Judiciário, uma vez que a definição legal mais abstrata dos requisitos de abuso da personalidade jurídica — ou seja, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial — ensejavam decisões fundamentadas em critérios completamente distintos. Há decisões que, inclusive, consideravam a simples insolvência da pessoa jurídica como fundamento suficiente para atingir o patrimônio do sócio.

Nesse contexto, um mecanismo que deveria ser utilizado em caráter excepcional passou a ser adotado como regra, o que gerou insegurança entre os empreendedores — que, mesmo atuando dentro dos limites da lei, tinham receio de que os próprios bens fossem atingidos em uma eventual insolvência da empresa.

A edição da Lei 13.874/19 é salutar nesse aspecto, uma vez que enrijeceu os requisitos de desconsideração da personalidade jurídica. Ao garantir maior proteção à personalidade jurídica, definindo hipóteses restritas e mais objetivas nas quais o patrimônio do sócio responderá pelas dívidas da empresa, os riscos de atuação do empresário são reduzidos, o que incentiva o crescimento do empreendedorismo e o desenvolvimento econômico.

A inserção do artigo 49-A e alteração do artigo 50 no Código Civil delinearam os pressupostos que ensejam a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, trazendo maior segurança e estabilidade quanto às normas aplicáveis ao caso.

Em relação à inclusão do artigo 149-A, observa-se que a norma visa corroborar os efeitos produzidos pela aquisição da personalidade jurídica pelas sociedades no que diz respeito à separação do seu patrimônio do patrimônio particular dos seus sócios. O acúmulo de débitos ou eventual crise econômica e financeira, provisória ou definitiva, da pessoa jurídica implica a responsabilização pessoal dos sócios como consequência automática. Todavia, há situações excepcionais em que se emprega o instituto da personalidade jurídica, de modo a afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica e impedir que seja utilizado como instrumento de fraude. É nesse contexto que as alterações promovidas no âmbito da desconsideração da personalidade jurídica são benéficas tanto para sócios quanto para terceiros.

Nesse sentido, os dois critérios para o reconhecimento da desconsideração da personalidade jurídica são o desvio de finalidade e a confusão patrimonial incidente no âmbito da empresa — aspectos que, com a Lei da Liberdade Econômica, apresentam em sua definição maior objetividade.

As mudanças estabelecem a necessidade do dolo na configuração do desvio de finalidade ou alteração de sua finalidade original como causa para a desconsideração. E a mera existência de grupos econômicos não será mais precedente para sua aplicação, o que reduzirá consideravelmente o risco para grandes grupos econômicos e empresas coligadas.

Essas alterações são de enorme importância para o fortalecimento do empreendedorismo no Brasil, na medida em que dão definição mais concreta a conceitos anteriormente vagos e sobre os quais decisões judiciais — especialmente em primeiras e segundas instâncias — eram baseadas para se desconsiderar a personalidade jurídica de empresas, atingindo-se o patrimônio pessoal de seus sócios. Com os novos dispositivos, tornaram-se muito mais claros os requisitos para a configuração dos conceitos de desvio de finalidade e de confusão patrimonial, essenciais para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, o que gera muito mais segurança jurídica para as empresas e seus investidores.

As alterações deverão significar maior diligência, reflexão e assertividade na realização e na condução dos negócios. Ganha-se não apenas com o aumento da liberdade, mas também com o aumento de responsabilidade. Dos que têm interesse em conduzir seus negócios e contratar de forma mais livre e dinâmica, seria igualmente exigível maior responsabilidade.


Sociedade limitada unipessoal, alternativa à Eireli

Também foi criada a chamada sociedade limitada unipessoal. Qual o impacto dessa novidade na seara do Direito societário? Por que ela se fez necessária, visto que o Código Civil já incluía a modalidade de pessoa jurídica intitulada empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli)?

A relevância da criação da sociedade unipessoal está atrelada ao fato de que, antes da edição da Lei 13.874/19, a pessoa física que desejasse desenvolver individualmente atividades econômicas tinha que optar pela constituição de uma Eireli, que exige a integralização de um capital social de no mínimo 100 salários mínimos. Essa obrigação, entretanto, é incompatível com a realidade de grande parte dos empresários do País; eles acabavam desenvolvendo atividades econômicas informalmente ou constituindo sociedades limitadas “simuladas”, acrescentando um outro sócio no quadro societário com participação irrisória.

A Lei 13.874/19, portanto, permite que pessoas físicas passem a desenvolver formalmente atividades econômicas, bem como concede uma alternativa de regularização das sociedades limitadas que precisem recompor a pluralidade dos sócios, por meio da sua transformação em uma sociedade limitada unipessoal.

Outro aspecto relevante da inovação legislativa é o fato de que cada pessoa física poderá constituir mais de uma sociedade limitada unipessoal, o que permite, diferentemente do que ocorre no caso das Eirelis, o desenvolvimento de mais de uma forma de atividade econômica.

Até a aprovação da Lei 13.874/19, a sociedade limitada não poderia ser constituída com um único sócio. Mas é curioso notar que isso não alterou a previsão do artigo 1.033, IV, do Código Civil, que prevê dentre as hipóteses de dissolução da sociedade a não reconstituição da pluralidade de sócios no prazo máximo de 180 dias.

De todo modo, fato é que a sociedade unipessoal passa a ser um veículo importante para exercício da atividade empresarial. A sociedade poderá ser constituída por único sócio com responsabilidade limitada, sem necessidade de constituição de capital social mínimo. Inclusive, a existência do requisito do capital mínimo de 100 salários mínimos vigentes totalmente integralizado para a constituição da Eireli representa, por vezes, óbice financeiro à sua escolha. Assim, as normas aplicáveis à sociedade unipessoal tendem a ser mais atrativas aos empreendedores que àquelas impostas à Eireli.

A novidade é bastante positiva na medida em que vai evitar uma prática até então muito adotada: a inclusão de sócios nas sociedades limitadas, muitas vezes com apenas uma cota de sua propriedade, para fins de cumprimento do antigo requisito da pluralidade de sócios, sem qualquer função ou papel na sociedade em questão. Além disso, há um grande benefício no sentido de se permitir a existência de sociedades de responsabilidade limitada de seus sócios sem que, no entanto, haja a obrigação de se atender aos requisitos da Eireli — principalmente o de investimento mínimo, que é bastante elevado. Assim, os empresários não mais precisarão buscar outras pessoas para integrar o quadro de sócios de suas empresas sem que tenham papel relevante na vida social e, ao mesmo tempo, não precisarão fazer o investimento mínimo obrigatório para as Eirelis.

A Lei da Liberdade Econômica passa a autorizar a constituição da sociedade unipessoal sem a necessidade de capital mínimo e permite superação de limites de faturamento. A partir disso, torna-se viável a constituição de “empresa”, pessoa jurídica dotada de CNPJ, com sócio único/individual, com a responsabilidade limitada ao capital social, mas sem necessidade de integralização de capital mínimo, bem como de faturar acima da limitação fixada para o Microempreendedor Individual (MEI).

 


Quais outras inovações e mudanças merecem destaque? Existem pontos de preocupação que deverão ser tratados num futuro próximo?

Dentre diversas inovações oportunas, merece destaque o fato de que a Lei 13.874/19, em linha com os princípios de liberdade no exercício de atividades econômicas e de intervenção mínima e excepcional do Estado, assentou o posicionamento acerca da prevalência da autonomia privada das partes na interpretação jurídica dos contratos.

A norma criada, que prevê que todas as regras de direito empresarial serão subsidiárias ao que for avençado pelas partes em contratos empresariais paritários, tem espaço relevante no meio jurídico brasileiro, em contraposição ao comportamento predominantemente intervencionista do poder público sobre as relações privadas. É certo, entretanto, que o dispositivo merece atenção, devendo ser aplicado caso a caso pelo Poder Judiciário, sob pena de fragilizar empresários que queiram contestar as cláusulas contratuais que julgarem injustas, em momento posterior à celebração do negócio jurídico.

A Lei da Liberdade Econômica também envolveu alterações que concretizam princípios. A mudança introduzida pelo §1º, do artigo 421 se presta a nortear o exercício da atividade jurisdicional no sentido de reduzir a relativização da força obrigatória dos contratos, por meio de revisão contratual judicial ou arbitral, conforme o caso.

Vale lembrar que a prestação de revisão contratual e o acolhimento dessa pretensão representam uma exceção à regra de que o contrato faz lei entre as partes. Isso porque, a rigor, os contratos devem cumpridos nos exatos termos pactuados, em observância ao princípio da força obrigatória dos contratos e da autonomia privada. Logo, o exercício da função jurisdicional de forma restrita veio fortalecer as condições livremente negociadas pelas partes.

No âmbito das contratações do direito privado, é interessante notar também que, dentre os novos parâmetros conferidos à interpretação dos negócios jurídicos previstos no artigo 133, há, em especial, o comportamento das partes posterior à celebração do negócio e uma interpretação mais benéfica à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável.

Sobre as mudanças de caráter principiológico introduzidas no Código Civil vale também salientar que a Lei da Liberdade Econômica representa medida favorável à dinâmica empresarial, na medida em que o texto beneficia diversos empreendedores que antes se viam reféns de alvarás e licenças regulatórias, uma vez que foi extinta a necessidade desses atos regulatórios para atividades de baixo risco.

São importantes inovações da Lei as regras referentes aos fundos de investimento, especialmente as que limitam a responsabilidade dos cotistas ao valor de suas cotas caso haja previsão expressa nos regulamentos e delimitam as responsabilidades dos prestadores dos serviços dos fundos. Trata-se de pontos bastante positivos na linha do incentivo ao aumento dos investimentos no País via estruturas de fundos de investimento.

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