As múltiplas batalhas do caso Americanas

Após megaescândalo corporativo, empresa enfrenta vários questionamentos jurídicos

0

A lista de batalhas jurídicas que a Americanas e seus acionistas de referência terão pela frente vem se avolumando à medida que se deteriora a situação da companhia. Desde que ela anunciou “inconsistências contábeis” de 20 bilhões de reais, no último dia 11 de janeiro, bancos, acionistas minoritários e credores de debêntures se mobilizam para tentar reaver parte dos prejuízos, e a companhia é foco de processos na Justiça, na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), de investigação do Ministério Público e de processos arbitrais.

Grupos de investidores se mobilizam para acionar a empresa em ações coletivas nos Estados Unidos (class actions) e arbitragem coletiva na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) da B3. O objetivo é buscar o ressarcimento dos prejuízos decorrentes da queda das ações provocada pelo anúncio do rombo contábil.

Guilherme Capuruço, sócio do Freitas Ferraz Advogados, considera fundamental que os credores de uma sociedade em recuperação judicial (como a Americanas) integrem o processo de recuperação para habilitar os seus créditos, o que lhes garantirá direitos diversos. “Além da atuação na própria recuperação judicial das Americanas, os investidores podem também buscar a reparação dos prejuízos sofridos em razão da possível fraude contábil. Uma primeira possibilidade é buscar a responsabilização da própria Americanas pelo derretimento do preço de suas ações. Os fundamentos, desde que comprovados, podem variar de práticas ilegais de contabilidade, manipulação de fatos e danos, ausência de transparência, de boa-fé e de governança corporativa”, explica. Mas ele ressalta que a possibilidade de responsabilização da própria companhia ainda é um tema polêmico no Direito brasileiro, e que geralmente os pedidos de indenização são formulados não contra a companhia, mas contra os administradores que tiverem agido com culpa ou dolo ou contra acionistas controladores que praticarem atos com abuso de poder.

Como a ação da Americanas é negociada no Novo Mercado, os pedidos devem ser feitos em procedimento arbitral perante a CAM-B3 em razão de as ações da companhia estarem listadas no Novo Mercado da B3. Capuruço lembra que esses pedidos de indenização podem incluir requerer também o afastamento dos administradores da companhia e sua substituição por um interventor. Ele também esclarece que credores e investidores podem buscar reparação dos prejuízos em face da auditoria responsável por analisar a contabilidade da companhia, no caso a PwC, devendo provar que os prejuízos sofridos se deram por ato culposo ou doloso desses agentes. “No contexto da Americanas, considerando as inconsistências encontradas no balanço e a exposição midiática do caso, é bastante provável investidores e os credores busquem a responsabilização de administradores e acionistas controladores.”

Além da PwC, e em menor intensidade, a B3 também sofreu respingos da crise, uma vez que as ações da Americanas são negociadas no Novo Mercado – teoricamente composto por empresas com boas práticas de governança corporativa.

Na CVM, houve a abertura de sete processos para investigar a Americanas, sendo que dois já se transformaram em inquéritos. Esses processos visam apurar irregularidades relacionadas às inconsistências contábeis, nas negociações com ativos de emissão da companhia, na divulgação de notícias, nos fatos relevantes e comunicados, apurar denúncia recebida pelos canais de atendimento da autarquia, tratar da atuação de coordenadores líderes em ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários da companhia e avaliar a atuação das agências de rating nas emissões de dívida da Americanas. Outro processo visa avaliar a conduta da companhia, seus administradores e acionistas de referência por terem divulgado, no fato relevante do dia 11/01 – que trouxe à tona as “inconsistências” de 20 bilhões de reais – mas apresentado um valor bastante superior no pedido de recuperação judicial, com créditos de 43 bilhões de reais. Os dois primeiros processos, relacionados à inconsistência contábil e às transações com base no uso de informação privilegiada (insider trading) já se viraram inquéritos. A autarquia também criou um canal para recebimento de denúncias.

O Ministério Público de São Paulo também instaurou procedimentos para apurar a existência de transações com base em informações privilegiadas (insider trading), que são tipificadas como crimes – enquanto cabe à autarquia apurar sanções no âmbito administrativo, cabe à Justiça avaliar a parte criminal. Diretores da empresa venderam 241,5 milhões de reais em ações da companhia no segundo semestre do ano passado, notadamente após a valorização dos papeis ocorrida após a divulgação de que o executivo Sergio Rial assumiria o cargo de diretor-presidente (CEO).

A própria CVM sentiu leves respingos da crise causada pela mega recuperação judicial: O Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) irá apurar eventuais desvios de finalidade na autarquia, a quem cabe fiscalizar as companhias abertas e defender o mercado de capitais.

Outras frentes de embate são na Justiça, protagonizadas pelos bancos, que tentam obter documentos e levantar provas de possível envolvimento dos administradores e acionistas de referência em fraude contábil, o que permitiria a desconsideração da personalidade jurídica da empresa e a busca pelos bens pessoais dos outrora incensados pelo mercado Marcel Telles, Jorge Paulo Lemann e Beto Sicupira. Em carta publicada nos jornais, os três negaram saber e compactuar com manobras contábeis, mas até agora não cederam às pressões do mercado para que façam uma mega capitalização na companhia. Aparentemente, a socialização dos prejuízos para os credores e para a sociedade como um todo vem sendo a alternativa escolhida pelo trio.

Na entrevista abaixo, Capuruço aborda o caso e as alternativas disponíveis para os investidores.


Quais são as alternativas jurídicas disponíveis para os investidores (acionistas e credores) prejudicados pela contabilização incorreta de operações de risco sacado nas demonstrações financeiras da Americanas?

Guilherme Capuruço: Primeiro, é fundamental que os credores de uma sociedade em recuperação judicial integrem o processo de recuperação, tendo como principal objetivo a adequada habilitação de seus créditos em termos de valor e natureza, porque isso garantirá direitos diversos no processo de recuperação judicial.

Além da atuação na própria recuperação judicial das Americanas, os investidores podem também buscar a reparação dos prejuízos sofridos em razão da possível fraude contábil. Uma primeira possibilidade é buscar a responsabilização da própria Americanas pelo derretimento do preço de suas ações. Os fundamentos, desde que comprovados, podem variar de práticas ilegais de contabilidade, manipulação de fatos e danos, ausência de transparência, de boa-fé e de governança corporativa. Vale ressaltar, porém, que a possibilidade de responsabilização da própria companhia ainda é um tema polêmico no Direito brasileiro.

Regra geral, os pedidos de indenização são formulados não contra a companhia, mas contra os administradores que tiverem agido com culpa ou dolo (artigo 159 da Lei 6.404/76) ou contra acionistas controladores que praticarem atos com abuso de poder (artigo 246 da mesma lei). A própria companhia e, preenchidos alguns requisitos, até mesmo investidores podem formular esse pedido de indenização. No caso das Americanas, esses pedidos devem ser feitos em procedimento arbitral perante a CAM-B3 em razão de as ações da companhia estarem listadas no Novo Mercado da B3. Em meio a esses pedidos de indenização, também é possível aos credores e investidores requerer o afastamento dos administradores da companhia (com base nas condutas listadas no artigo 64 da Lei nº 11.101/05) e substituí-los por um interventor. Finalmente, os credores e investidores também poderão buscar reparação dos prejuízos em face da auditoria responsável por analisar a contabilidade da companhia, no caso a PwC, com fundamento no art. 26 da Lei nº 6.385/76), devendo provar que os prejuízos sofridos se deram por ato culposo ou doloso desses agentes.

No contexto da Americanas, considerando as inconsistências encontradas no balanço e a exposição midiática do caso, é bastante provável investidores e os credores busquem a responsabilização de administradores e acionistas controladores.


Quando uma companhia entra em recuperação judicial, quais são as perspectivas de os acionistas serem ressarcidos por perdas decorrentes de condutas irregulares (como fraudes)? E com relação aos investidores de títulos de renda fixa?

Guilherme Capuruço: Durante o prazo de 180 dias de suspensão das cobranças contados do deferimento do processamento da recuperação judicial (o chamado stay period previsto no artigo 6º da Lei nº 11.101/05), não há outras providências disponíveis aos credores na recuperação judicial além de buscarem sua indicação como credores da Americanas no âmbito da recuperação judicial, salvo situações especiais previstas em contrato. O stay period não impede o ajuizamento das ações de responsabilidade. Entretanto, o sucesso de pedidos de ressarcimento através das ações de indenização contra administradores e acionistas controladores depende de provas robustas de condutas irregulares, pois o mero insucesso da sociedade não gera responsabilização.

Especificamente em relação à recuperação judicial das Americanas, há uma grande preocupação com os investidores de títulos de renda fixa. Tem-se conhecimento de debêntures emitidas pela Americanas com garantia flutuante (negociada sob o código LAMEA8) em que não há garantia recaindo sobre bens específicos da companhia, mas há privilégio geral de tais investidores (credores) sobre o ativo da companhia. Esses credores serão classificados como tendo privilégio geral e, no âmbito da recuperação judicial, votam na mesma classe dos créditos quirografários (sem garantia), créditos com privilégio especial e subordinados (artigo 41, inciso III, da Lei 11.101/05). A forma e o tempo em que cada classe será paga serão determinados pelo que constar no plano de recuperação judicial que venha a ser aprovado pelos credores.

Na prática, os planos de recuperação judicial costumam trazer um desconto considerável para os créditos quirografários, aliado a uma maior flexibilização das condições de pagamento como longos períodos de carência e parcelamento de débito. E ainda que essas condições não se mostrem ideais, a aprovação do plano pode acabar sendo a única saída para esses credores, se comparado às regras de pagamento previstas para a falência e a possibilidade de sequer receber seus créditos.


Quais são as responsabilidades legais das auditorias? A que sanções elas podem estar sujeitas se não fizerem ressalvas à contabilização inadequada por parte da companhia auditada?

Guilherme Capuruço: A responsabilidade dos auditores independentes, pelos prejuízos que causarem a terceiros em virtude de culpa ou dolo no exercício das suas funções, está prevista no artigo 26, §2º, da Lei nº 6.385/76 e no artigo 25 da Resolução nº 23/21 da Comissão de Valores Mobiliários. Dentre algumas de suas atribuições, cumpre aos auditores verificar se as informações e análises contábeis e financeiras apresentadas no relatório da administração da companhia estão em consonância com as demonstrações contábeis auditadas. Afinal, uma função essencial da auditoria é a de assegurar a higidez e a confiabilidade nas informações que as companhias prestam ao mercado.

É justamente sob este dever que pode vir a recair a responsabilidade da PwC pelo rombo multibilionário verificado na Americanas. A PwC analisou os documentos contábeis da companhia e, inclusive, indicou cinco pontos de atenção no último balanço auditado, referente a 2021. Entretanto, nenhum desses pontos foi relacionado ao problema que acabou vindo à tona recentemente. Assim, caso de fato seja comprovado que a auditoria independente atuou em inobservância ao seu dever de diligência, ela pode ser responsabilizada em diferentes esferas, tanto cível, quanto administrativa e criminal.


Com as informações disponíveis até o momento, já é possível tirar alguma lição do caso Americanas e/ou o fazer uma análise do seu impacto no mercado de capitais e financeiro?

Guilherme Capuruço: O caso da Americanas já vem tendo impacto relevantíssimo no mercado de capitais e financeiro nacional. Para se ter uma primeira dimensão, basta relembrar que o valor das ações da sociedade despencou nada menos que 80% em apenas uma semana, pulverizando 9,6 bilhões de reais de seu valor. Em complemento, os fundos de investimento que divulgaram, recentemente, possuir papeis da Americanas em suas carteiras sofreram perdas de 4,2 bilhões de reais em apenas um dia. Apesar de tudo isso, ainda não é possível tirar conclusões do ponto de vista do papel desempenhado por cada um na companhia (administradores, acionistas controladores e auditoria independente) e suas consequências. Independentemente do que se venha a apurar, é extremamente importante que os mecanismos de governança sejam observados, assim como as auditorias externas atuem com diligência e independência. Finalmente, caso eventualmente se apurem condutas irregulares, espera-se que os mecanismos de responsabilidade previstos na Lei das Sociedade Anônimas sejam aplicados com rigor.

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.