Decreto abocanha descontos de vale alimentação

Governo altera regras do PAT e reduz possibilidade de empresas abaterem imposto de renda

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Mudanças nas regras que disciplinam o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) estão causando polêmica. No dia 11 de novembro, o governo publicou o Decreto 10.854/21, que reduz as deduções que as empresas podem fazer quando concedem vale alimentação e refeição aos seus funcionários. Agora, a dedução dessas contribuições da base de cálculo do imposto da renda pessoa jurídica (IRPJ) está limitada aos benefícios concedidos a trabalhadores que recebem menos de cinco salários mínimos, e desde que o valor do vale-alimentação não ultrapasse um salário mínimo. 

“As limitações impostas pelo decreto tendem a refrear a utilização do programa, repercutindo na redução dos benefícios citados. Assim, há uma perda geral em bem-estar dos trabalhadores sem que se verifique, na prática, significativo aumento na arrecadação”, considera Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados. 

O decreto começa a valer no dia 11 de dezembro, ou seja, um mês após a sua publicação. A rapidez causa desconforto, uma vez que desrespeita o princípio da anterioridade, que determina que a elevação de tributos e redução de incentivos só podem ocorrer após determinados prazos, que variam conforme o imposto em questão. No caso do IR, a anterioridade é anual — isso significa que alterações feitas em 2021 só deveriam começar a valer a partir de 2022. 

Mas há vários outros pontos problemáticos, aponta Coimbra, para quem as limitações impostas pelo decreto são ilegais e inconstitucionais: “Ilegais por que contrariam a previsão expressa na Lei 6.321/76. A par disso, padecem de inconstitucionalidade formal e material”. 

Como as deduções estão previstas na Lei 6.321/76, e esta estabelece como limitações ao benefício apenas o percentual do lucro que pode ser impactado pelo benefício, o decreto é ilegal ao introduzir limitações não previstas em lei. Coimbra também questiona o fato de as deduções terem sido alteradas por meio de decreto: “Sob ponto de vista formal, as restrições são veiculadas por veículo normativo infralegal, violando o princípio da legalidade ao extrapolar os limites do poder regulamentar do Poder Executivo”. E, do ponto de vista material, ele considera que há inconstitucionalidade porque se busca restringir o incentivo ao fornecimento de alimentação aos trabalhadores.

Diante disso, a expectativa é que as empresas recorram ao Judiciário para manter as regras estabelecidas na lei. “Estima-se que o pleito tenha chances de êxito bastante prováveis”, avalia o advogado. 

Na entrevista abaixo, Coimbra explica por que considera as mudanças propostas pelo decreto inconstitucionais e ilegais.


Quais são os principais pontos do Decreto 10.854/21, que muda o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT)?

Paulo Coimbra: O Decreto 10.854, no artigo 186, alterou as regras de aproveitamento do incentivo fiscal de IRPJ relativo ao PAT, previsto no artigo 645 do RIR (Decreto 9.580, de 2018). Dentre seus principais efeitos destacam-se as pretensões de limitar as deduções adicionais referentes ao regime do PAT. Nesse rumo, o decreto prevê (i) ser vedada a dedução dobrada de benefícios fornecidos via vale alimentação e cartão-alimentação a funcionários que recebam mais de cinco salários mínimos, bem como (ii) limitação à dedução dobrada à um salário mínimo, sem clareza se esse limite se refere ao benefício concedido a cada empregado isoladamente, ou ao benefício fiscal usufruído pela empresa, tampouco se esse valor prevaleceria mensal ou anualmente.

Importa registrar, desde logo, que as alterações pretendidas pelo Decreto 10.854/21, relativas às limitações que busca impor, são ilegais e inconstitucionais. Ilegais por que contrariam a previsão expressa na Lei 6.321/76. A par disso, padecem de inconstitucionalidade formal e material. Sob ponto de vista formal, as restrições são veiculadas por veículo normativo infralegal, violando o princípio da legalidade ao extrapolar os limites do poder regulamentar do Poder Executivo. Materialmente, também refulge sua inconstitucionalidade, na medida em que busca restringir incentivo ao fornecimento de alimentação aos trabalhadores, conduta por demais necessária para a concreção de direito fundamental à alimentação dos trabalhadores, bem como para a consecução de diversos valores e objetivos constitucionalmente adotados. 


Quais são os impactos esperados da nova norma sobre os empregados, as empresas e o governo? 

Paulo Coimbra: Vemos no PAT contornos muito claros de extrafiscalidade, com a indução de comportamentos desejáveis para a consecução de direitos e valores constitucionalmente albergados. Com a promoção de uma alimentação equilibrada aos empregados, não apenas é promovido o direito à alimentação, bem como o direito à saúde, garantindo-se o rendimento laboral dos empregados e a produtividade da economia como um todo. Noutros termos, promove-se um ciclo de bem-estar social e econômico.

Caso prevaleçam as restrições que a nova norma busca impor, a partir de 2022 as pessoas jurídicas somente poderão realizar a dedução incentivada em relação aos valores despendidos a título de auxílio alimentação apenas para trabalhadores que recebem até cinco salários mínimos, limitando-se, ainda, a dedução dobrada ao valor máximo de um salário mínimo.

Para o governo, sua indisfarçável pretensão é aumento de arrecadação, mesmo em prejuízo da eficácia do direito fundamental dos trabalhadores à alimentação (lamente-se).

Para os empregados, há o risco de redução iminente à eficácia de seu direito à alimentação, podendo o correlato auxílio ser reduzido ou mesmo extinto.

As limitações impostas pelo decreto tendem a refrear a utilização do programa, repercutindo na redução dos benefícios citados. Assim, há uma perda geral em bem-estar dos trabalhadores sem que se verifique, na prática, significativo aumento na arrecadação.


A limitação da possibilidade de dedução do IR das empresas que concedem vale alimentação e refeição poderá ser judicializada? 

Paulo Coimbra: Não bastasse a violação a princípios e direitos fundamentais, como a promoção do direito à saúde e à alimentação adequada, a medida contraria também os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estipulado na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), atinentes à segurança alimentar e à erradicação da pobreza. Assim, tal medida padece de notável inconstitucionalidade e contraria o compromisso firmado pelo Brasil frente à comunidade internacional.

Ressalte-se, ademais, que a restrição ao benefício, com consequente majoração do tributo, foi veiculada em decreto. Contudo, a Lei 6.321/76 não estabelece qualquer limitação ao benefício que não seja pertinente ao percentual do lucro que pode ser impactado por tal benefício. Ou seja, a limitação é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade, e ilegal, por contrariar as disposições da lei de regência.

Interessante recordar que a tentativa de restringir os benefícios inerentes ao PAT não é inédita e nem original. Na década de 90, a IN/DPRF 16 de 1992 já havia pretendido fixar limites infralegais à dedutibilidade dos auxílios alimentação, que foram rechaçados pela jurisprudência que se firmou no Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

Tendo em vista as inconstitucionalidades e ilegalidades apontadas, as empresas poderão recorrer ao Judiciário, de forma a garantir a fruição desse importante benefício fiscal. Estima-se que o pleito tenha chances de êxito bastante prováveis.


Na sua avaliação, a mudança no PAT com relação ao vale alimentação é positiva?

Paulo Coimbra: Como relatamos acima, acreditamos que as alterações promovidas pelo Executivo vão na contramão da história, não apenas quanto aos objetivos traçados pela comunidade internacional, como quanto às alterações justrabalhistas recentes, realizadas no âmbito da Reforma Tributária, para expandir o uso de benefícios que garantam a alimentação adequada do trabalhador e seus dependentes. 

A pretensão fiscalista veiculada na nova norma revela extrema insensibilidade, pretendendo restringir programa que existe há mais de quarenta anos, que possibilita uma melhor segurança alimentar a 20 milhões de trabalhadores, beneficiando indiretamente cerca de 40 milhões de pessoas (dados apresentados pela Associação Brasileira de Empresas de Benefícios ao Trabalhador – ABBT).

Em suma, seja sob ponto de vista político ou jurídico, acreditamos que a mudança do PAT foi bastante infeliz e não deverá contar com o consentimento do Judiciário.


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