A desvalorização das companhias e a compra de ações por executivos em tempos de covid-19
Em notícia veiculada pelo The New York Times no mês passado, foi chamada a atenção do leitor para uma prática que está sendo comum, nos dias atuais, em companhias com valor de mercado superior a 1 bilhão de dólares: a compra das suas ações pelos seus próprios executivos que comandam o negócio. Segundo o jornal americano, só no último mês de março — marcado pelas quedas abruptas das bolsas de valores mundiais em função da crise do novo coronavírus — foram registradas mais de 1.300 operações desse tipo, um valor quase dez vezes maior do que as 113 negociações registradas no mesmo período em 2019.
O investimento de executivos em ações da companhia que estão sob sua gestão, operação chamada de insider purchasing ou insider buying, sinaliza ao mercado que os papéis daquela companhia estão subvalorizados e representam ótima oportunidade atual de investimento. Como dito por Peter Lynch, gestor do Fidelity Investments Fund, “insiders might sell their shares for any number of reasons, but they buy them for only one: they think the price will rise” (em tradução livre, “executivos podem vender suas ações por diversas razões, mas as compram por apenas uma: acreditam que o preço delas vai subir”).
Sob essa perspectiva, o insider purchasing é uma operação significativa para o mercado, sendo considerada como um importante indicativo de performance futura das ações. A lógica é simples: ao nela investirem mesmo — e principalmente — em tempos de crise, os executivos, que têm contato com grande volume de informações de alta qualidade sobre a companhia, passam o recado de que confiam, acreditam e trabalham para manter ou melhorar o potencial de crescimento e de retorno das operações da empresa.
Embora as informações que fundamentaram a decisão de compra das ações já estejam disponíveis a todo o mercado, a expertise para analisá-las e tomar decisões tendo-as como embasamento permanece concentrada nos executivos. E, quando esse investimento é realizado por vários gestores da mesma companhia e em grande volume, o sinal de confiança nos negócios é ainda maior.
Insider purchasing como alternativa para empresas durante pandemia de covid-19
Nas últimas semanas, marcadas pela crise do novo coronavírus em todo o mundo, o CEO da Dell Technologies Inc, Michael Dell, comprou mais de 26 milhões de dólares em ações da própria companhia. Além dele, o CEO do Simon Property Group Inc, David Simon, investiu mais de 20 milhões de dólares em papéis da Simon Inc.; e o Wayne B. Hughes, diretor da American Homes 4 Rent, adquiriu 30,5 milhões de dólares em ações da companhia. O movimento de insider purschasing também pode ser observado em muitas outras empresas americanas, como a Humana Inc. (HUM), a TransDigm Group Incorporated (TDG) e a South State Corp (SSB). Na Europa, estima-se que já foram gastos cerca de 20,6 milhões de euros nesse tipo de compra só em 2020.
A relevância dessas operações tem atraído a atenção do mercado e dos investidores sob uma perspectiva notadamente positiva. Nesse momento de incerteza atípica seguida por quedas acentuadas das bolsas do mundo todo, a realização de novos aportes pelos executivos tem inspirado a confiança dos investidores — que, seguindo a estratégia dos especialistas, tendem a manter as suas posições na bolsa ou até a realizar novos aportes.
Todavia, para que possa gerar os efeitos positivos apresentados, o investimento de executivos na própria companhia deve seguir uma série de regras e exigências prévias da regulamentação. Isso porque quando se fala de compra de ações da companhia por seus próprios executivos, existe uma forma lícita e a outra ilícita de fazê-lo: insider buying e insider trading, respectivamente. Enquanto a prática de insider buying é bem vista aos olhos dos investidores, o insider trading se refere à situação em que gestores de uma companhia de capital aberto negociam as ações, em proveito próprio, com base em informações privilegiadas ainda não divulgadas ao mercado.
Por que a prática de insider trading é ilícitae como evitá-la
No Brasil, a prática do insider trading é vedada pelo parágrafos 1º e 4ºdo artigo 155 da Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.As.) e pelo artigo 13 da Instrução CVM nº 358 de 2002. Além disso, a prática é tipificada como crime pelo artigo 27-D da Lei nº 6.385/1976 (conforme alteração legislativa que remonta à Lei nº 10.303/2001 e atualizada pela Lei nº 13.506/2017). A vedação incide sobre a utilização de informação relevante de que o administrador — ou qualquer pessoa — tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar vantagem indevida no mercado de valores mobiliários para si ou outrem.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem, ainda, construção jurisprudencial acerca dos critérios básicos para a averiguação de ocorrência de uma negociação ilícita realizada por executivos de uma companhia. São eles a existência de uma informação relevante pendente de divulgação, o acesso privilegiado a ela, a utilização dessa informação na negociação de valores mobiliários e a finalidade de auferir vantagem própria ou para terceiros.
Se de um lado há uma grande preocupação legislativa, regulamentar e fiscalizatória em se evitar a prática do insider trading — cominando sanções civis, administrativas e penais —, por outro a regulamentação do insider purchasing consiste, basicamente, em um único e singelo dever tão caro para o Direito societário: o dever de informar. Conforme se extrai das obrigações estabelecidas para os administradores na Lei nº 6.404/1976 e na Instrução 358/02, a principal premissa para que a compra de ações pelos executivos seja licitamente realizada e não recaia em uma situação de insider trading é justamente o cumprimento do dever de informar.
Em suma, a caracterização de uma operação como ilícita ou lícita está fundamentalmente ligada à divulgação prévia ao mercado das informações relevantes que incentivaram os executivos a negociarem com seus ativos da companhia. Desse modo, enquanto o insider trading consiste na utilização de informações ainda não divulgadas como fundamento do investimento, no insider purchasing os executivos se valem das mesmas informações disponíveis ao resto dos investidores e, conforme aplicável, divulgam suas aquisições de ações. Na prática, o esclarecimento dessa diferença reside em averiguar se as informações acessadas eram consideradas relevantes ao tempo da operação, qual foi o proveito próprio auferido e se o timing da aquisição das ações foi prévio ou posterior à disponibilização da informação para o mercado.
O dever de informar dos administradores não se restringe às informações relativas aos negócios da companhia que possam influenciar na cotação de suas ações, compreendendo também o dever de declarar aos investidores em geral qualquer posição acionária detida na companhia. Nesse sentido, a Lei nº 6.404/1976 estabelece que o administrador deve declarar o número de papéis de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo de que seja titular (artigo 157, caput) e informar imediatamente à CVM e à bolsa de valores quaisquer modificações em suas posições acionárias (parágrafo 6º do artigo 157). O artigo 11 da Instrução 358/02 — que também dispõe sobre esse dever de informar — amplia essa obrigação para também determinar que o cônjuge, companheiro ou qualquer pessoa incluída como dependente na declaração de ajuste anual do imposto de renda do administrador da companhia também deve realizar tais divulgações à companhia, que informará a CVM e as bolsas de valores sobre tais negociações.
É importante pontuar que se o administrador que adquire mais ações de emissão da companhia já estiver vinculado a algum acordo de voto no âmbito da própria companhia, o administrador-acionista terá um maior potencial de influenciar as deliberações em assembleias gerais e — caso existam conselheiros de administração indicados pelo bloco de controle ao qual o administrador está vinculado — reuniões do conselho de administração. Por essa razão, portanto, caso o executivo seja parte, na qualidade de acionista, de qualquer acordo ou contrato regulando o exercício do direito de voto ou a compra e venda de valores mobiliários de emissão da companhia, ele também fica obrigado a informar este fato, conforme artigo 12, inciso V, da Instrução CVM 358/02.
O ingresso do administrador no quadro acionário da companhia é uma operação comum no âmbito do mercado de valores mobiliários, mas requer cuidados, especialmente em função da importância do dever de informar dos administradores e do dever de transparência perante o mercado e os investidores em geral. Por essa razão, o insider purchasing atrai a aplicação de uma série de normas e obrigações estabelecidas pela Lei nº 6.404/1976, pela Lei 6.385/1976 e pela regulamentação da CVM — tanto para evitar a configuração de insider trading, como também para regular a atuação do executivo após o ingresso no quadro societário, com objetivo de resguardar a companhia em caso de eventual conflito de interesses.
Não obstante, se regularmente realizada, a compra de ações pelos executivos das companhias pode trazer benefícios para o mercado e para a própria companhia, especialmente em momentos de crise como a atual pandemia de covid-19. Desse modo, incentiva o interesse nas companhias durante o período e promove a sensação de confiança nos investidores em geral.
*Colaboraram Isabela Ardaya e Renata Megda, advogadas associadas do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.