Impactos imediatos do novo coronavírus nas companhias abertas
Uma nova pandemia se alastra por continentes e países. O novo coronavírus está forçando diversas mudanças no cotidiano das pessoas: desde as mais simples, relacionadas a hábitos de higiene, até aquelas mais drásticas, como o cancelamento de eventos para evitar aglomerações e restrições à circulação de pessoas em alguns países.
Os efeitos da covid-19 não impactam exclusivamente a população. Empresas também estão sofrendo as repercussões da pandemia em diversas frentes. A depender do setor de atuação, estão ocorrendo interrupções na cadeia de suprimentos, seja em razão da redução de disponibilidade de insumos — especialmente daqueles produzidos pela China, epicentro da doença —, seja por rupturas ou atrasos em redes de transporte. De outro lado, há uma diminuição massiva da demanda pelos consumidores, como vem sendo observado com companhias aéreas e empresas de turismo.
Dentre as empresas que sofreram impactos mais evidentes, ganham destaque as companhias abertas, que tiveram seu valor de mercado reduzido drasticamente nas últimas semanas. As bolsas de valores ao redor do mundo sofreram quedas acentuadas e uma das principais razões foi a pandemia do novo coronavírus. No Brasil não foi diferente: o Ibovespa sofreu uma retração mais intensa que o resto das bolsas internacionais e foram acionados circuit breakers sucessivos num curto espaço de tempo, algo inédito no país.
Entretanto, os impactos da covid-19 nas companhias abertas não se restringem à intensa oscilação de seu valor de mercado, cotados em bolsa de valores. Considerando que essas empresas acessam a poupança popular como forma de financiamento de suas operações e projetos, elas estão sujeitas, em decorrência de regras regulatórias, a prestar informações aos acionistas e ao mercado em geral a respeito de suas atividades e, conforme o caso, dos impactos sofridos — ou que possam vir a ocorrer em suas atividades — decorrentes de determinados eventos relevantes.
Nesse sentido, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou no último dia 10 de março o Ofício Circular SNC/SEP 02/2020. Ele orienta diretores de relações com investidores e auditores independentes a refletirem, na medida do possível, os impactos econômico-financeiros da pandemia do novo coronavírus nas demonstrações financeiras das companhias abertas.
O próprio ofício circular reconhece a dificuldade de quantificar monetariamente os impactos futuros da covid-19. No entanto, ele direciona os diretores de relações com investidores e auditores independentes a verificar os riscos e incertezas aos quais as companhias abertas estariam expostas nesse cenário, especialmente com base em eventos econômicos que se relacionem à continuidade dos negócios ou a estimativas contábeis. O documento cita como pontos de atenção os valores e estimativas relacionados a recuperabilidade de ativos, mensuração do valor justo, provisões e contingências ativas e passivas, reconhecimento de receitas e provisões para perda esperada.
É importante destacar que os impactos do novo coronavírus podem ser refletidos de duas formas nas demonstrações financeiras das companhias abertas. Caso o exercício social da companhia tenha se encerrado em 31 de dezembro de 2019, os riscos e incertezas eventualmente apurados devem ser refletidos como eventos subsequentes, na forma como prescreve o Pronunciamento Técnico CPC 24, emitido pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis e aprovado no âmbito da CVM pela Deliberação nº 593/2009. Caso o exercício social da companhia não tenha se encerrado nessa data, ou a companhia esteja em processo de preparação do formulário de informações trimestrais (ITR) referente ao primeiro trimestre de 2020, os riscos e incertezas eventualmente apurados devem ser refletidos diretamente na elaboração dessas demonstrações financeiras.
E, quando o assunto é prestação de informações a acionistas e ao mercado em geral, os impactos da pandemia podem ultrapassar as demonstrações financeiras das companhias abertas. Conforme o caso, o diretor de relações com investidores deve avaliar se esses impactos precisariam ser objeto de divulgação através de fato relevante, na forma da Instrução 358/2002. Esse foi o caso da Azul S.A. (AZUL4), que divulgou fato relevante no dia 12 de março afirmando estar “monitorando o impacto potencial do covid-19” e comunicou medidas para reduzir eventuais efeitos da pandemia nas operações da companhia — dentre as quais redução da capacidade de voos internacionais entre 20% a 30%, redução do crescimento doméstico de forma preventiva e suspensão de novas contratações.
A CVM agiu de forma acertada e prudente ao divulgar o ofício circular como uma orientação — e talvez até um incentivo — às companhias abertas a divulgarem os possíveis efeitos que o novo coronavírus pode acarretar em seus negócios. Numa situação completamente adversa e inesperada, como a de uma pandemia, o fornecimento de informações de forma diligente e ponderada se torna instrumento vital para controlar a histeria dos acionistas e do mercado. Por outro lado, os diretores de relações com investidores e auditores independentes têm um grande desafio pela frente, na medida em que se tornaram responsáveis por apurar os riscos e incertezas decorrentes de um evento totalmente incontrolável e imprevisível, como é o caso da covid-19. O fato certo é: todas as empresas serão afetadas, em certa medida, pela pandemia.
As companhias abertas enfrentarão no próximo mês ainda outro desafio relacionado ao novo coronavírus. Diante da recomendação de autoridades governamentais e de especialistas da área de saúde para que as pessoas saiam de casa apenas em casos de extrema necessidade e evitem aglomerações, a realização de assembleias gerais ordinárias (AGOs) pode estar comprometida e se tornar um problema para essas empresas.
A assembleia geral ordinária é essencial para o desenvolvimento das atividades das companhias, pois tem por objetivo tomar as contas da administração, deliberar sobre as demonstrações financeiras e destinar o resultado do exercício social encerrado, bem como eleger os administradores e os membros do conselho fiscal, se for o caso. A aprovação, sem ressalvas, das contas da administração e das demonstrações financeiras exonera os administradores e membros do conselho fiscal de qualquer responsabilidade, salvo em caso de erro, dolo, fraude ou simulação.
Ocorre que as assembleias gerais devem ocorrer na sede da companhia, de forma presencial. A única exceção é justamente em casos de força maior, acontecimento relacionado a fatos externos e independentes da vontade humana, que impedem o cumprimento dessa regra acerca do local da assembleia geral — hipótese na qual poderá ocorrer em local diverso, desde que no mesmo município da sede. As vedações e recomendações acerca de não aglomerações de pessoas, porém, aplicam-se de forma genérica e generalizada, de modo que a simples alteração do local da AGO não é solução suficiente para a situação atual.
Diante dessas restrições, impostas e recomendadas como forma de prevenção à proliferação do covid-19, uma alternativa — em tese — viável para as companhias abertas seria a realização de AGO virtual, via videoconferência. A legislação aplicável às companhias abertas permite que os acionistas participem de forma remota das assembleias gerais, por meio da apresentação de votos à distância, observado o procedimento previsto na Instrução CVM 481/09. As empresas devem disponibilizar boletim de voto à distância contendo as matérias que serão deliberadas na assembleia e as orientações sobre as formalidades de envio para que o voto seja considerado válido. Caso a companhia disponibilize sistema eletrônico para a participação remota, é facultado ao acionista enviar o boletim a distância e apenas acompanhar a realização da assembleia, ou acompanhar e proferir votos durante a assembleia. Nessa última hipótese, os votos eventualmente enviados pelo acionista via boletim a distância serão desconsiderados, sendo computados apenas os votos apresentados na assembleia.
Caso opte pela realização virtual da AGO, a companhia deve utilizar um sistema eletrônico que permita computar e registrar a presença dos acionistas, para que as assembleias sejam devidamente instaladas. Além disso, o sistema adotado pelas empresas deve assegurar a participação em tempo real dos acionistas — como se estivem presentes fisicamente – de modo que a realização virtual da assembleia não prejudique a deliberação de nenhuma das matérias. As deliberações tomadas devem ser formalizadas em ata, a qual deverá ser assinada pelos acionistas via certificado digital.
Essa alternativa, todavia, ainda impõe muitos desafios práticos e burocráticos. A sistemática e os meios tecnológicos atuais para realização de uma AGO virtual ainda não conseguem resolver de forma satisfatória muitas das situações que ocorrem na prática de uma assembleias – situações como verificação da identidade do acionista, poderes de representação, exercício de determinados direitos pelo acionista, realização de procedimento de voto múltiplo, voto em separado, não participação na deliberação de acionista em conflito de interesses, dentre outras.
A AGO deve ser realizada anualmente até o quarto mês seguinte ao término do exercício social. No caso das companhias abertas em que o exercício social encerrou-se em 31 de dezembro de 2019, o prazo para a realização das assembleias é até 30 de abril de 2020. A inobservância do prazo para realização da assembleia é considerada infração grave pela CVM, conforme previsto na Instrução 480/09. As infrações graves sujeitam os infratores a penas que variam desde advertência até suspensão, inabilitação e proibição de até 20 anos de atuar no mercado de valores mobiliários.
A situação caótica que se alastrou pelo país em razão da pandemia de covid-19 fez com que o governo federal editasse a Medida Provisória (MP) 931/2020. A MP autoriza que a CVM, por exemplo, amplie os prazos estabelecidos na Lei das S.As. para obrigações das companhias abertas – dentre essas obrigações, está, inclusive, a realização das AGOs. Resta aguardar a edição da Instrução 481, que propõe a regulamentação de assembleias inteiramente digitais.
*Colaboraram João Cesconi e Pedro Vidigal, advogados associados do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.