Distribuição de rendimentos dos fundos imobiliários na pandemia: a crise evidenciando a vantagem da flexibilidade
Com os recorrentes cortes na taxa básica de juros da economia brasileira — a SELIC — e uma redução de 14,25% a.a. (em agosto de 2016) para 3,75% a.a. (em março de 2020), ocorreu um movimento relevante de migração de investimentos em renda fixa para investimentos em renda variável. A menor rentabilidade dos investimentos em renda fixa resultou no natural movimento dos investidores em busca de maior rentabilidade. Segundo dados da B3, o Brasil permaneceu com cerca de 500 mil investidores pessoas físicas entre os anos de 2008 e 2016, período durante o qual a SELIC esteve quase sempre na casa dos 2 dígitos. No período em que a Selic foi reduzida de 14,25% a.a. para 3,75% a.a., o número de investidores pessoas físicas saiu de 564.024 (em 2016) para 2.243.362 (em março de 2020).
Grande parte do movimento de migração para investimentos em renda variável foi destinado aos fundos de investimento imobiliários, os FIIs. Conforme divulgado pela Anbima, os FIIs atingiram a marca de 1 milhão de cotistas no primeiro semestre de 2019, sendo que, no mesmo período de 2018, o número de cotistas era de 400 mil. Além do rápido crescimento, o mercado de FIIs possui uma característica relevante: a grande maioria dos investimentos — em volume negociado e em valor investido — são realizados por pessoas físicas, chegando a mais de 70% tanto em “volume negociado” quanto em “estoque”, conforme o Boletim do Mercado Imobiliário da B3. Além da queda da taxa de juros, o crescimento da captação pelos FIIs está também relacionado às características e vantagens de se investir nessa classe de ativos. Para citar apenas alguns dentre esses fatores:
— maior tangibilidade: a maior parte dos FIIs tem como ativos imóveis para locação, culturalmente considerados bons investimentos no Brasil;
— baixo valor mínimo para investimento: com valores a partir de cem reais, é possível adquirir cotas dos principais FIIs negociados em bolsa;
— gestão profissionalizada dos imóveis: os FIIs possuem uma equipe de gestão, que é responsável por cobrar aluguéis, fazer reformas etc.;
— a isenção de tributação: os rendimentos distribuídos para pessoas físicas são isentos de tributação (contra uma tributação progressiva de até 27,5% do aluguel recebido diretamente pela pessoa física), observados determinadas regras como o FII ter mais de 50 cotistas e o cotista não deter mais de 10% das suas cotas.
Entretanto, no cenário macroeconômico decorrente da pandemia causada pela covid-19, a principal característica a ser analisada — e a que deve sofrer maior impacto — é a recorrência na distribuição dos rendimentos pelos FIIs. Essa estabilidade na distribuição de rendimentos também é considerada uma de suas principais vantagens, afinal, o brasileiro médio quer investir em imóveis para “receber aluguéis mensais”. Quem nunca ouviu alguém dizer que “sonha em viver do recebimento de aluguéis”, não é mesmo?
Diversamente do senso comum, os FIIs não têm a obrigação de distribuir rendimentos mensalmente. Eles podem deixar de distribuir rendimentos ao longo de todos os meses de um semestre, desde que, ao final, realizem uma distribuição de pelo menos 95% do lucro apurado no período. Essa recorrência semestral na distribuição dos rendimentos pelos FIIs decorre da Lei nº 8.668/93, que prevê, no parágrafo único do artigo 10, que “o fundo deverá distribuir a seus quotistas, no mínimo, noventa e cinco por cento dos lucros auferidos, apurados segundo o regime de caixa, com base em balanço ou balancete semestral encerrado em 30 de junho e 31 de dezembro de cada ano”. A norma é expressa em determinar que os FIIs têm a obrigação de distribuir pelo menos 95% os lucros apurados até 30 de junho e até 31 de dezembro. A crença na obrigatoriedade de distribuição de resultados de forma mensal decorre da prática da grande maioria dos FIIs de pagar seus rendimentos mensalmente. Esse padrão criado pelo mercado tem como objetivo atender o interesse dos investidores de ter um fluxo mensal de rendimentos, e só é possível diante da previsibilidade das receitas decorrentes do aluguel dos imóveis detidos pelos fundos.
O inciso XI do mesmo artigo 10 da Lei nº 8.668/93 prevê que o regulamento dos FIIs deve conter os critérios relativos à distribuição de rendimentos. Diante dessa previsão, para conciliar a obrigação de distribuição de rendimentos semestrais com o padrão de distribuição mensal do mercado — sem que isso reduza a flexibilidade dos gestores dos FIIs em relação às regras de distribuição —, a maioria dos regulamentos desses fundos prevê que o FII deverá distribuir 95% do resultados semestrais (em cumprimento à obrigação da Lei nº 8.668/93) e os rendimentos auferidos no semestre serão distribuídos aos cotistas mensalmente, a título de antecipação dos rendimentos do semestre a serem distribuídos (como exemplo, os regulamentos do KNRI11, HGLG11 e VISC11).
A regra prevista na Lei nº 8.668/93, aliada à previsão inserida nos regulamentos dos FIIs, se torna um dos mais importantes mecanismos de preservação do patrimônio no atual cenário, especialmente naqueles fundos que possuem imóveis relacionados às atividades mais afetadas pelas restrições de circulação decorrentes da pandemia: shopping centers e imóveis comerciais. Para facilitar a compreensão da aplicação desse mecanismo como uma forma de proteção no atual cenário, utilizemos como exemplo o FII Vinci Shopping Centers (VISC11), cujo regulamento pode ser acessado neste link — com a ressalva óbvia de que a pandemia afetou o setor como um todo.
Evidentemente, o fechamento dos shoppings representará uma queda imediata nas receitas do fundo em razão da paralisação das vendas e do fluxo de veículos nos estacionamentos, bem como um provável aumento na inadimplência do portfólio. No entanto, apesar de as restrições de circulação terem começado a se estabelecer no Brasil a partir do mês de fevereiro, os impactos começaram a sentidos com maior força pelos fundos de shoppings a partir de abril, pois e o fechamento definitivos dos centros de comércio ocorreu no final do mês de março.
Por possuir apenas participação em shopping centers em seu portfólio — sem mencionar outros ativos detidos pelo fundo, como posição em caixa, aplicações financeiras e cotas de outros FIIs, que serão desconsiderados para essa análise —, as receitas do VISC11 decorrem dos aluguéis de lojas localizadas dentro desses centros de compras. Em decorrência de determinações do poder público, em 23 de março de 2020, o VISC11 e diversos outros FIIs do segmento anunciaram em fato relevante o fechamento de todos os shoppings do portfólio do fundo para evitar a proliferação do novo coronavírus.
A distribuição de rendimentos referente ao mês de janeiro de 2020 foi de 0,63 reais por cota, sendo que o resultado do mês foi de 0,86 reais por cota, totalizando 8.915.000 reais — ou seja, o resultado do fundo foi superior à distribuição, o que representou um aumento no caixa do fundo. A distribuição referente ao mês de fevereiro teve o mesmo valor e o resultado do mês ficou em 0,59 reais por cota, totalizando 8.393.000 reais. Nesse segundo caso, a a distribuição ficou um pouco acima do resultado.
Diante do cenário da pandemia, com grande impacto e baixa previsibilidade de resultados no curto prazo, a gestora do VISC11 anunciou no dia 25 de março a alteração da política de distribuição de rendimentos mensais do fundo. De acordo com o comunicado, o fundo distribuirá aos cotistas o rendimento que seria obtido mediante a aplicação do valor patrimonial da cota no CDI, líquido de impostos de aplicações financeiras para pessoas físicas cuja alíquota é de 22,5%. Com base nessa política, o fundo anunciou a distribuição de 0,30 reais por cota, referentes ao mês de março — um valor consideravelmente menor que o histórico recente.
Como o fechamento dos shoppings ocorreu no final do mês de março, o resultado do fundo referente ao mês em questão não sofreu impactos relevantes: ele foi de 0,58 reais por cota, totalizando 8.270.000 reais, valor muito próximo ao resultado do mês de fevereiro. Como a distribuição do mês de março foi inferior ao resultado apurado no mês, é evidente que a gestora, adotando uma postura conservadora, utilizou a previsão do parágrafo único do artigo 10 da Lei nº 8.668/93 e do regulamento do FII para reter a distribuição dos resultados referentes ao mês de março.
Analisando o comunicado ao mercado divulgado no dia 25 de março, a gestora deixou claro que “o saldo de resultado acumulado não-distribuído do Fundo na data de hoje (25/03), que inclui o resultado caixa gerado no mês de março, é de aproximadamente R$ 0,80/cota” e que “a distribuição de rendimentos ao final do 1º semestre de 2020 respeitará a distribuição mínima de 95% dos resultados no semestre”. A gestora optou por não distribuir a totalidade (ou 95%) do resultado do mês de março — já que a Lei nº 8.668/93 exige a distribuição de 95% do resultado do semestre, e não do resultado mensal — e deixou claro que, após o fechamento do 1º semestre de 2020, realizará a distribuição do saldo remanescente (se houver) para cumprir a distribuição mínima de 95%.
Esse evento demonstra que o legislador foi feliz ao estabelecer a regra de distribuição mínima de 95% dos resultados semestrais e não mensais, pois dá aos gestores a flexibilidade para gerir o fluxo de resultados e de distribuição dos rendimentos dos FIIs principalmente em momentos de incerteza como o atual. Além disso, ao final deste semestre — ou dos próximos, a depender da evolução da pandemia —, os FIIs apurarão o resultado efetivo do semestre e, se os recursos distribuídos mensalmente não atingirem o percentual mínimo de 95% considerando o resultado efetivo no semestre, haverá a distribuição do saldo remanescente para cumprir a obrigação legal. Isso significa que, sem causar prejuízos aos cotistas (além daqueles que já causados pela pandemia, obviamente), os FIIs poderão utilizar essa regra para fortalecer os seus balanços em meio à grande incerteza trazida pela pandemia.
Diante dessa breve análise, e mesmo considerando o incipiente mercado (em comparação com mercados mais maduros) de capitais brasileiro, é possível afirmar que estabelecer regras mais flexíveis não significa fomentar abusos pelos agentes de mercado — ao contrário do que muitas vezes ocorre no Brasil, quando as regras são feitas com base em exceções. No caso dos FIIs, mesmo diante de uma obrigação de distribuição semestral de rendimentos, o mercado padronizou as distribuições mensais, atendendo à demanda e às características dos investidores, sem que fosse necessário restringir a flexibilidade dos agentes.
*Colaborou Rodrigo Amaral, advogado associado do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.