Voto em situação de conflito de interesses permanece indefinido

Insegurança jurídica e complexidade do tema requerem discussão de agentes do mercado

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As diferentes interpretações sobre o voto dos acionistas sob situação de conflito de interesses vêm causando muitas dúvidas entre os próprios acionistas e os investidores — e o momento pode ser propício para que o mercado como um todo seja convidado a debater o assunto. A questão que se coloca é se os acionistas podem votar — e, posteriormente, sofrer consequências caso não tenham votado no melhor interesse da companhia — ou se não devem votar em situações de potencial conflito de interesses.

A primeira abordagem é chamada de conflito material e a segunda de conflito formal. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem mudando o seu entendimento sobre o assunto: se, anteriormente, os acionistas eram impedidos de votar, seguindo o entendimento do conflito formal, agora a interpretação está caminhando para o conflito material. “As discussões quanto à adequação de cada uma das teorias são densas e a participação dos agentes do mercado não só é válida como muito importante para enriquecer o debate e buscar alternativas que tragam clareza para a questão”, consideram Felipe Hanszmann e Ana Luisa Fucci, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados.

Ambas as abordagens possuem prós e contras: “Se, por um lado, a teoria do conflito formal possui nítido caráter preventivo do dano, o faz impondo sérias restrições ao exercício do direito de voto dos acionistas, sem que haja uma análise do caso concreto”. Por outro lado, na abordagem do conflito material, o voto ocorre e o dano pode ser causado, cabendo ao investidor posteriormente buscar a reparação, que pode demorar a chegar.

Hanszmann e Fucci entendem que, apesar da lentidão do sistema Judiciário, a teoria do conflito material continua a ser a mais adequada porque assegura que as companhias não paralisem o desenvolvimento de suas atividades em razão de potencial conflito de interesses. Mas, dadas as dúvidas, a complexidade do tema e a insegurança jurídica sobre o assunto, consideram que seria bem-vindo um Parecer de Orientação por parte da CVM para trazer maior clareza para a atuação dos acionistas em situação de potencial conflito de interesses. Esse parecer é esperado pelo mercado desde o ano passado. A questão, entretanto, ainda divide opiniões na autarquia, conforme noticiou o Valor Econômico.

Na entrevista abaixo, Hanzsmann e Fucci explicam as duas abordagens e por que consideram que o tema merece uma discussão ampla pelo mercado.


– As últimas notícias indicam que ainda há divergências no colegiado da CVM com relação a um Parecer de Orientação sobre o conflito de interesses. Seria interessante que a autarquia se manifestasse a respeito para orientar o mercado?

Felipe Hanszmann e Ana Luisa Fucci: De forma geral, idas e vindas na interpretação teórica do regramento aplicável geram insegurança jurídica, e consequentemente aumentam os custos de transação para o mercado. Considerando esse cenário, um Parecer de Orientação seria muito bem-vindo para trazer maior clareza para a atuação dos acionistas em situação de potencial conflito de interesses, na medida em que o referido documento descreva possíveis procedimentos de mitigação que poderão ser adotados e facilite a análise e fundamentação dos casos levados a julgamento.


– Quão comuns são os votos de acionistas proferidos sob conflito de interesses? Esse tipo de situação gera muitos questionamentos?

Felipe Hanszmann e Ana Luisa Fucci: É muito comum que haja questionamentos a respeito da possibilidade de um acionista ter agido ou não em conflito de interesses ao proferir determinado voto. Isso se deve ao fato de muitas vezes existirem diferenças tênues entre o conflito e a coexistência de interesses. É possível que o interesse social e o interesse do acionista sejam distintos, mas coexistam de forma não danosa. Nesse caso, não há que se falar em conflito de interesses. Por outro lado, quando o interesse social e o interesse do acionista são antagônicos, ou seja, quando a existência de um necessariamente prejudica o outro, está a se falar de conflito de interesses. É nesse sentido que o parágrafo 1º do artigo 115 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei das S.A) proíbe de forma expressa que determinado acionista vote em deliberações de assembleia que tratem do laudo de avaliação de bens que deseja concorrer para a formação do capital social ou em deliberações que tenham como objetivo aprovar as suas contas próprias como administrador da companhia.


– A abordagem material pressupõe que acionistas prejudicados por votos efetuados em conflito de interesse peçam posterior reparação. Considerando a lentidão para julgamento dos processos, essa abordagem seria a mais adequada no Brasil?

Felipe Hanszmann e Ana Luisa Fucci: Não há resposta totalmente certa para esta pergunta, uma vez que há vantagens e desvantagens a se destacar em cada uma das abordagens. Se, por um lado, a teoria do conflito formal possui nítido caráter preventivo do dano, o faz impondo sérias restrições ao exercício do direito de voto dos acionistas, sem que haja uma análise do caso concreto.

Por outro lado, a teoria do conflito material realiza essa ponderação dos interesses da companhia e dos acionistas com base no caso concreto, impedindo que haja a imposição de restrições ao exercício dos direitos pelos acionistas antes de que se verifique se, de fato, há um dano ao interesse social. Contudo, por ser uma teoria que privilegia a presunção de boa-fé do acionista, como a análise acerca da existência do conflito ocorre a posteriori, em muitos casos há a materialização do dano. Dano este que, como citado na pergunta, pode ensejar a revisão da transação pelo poder judiciário ou pela própria CVM.

Do ponto de vista prático, o nosso entendimento é o de que, apesar da lentidão do sistema Judiciário, a teoria do conflito material continua a ser a mais adequada, uma vez que assegura que as companhias não paralisem o desenvolvimento de suas atividades em razão de potencial conflito de interesses. Já do ponto de vista teórico, importante ressaltar que a lentidão do sistema Judiciário precisa ser combatida com as ferramentas adequadas e não com medidas paliativas que não resolvem o problema em si e que podem vir a prejudicar o desenvolvimento das companhias e, consequentemente, do mercado.

Adicionalmente, uma ferramenta que pode estar em linha com o objetivo de garantir a continuidade das atividades da companhia e evitar a demora do sistema Judiciário é a sugestão feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, através do relatório Private Enforcement of Shareholder Rights – A comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil[1], no sentido de estabelecer um procedimento pré-julgamento capaz de avaliar se determinada demanda parece ser procedente e servir como ponto de corte a partir do qual haveria a alocação dos custos processuais mesmo nos casos em que o processo for infrutífero.

A referida entidade fez essa sugestão ao analisar o sistema societário brasileiro e os ajustes têm como inspiração os modelos societários da Alemanha (em que há uma análise para saber se o processo é provavelmente no melhor interesse da companhia e se os demandantes possuem um caso prima facie) e o de Israel (em que, além dos critérios estabelecidos no modelo alemão, é feita uma avaliação dos motivos dos demandantes).


– Caberia uma discussão sobre o assunto que contemplasse a visão de diversos agentes do mercado (incluindo investidores)?

Felipe Hanszmann e Ana Luisa Fucci: Tanto cabe, que um dos motivos pelos quais a tentativa de alteração da redação do artigo 115 da Lei das S.A. trazida pela Lei da Liberdade Econômica não avançou foram as críticas recebidas por não envolver um debate público para tratar do assunto. As discussões quanto à adequação de cada uma das teorias são densas e a participação dos agentes do mercado não só é válida como muito importante para enriquecer o debate e buscar alternativas que tragam clareza para a questão.


[1] 1 OECD (2020), “Private enforcement of shareholder rights: A comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil”, http://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm.

 

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